11 de set. de 2010

Constantes inconstantes criam revolução na física?

Resultados recentes de observações astronómicas parecem pôr em causa um dos pilares fundamentais da física moderna: o de que as chamadas constantes fundamentais da natureza são... bem, constantes. Pode parecer um simples pormenor matemático, mas longe disso: se as medições estiverem correctas, o Universo é muito mais misterioso e complexo do que aquilo que pensamos - e, por mero acaso, nós vivemos numa pacífica vizinhança cósmica em que as constantes parecem ter os valores ideais.

Mas esta conclusão está longe de ser consensual, e os resultados estão a causar grande controvérsia na comunidade de astrofísicos. De facto, a serem verdade obrigariam a uma reformulação completa da famosa teoria da relatividade de Einstein, que assenta precisamente no princípio de que as leis da física são iguais em todo o Universo. E esta teoria, testada com sucesso vezes sem conta, é uma das bases mais sólidas do nosso conhecimento actual.

Desde que Newton viu a maçã a cair e teve a inspiração que o levou a formular a teoria da gravitação universal que os físicos sabem que a natureza é regulada por um conjunto de "números mágicos": constantes fundamentais que têm valores universais (isto é, iguais em todo o Universo), e cujos valores não podem ser deduzidos por cálculos, mas apenas medidos experimentalmente. Encontram-se entre estas a constante da gravitação universal, que determina a força com que, por exemplo, as estrelas e os planetas se atraem, ou a constante da estrutura fina (conhecida por alfa), que governa a interacção entre a luz e a matéria. Ninguém sabe por que estas grandezas têm os valores que têm, mas sabe-se que se fossem ligeiramente diferentes o resultado seria caótico: por exemplo, se alfa tivesse um valor apenas 4% diferente, as estrelas não seria capazes de sintetizar carbono e oxigénio - e, logo, a vida como a conhecemos não seria possível. Assim, alfa - que curiosamente tem um valor de cerca de 1/137 - é um dos números-chave mais importantes da natureza.

Mas um artigo agora publicado pelo físico John Webb , da Universidade da Nova Gales do Sul em Sydney, Austrália, vem sugerir que alfa tem um valor um pouco diferente em regiões remotas do Universo. Ainda mais surpreendente é a conclusão de que a suposta variação do valor de alfa tem uma orientação específica: aumenta para um lado do Universo, e diminui para o outro. No meio estamos nós, onde alfa tem o valor "certo". No quadro da física moderna, esta hipótese é uma autêntica heresia!

Webb e os seus colaboradores retiraram estas conclusões da análise de centenas de observações astronómicas obtidas com o Very Large Telescope (VLT) no Chile. Já há uma década atrás, Webb tinha-se baseado em resultados obtidos no telescópio Keck no Havai para propor que alfa teria variado no tempo, ao observar linhas espectrais da luz emitida por  quasares longíquos, há 12 milhares de milhões de anos atrás. Com este novo resultado, a polémica atingiu um ponto escaldante.

Orfeu Bertolami, astrofísico do Instituto Superior Técnico em Lisboa, está céptico em relação ao trabalho de Webb, e explica os seus motivos: "A independência das leis da física da posição no espaço é um dos pilares fundamentais da teoria da relatividade geral de Einstein, e que, até ao presente, é consistente, com grande precisão, com todos os factos observacionais conhecidos. O resultado das observações de Webb e colaboradores contradiz directamente este preceito basilar da teoria de Einstein."

Carlos Herdeiro, da Universidade do Porto, partilha esta opinião: "A presente observação, a confirmar-se, traz uma novidade algo revolucionária. O paradigma da cosmologia é o 'princípio cosmológico': podemos escolher instante de tempo de modo a que o Universo é essencialmente igual em todo o lado, para um dado tempo. Contudo a presente alegação é que o Universo não é exactamente semelhante em todo o lado, isto é, a física depende da posição espacial."

Bertolami foi um dos participantes no recente simpósio "From Varying Couplings to Fundamental Physics" que decorreu em Lisboa no início de Setembro no contexto do Joint European and National Astronomy Meeting (JENAM 2010), e em que Webb participou através de vídeo-conferência desde a Austrália. Segundo refere, as suas dúvidas e as de muitos outros colegas não foram esclarecidas com esta interacção: "A questão mais preocupante refere-se aos erros sistemáticos inerentes à instrumentação utilizada (os telescópios VLT e Keck) e a dificuldade na selecção das linhas espectrais."

Na sua opinião, estes novos resultados são apenas uma variação da controvérsia iniciada há uma década, com a hipótese da variação de alfa no tempo: "Assistimos agora aos capítulos iniciais da 'novela' da variação espacial. Naturalmente, só a repetição das observações e a reprodução dos resultados por outros grupos de astrónomos poderá confirmar a validade desta alegada dependência." 

Herdeiro acrescenta: "Os resultados (de há dez anos) têm pouco significado estatístico e, após muitas re-análises dos dados, a inexistência de variação encontra-se ainda dentro da barra de erro. Ainda assim, as consequências de uma tal medição seriam tão importantes que muito trabalho teórico e observacional se seguiu às primeiras observações de Webb."

Mas e se Webb estiver correcto e, de facto, algumas constantes universais não o forem? Quais seriam as consequências para a nossa visão do Universo? "Como físico teórico, não vejo nada de particularmente extraordinário acerca da possibilidade de que alfa varie de sítio para sítio no Universo," afirma Bertolami. "É uma hipótese perfeitamente admissível que pode ser acomodada no contexto de muitas teorias mais gerais que a de Einstein." Herdeiro concorda: "Embora haja modelos de física de altas energias onde as constantes fundamentais aparecem naturalmente como campos dinâmicos (como a Teoria de Cordas), a comunidade científica é céptica relativamente a esta hipótese."

Contudo, segundo Bertolami, admitir esta possibilidade significa também reconhecer a nossa incapacidade de progredir em direcção a uma compreensão mais abrangente da natureza: "Até ao conhecimento detalhado desta teoria presumivelmente mais fundamental, teremos que abdicar da magnífica possibilidade de compreender a física do Universo, pois sem esta não sabemos o valor noutros sítios do Universo de grandezas que assumimos terem o mesmo valor em todas as partes. Assim, sem a teoria mais fundamental, a física fica reduzida ao estatuto aristotélico de descrever apenas acontecimentos cosmicamente locais. Uma perspectiva que eu julgo ser muito pouco auspiciosa."
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[Texto de Gonçalo Figueira_Sociedade Portuguesa de Física]

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