22 de mar. de 2011

Francis Bacon_A Grande Reconstrução

Inconscientemente, em meio a seus triunfos, o coração de bacon estava com a filosofia. Fora ela sua aia na infância; era-lhe companheira no cargo publico e ia ser-lhe o consolo na prisão e na adversidade. Bacon lamentava o descrédito em que, segundo pensava, a filosofia caíra, e verberava o árido escolasticismo. “O povo tem  muita propensão a desprezar a verdade, devido as controvérsias travadas em torno dela, e a interpretá-la de modo pejorativo e sem acordo de vistas” [*Progresso da Ciência, VI,3]. “As ciências...permanecem quase estacionárias, sem obter incremento digno da espécie humana;...e toda a tradição e sucessão e escolas é ainda uma sucessão de mestre e discípulos – não de descobridores ...A ciência de hoje não passa de um remoinho em perpetua agitação, a terminar onde principiou” [*Prefacio da Magna Instauratio]. Durante todos os anos de sua ascensão progressiva, ele meditou sobre a restauração ou reconstrução da filosofia:”Meditor Instaurationem philosophiae” [*Redargutio Philosophiarum].

Planejou encontrar todos os seus estudos com esta tarefa. Primeiramente, diz-nos no “Plano da Obra” que ia escrever alguns tratados-introduções expondo a estagnação da filosofia devido a persistência póstuma dos velhos métodos e esboçando as idéias que propunha. Em segundo lugar tentaria fazer uma nova Classificação das Ciências, fixando-lhes a matéria e catalogando os problemas insolvidos em cada um de seus campos. Terceiro, descreveria seu novo método para a Interpretação da Natureza. Quarto, experimentaria por a mão na ciência natural da época e investigar os Fenômenos da Natureza. Quinto, mostraria a Escada da Inteligência, por meio da qual os escritores do passado haviam subido até as verdades que, libertando-se da parolagem medieval, estavam então a tomar forma. Em sexto lugar, tentaria fazer algumas Predições sobre os resultados científicos que, segundo esperava, proviriam do emprego de seu método. E finalmente, como Segunda (ou Aplicada) Filosofia, propunha-se pintar a Utopia a desabrochar daquela ciência em botão, da qual esperava ser o profeta. Tudo isso constituiria a Magna Instauratio, a Grande Reconstrução da Filosofia.
[*As obras de Bacon com seus títulos habituais são principalmente as seguintes:

ð        De Interpretatione Naturae Proemium [Introdução a Interpretação da Natureza, 1603]; Redargutio Philosophiarum [Critica das Filosofias, 1609];
ð        O Progresso da Ciência (1602-5); traduzida como De Augumentis Scientiarum (1622);
ð        Cogita et Visa (Coisas Pensadas e Vistas, 1607); Filum Labyrinthi (O Fio do Labirinto, 1605); Novum Organum (O Novo Organon, 1608-20);
ð        Historia naturalis (Historia Natural, 1622); Descriptio Globi Intelectualis (Descrição do Globo Intelectual, 1612);
ð        Sylvia Sylvarum (Floresta das Florestas, 1623);
ð        De Principis (Sobre as Origens,1621);
ð        A Nova Atlântida (1624);
  • Nota:Todas as obras acima, salvo A Nova Atlântida e o Progresso da Ciência, foram escritas em latim; e a ultima foi vertida para o latim por Bacon e seus auxiliares para fazê-la conhecida na Europa. Como os historiadores e os críticos empregaram sempre os títulos latinos em suas referencias, estes são aqui reproduzidos para melhor orientação dos estudiosos].

Era uma empresa grandiosa e – exceção feita da de Aristóteles – sem precedentes na historia do pensamento. Diferiria de todas as outras filosofias no aspirar, não a teoria, mas a pratica, e antes a benefícios concretos do que a construções especulativas.

O conhecimento é uma força e não mero argumento ou ornato; “não é uma opinião a adotar-se...mas uma obra a ser feita; e eu...estou trabalhando para lançar os alicerces não de alguma seita ou doutrina, mas da utilidade e eficiência” [*Prefacio da Magna Instauratio].E aqui, pela primeira vez, soa a musica da ciência moderna.

1] O PROGRESSO DA CIÊNCIA
Para termos realizações é mister conhecimento. “Não podemos dar ordens a natureza senão quando lhe obedecemos” [*Plano da Obra]. Conheçamos as leis da natureza, que seremos seus senhores, do mesmo modo que agora, em nossa ignorância, somos seus escravos; a ciência é o caminho para o País da Utopia. Mas em certas condições esse caminho tortuoso, escuro, muda de direção, retrocede, perde-se em inúteis desvios e afinal não nos leva para a luz e sim para o caos. Comecemos por isso com uma revista sobre o estado das ciências e demarquemos seus campos próprios e distintivos; “instalemos cada uma delas no seu devido lugar” [*Progresso da Ciência,IV,2]; examinemos-lhes os defeitos, as falhas e as possibilidades; indiquemos novos problemas que devem surgir a luz; e, em geral, “cavemos e revolvamos um pouco a terra em torno das raízes” [*Id., VI,3].

Esta é a tarefa que Bacon se impõe, em O Progresso da Ciência. “É minha intenção”, escreve ele, como um rei penetrando em seus domínios, “dar balanço nos conhecimentos, verificando as partes que jazem ao léu, esquecidas pela industria do homem, tendo em vista estimular as energias dos homens públicos e particulares e cultivá-las”. [*Id.,II,1].

Seria ele o Superintendente Real daquelas terras a desbravar-se; retificaria a estrada e repartiria as glebas pelos lavradores. Plano arrojado que raiava pela imodéstia; mas Bacon era ainda bastante jovem [quarenta e dois anos, para um filosofo, é juventude]. “Reservei como meu quinhão todo o saber humano”, escreveu a Burghley, em 1592; não queria dizer que intentava criar uma prematura Enciclopédia Britânica, mas que seu labor o levaria a todos os campos, como critico e coordenador das ciências, no trabalho da reconstrução social. A magnitude do intento dá majestosa sublimidade a seu estilo, transportando-o, as vezes, aos píncaros da prosa inglesa.

Desta forma dispõe o vasto campo de batalha no qual a investigação humana entre em natural conflito com a resistência e a ignorância humana, e projeta luz em todos os campos. Dá grande importância a filosofia e a medicina; enaltece a ultima como reguladora “de um instrumento musical de muitas e raras qualidades, mas facilmente desafinável” [*De Augmentis Scientiarum,IV]. Reprova, contudo, o inerte empirismo dos médicos seus contemporâneos e a tendência a tratar todas as doenças com a mesma prescrição – habitualmente clisteres. “Nossos médicos são como os bispos que tem as chaves para ligar e desatar e nada mais que isso” [*Progresso da Ciência,IV,2]. Confiam muito na simples experiência casual e incoordenada: cumpre dar mais amplitude a experiência, deitar luz sobre a natureza humana com a anatomia comparada, dissecar e, se necessário, vivissecar; e, sobretudo, organizar um registro, facilmente acessível e inteligivel, das experiências e resultados.

Bacon é de opinião que aos médicos deveria ser licito aliviar e apressar a morte [eutanásia] quando o termo fatal dependesse só de poucos dias e causasse grandes sofrimentos; mas insiste com os médicos para darem-se a estudos mais acurados da arte de prolongar a vida. “É este um novo e ainda desconhecido papel da medicina, embora seja o mais nobre de todos, pois se o puderem por em pratica, a medicina não disporá exclusivamente de tratamentos grosseiros, nem se prestarão honras aos médicos só por serem necessários, mas também como dispensadores da maior felicidade terrena que se possa outorgar aos mortais”. [*Id., IV,2]. Poder-se-ia ouvir a este ponto algum rabujento schopenhaueriano protestar contra a presunção de ser beneficio uma vida mais longa, afirmando, ao invés, que a rapidez com que os médicos põem termo a nossas moléstias é feito digno de todos os louvores. Mas bacon, mesmo cheio de contrariedades, casado e perseguido, nunca duvidou de que a vida, apesar de tudo, fosse um bem precioso.

Em psicologia é quase determinista: exige rigoroso estudo das causas e efeitos na natureza humana e deseja eliminar a palavra acaso do vocabulário da ciência. “Acaso é o nome de uma coisa inexistente” [*Novum Organum, I,60].E o que é no universo o acaso, também o é no homem” [*De Interpretatione Naturae, em NIchol, II,118].Eis aqui um mundo de significação e uma declaração de guerra, tudo condensado em curta linha: é posta a margem, como indigna de discussão, a doutrina escolástica do livre arbítrio; e ele desembaraça-se da universal crença em uma “vontade” distinta da “inteligência”. São coisas essas que Bacon não admite [*Elas são desenvolvidas na Ética de Spinoza, Apêndice L,I]; não é o único caso em que condensa um livro numa frase e despreocupadamente segue avante.

Em poucas palavras, também, Bacon lança uma ciência nova: a psicologia social. ”Os filósofos deveriam diligentemente investigar sobre a força da influencia do costume, exercício, habito, educação, exemplo, imitação, emulação, companhia, amizade, elogio, censura,exortação, reputação, leis, livros, estudos, etc.; pois são as coisas que imperaram na moral humana; o espírito é formado e disciplinado por estes fatores [*Progresso da Ciência, VII,3] Tão ao pé da letra este esboço foi seguido pela nova ciência, que quase parece o índice das obras de Tarde, Lê Bom, Ross, Wallas e Durkheim.

Nada fica fora da ciência ou acima dela. Feitiçarias, sonhos predições, comunicações telepáticas, os “fenômenos psíquicos” em geral, devem ser submetidos ao exame cientifico; “pois não se conhece em que casos, nem a que ponto, os efeitos atribuídos a superstição participam das causas naturais” [*De Augm., IX, em NIchol, II, 129]. Apesar de sua forte propensão naturalista, sente o fascínio destes problemas; do que é humano, nada lhe é alheio. Quem saberá que verdades insuspeitadas e que nova ciência poderão surgir dessas pesquisas, assim como da alquimia desabrochou a química?

“A alquimia pode ser comparada ao homem que disse aos filhos que lhes deixara ouro enterrado em algum lugar na sua vinha; cavando nesta, não encontraram o ouro, mas devido a revolverem a terra junto as raízes da vinha tiveram abundante vindima. Do mesmo modo, as investigações e tentativas para fazer ouro deram origem a muitas descobertas úteis e experiências instrutivas” [*Progresso da Ciência, I].

No livro VIII esboçam-se também os contornos de outra ciência; a do bom êxito na vida. Não tendo ainda caído do poder, Bacon apresenta algumas sugestões preliminares sobre o modo de subir no mundo. O primeiro requisito é o conhecimento: de nós mesmos e dos outros. Gnothe seauton é apenas metade; conhece-te a ti mesmo vale principalmente como meio de conhecer os outros. Devemos cuidadosamente:

Informar-nos sobre as determinadas pessoas com quem teremos de tratar – sobre seu gênio, seus desejos, opiniões, costumes, hábitos. Quais os amparos, auxílios e força em que principalmente confiam, e como obtiveram o poder; os principais fracos e defeitos por meio dos quais elas se franqueiam e se tornam acessíveis; seus amigos, partidos, patronos, dependentes, inimigos, invejosos, rivais; em que ocasião e de que modo são acessíveis...Entretanto a chave mais segura para abrir os espíritos consiste em investigar e apurar seu temperamento ou seus fins e desígnios; os mais fracos e simples são melhor julgados por seus temperamentos; mas os mais prudentes e reservados, pelos seus desígnios...Contudo o caminho mais curto para conseguir-se tudo isto assenta nas três seguintes circunstancias particulares:
ð        I –  Grangear numerosas amizades...
ð        II- Observar um prudente meio termo e moderação entre a soltura da palavra e o silencio...
ð        III- Mais que tudo, porém, não desarmar-se com muita brandura e afabilidade, o que expõe um homem a ofensas e censuras; ao contrário...convêm as vezes manifestar centelhas de um espírito independente e generoso, mas que encerrem, por igual, ferrão e mel. [*Progresso da Ciência, VIII,2].

Os amigos são principalmente para Bacon um meio de atingir-se o poder; sua opinião a esse respeito é a de Machiavel, opinião que seriamos inclinados a atribuir à Renascença se não nos lembrássemos da  bela e desinteressada afeição de Miguel Ângelo e Cavalieri, de Montaigne e la Boetie, e de Sir Philip Sidney e Hubert Laguet [*Confronte-se com o delicioso Iolaus de Edward Carpentier:Antologia da Amizade]. Porventura esta compreensão muito pratica da amizade contribui para explicar a queda de Bacon do poder, bem como de Napoleão; pois, os amigos de um homem raro demonstrarão em suas relações filosofia diferente da com que são tratados.

Bacon chega ao ponto de citar Bias, um dos Sete Sábios da Grécia: ”Amai vosso amigo como se ele fosse tornar-se vosso inimigo e a vosso inimigo como se fosse tornar-se vosso amigo” [*Progresso da Ciência, VIII,2].Não revelemos, nem a um amigo, parte grande em excesso de nossos verdadeiros intuitos e pensamentos; ao conversarmos, atentemos em que nossas perguntas sejam mais numerosas do que nossas opiniões expendidas;e, ao falarmos, fornecer dados e informações, de preferência a manifestar nossas convicções e juízos. [*Ensaios Sobre a Dissimulação e Sobre o Discurso].O orgulho bem manifestado presta auxilio para fazer subir e “a ostentação é mais um defeito em moral do que em política” [*Progresso da Ciência, VII,2]. Neste ponto lembra-nos outra vez Napoleão; bem como o pequeno corso, Bacon era, entre as paredes de sua casa, um homem bastante simples; mas, fora, usava cerimônias e ostentações que julgava indispensáveis para captar a consideração pública.

Dessa maneira Bacon vai de campo em campo, lançando em cada ciência a semente de seu pensamento. Ao cabo dessa revista chega a conclusão de que as ciências não bastam por si mesmas: devem existir fora delas uma força e disciplina para coordená-las e indicar-lhes as metas. “Aqui surge outra grande e poderosa causa de fazerem as ciências somente pequenos progressos, que é a seguinte: não ser possível corrermos bem, quando não determinamos bem a meta a atingir” [*Progresso da Ciência, I, 81].O que a ciência precisa é filosofia – a analise do método cientifico e a coordenação dos objetivos e resultados científicos; sem isto toda a ciência seria superficial. “Pois assim como da janela de um sobrado não pode a vista abranger toda uma região, seria também impossível descobrir as partes remotas e profundas de uma ciência conservando-se uma pessoa no nível da mesma ou sem galgar maior altitude” [*Id., I]. Ele condena o habito de olhar fatos isolados do conjunto, sem considerar a unidade de natureza, como se, diz Bacon, adiantasse querer clarear com uma pequenina vela os recantos de um cômodo resplandecente de luz central.

Mais do que a ciência, é a filosofia a paixão predominante de Bacon; só ela pode proporcionar até a uma vida cheia de tumulto e dor, a grande paz que advêm da compreensão. “O saber domina ou atenua o medo da morte e da adversidade”. Ele cita os grandes versos de Virgilio:

“Felix ui potuit rerum cognoscere causas,
Quique metus omnes, et inexorable fatum,
Subject pedibus, strepitumque Acherontis avari...”
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“Feliz do homem que chegou a conhecer as causas das coisas
e calcou aos pés todos os temores e o inexorável destino e a fragorosa luta do inferno da ambição”.

Talvez seja o melhor fruto da filosofia, fazer que não sigamos o exemplo da incontável ganância, que de continuo nos apresenta o meio industrial em que vivemos. “A filosofia leva-nos primeiro a procurar os bens do espírito; quanto ao mais, ou se suprirá sua falta ou mal nos lamentaremos dela”.[*Id., VIII.2].Um pocuo de filosofia é uma alegria perene.

Exatamente como a ciência, também o governo se ressente da falta de filosofia. Tem esta com a ciência o mesmo parentesco da arte de governar com a política: é um impulso guiado pelo conhecimento completo em vez de tentativas individuais sem escopo. Assim como a cultura do conhecimento se converte em escolasticismo quando divorciada das necessidades reais dos homens e da vida também a política se torna destruidora ao divorciar-se da ciência e da filosofia.

É mau confiarmos o corpo aos charlatães, que comumente dispõem de umas poucas receitas de sua confiança, mas que não conhecem a causa das doenças, nem o organismo dos pacientes, ou os perigos de acidentes ou o verdadeiro método de curar. Da mesma forma é perigoso confiar-se o corpo civil das nações a estadistas empíricos, a não ser que com eles se misture gente de  sólido saber...Embora parecesse parcial favorecendo sua própria classe, quem disse:”As nações seriam felizes se os reis fossem filósofos ou os filósofos fossem reis”, a experiência já demonstrou largamente que os melhores tempos foram aqueles em que governaram sábios e doutos príncipes.[*Progresso da Ciência, I]. E ele rememora os grandes imperadores que governaram depois de Domiciano e antes de Cômodo.

Deste modo Bacon, assim como Platão e todos nós, exaltava a sua profissão, dando-a como a salvação humana. Mas reconheceu, com clareza maior do que Platão [e essa distinção anuncia os tempos modernos], a necessidade de uma ciência especializada e de soldados e exércitos para investigações especializadas. Espírito nenhum, nem mesmo o de Bacon, poderia abranger todo o campo a cultivar, embora o contemplasse do alto que ele era. Bacon necessitava de auxilio e vivamente sentiu sua solidão naquela empresa em que ninguém o auxiliava. “Que companheiro terás em teu trabalho? – pergunta bacon a um amigo. – Sinto-me, quanto a mim, no mais completo isolamento” [*Em Nichol].

Ele sonha com corporações de sábios da mesma especialidade, em cooperação harmônica, e com uma grande organização a fim de mantê-los voltados para o mesmo alvo comum. Imaginem quanto se pode esperar de homens que disponham de tempo, e da conjugação dos seus trabalhos durante gerações sucessivas – e principalmente porque não será como um caminho por onde só possa passar um homem de cada vez [como se dá com o raciocínio], mas no qual, o trabalho e a habilidade de todos [especialmente no referente a coleta de dados experimentais], possam, com o melhor do esforço de cada qual, ser reunidos e distribuídos, e em seguida harmonizados. E os homens só começarão a conhecer a sua força quando, em vez de grande numero deles fazerem a mesma coisa, cada qual se encarregar – um, de uma tarefa e, outro, de outra”. [*Nov.Org.I,113].A ciência, que é a organização do saber, deve, por seu turno, ser organizada. E urge que esta organização seja internacional transpondo as fronteiras e unificando toda a Europa intelectual.”Outra necessidade que noto é obviar a pouca simpatia e ao limitado intercambio de idéias entre as academias ou universidades, não só entre as dos diversos paises da Europa, como também entre as do mesmo país” [*Idem]. Esses institutos devem dividir-se as matérias e problemas, colaborando uns com os outros nas pesquisas, e publicando os resultados. Assim organizadas e unidas, poderíamos julgar as universidades dignas de tal apoio dos reinos, que delas fizessem o que seriam na Terra da Utopia – centro de saber imparcial regedores do mundo. Bacon põe reparo nos “mesquinhos” proventos dos professores de ciências e artes” [*Progresso da Ciência,II,I]; e pressente que assim continuará enquanto os governos não chamarem a si a grande tarefa da educação. “A sabedoria dos mais antigos e melhores tempos sempre lamentava que as nações fossem tão diligentes em matéria de leis e tão remissas a respeito da educação” [*Idem,I]. Seu grande sonho é a socialização da ciência para a conquista da natureza e para maior latitude do poder do homem.

E por isso apela para Jaime I, prodigalizando-lhe lisonjas, que ele sabia serem agradáveis a sua Alteza Real. Jaime era letrado e monarca ao mesmo tempo, e mais se orgulhava de sua pena que de seu cetro; era de esperar-se dele alguma coisa. Bacon diz a Jaime que os planos por ele esboçados são “verdadeiramente opera basílica – uma colossal empreitada – em relação a qual os esforços de um só homem se limitam a ser como uma flecha numa encruzilhada, a indicar o caminho e sem poder trilhá-lo”.

Esse grandioso empreendimento exigiria sem duvida dinheiro; mas “assim como os secretários e espiões dos príncipes e nações apresentam a conta das despesas para obterem informações uteis, deve-se também admitir que os espiões da natureza apresentem suas contas, se não quisermos ignorar muitas coisas dignas de ser conhecidas. E se Alexandre pôs a disposição de Aristóteles tão grande tesouro para pagamento de caçadores, pescadores, e outros profissionais semelhantes, muito mais necessário é fazer-se este beneficio aos que deslindam os labirintos da natureza” [*Progresso da Ciência, II,1].Com esse real amparo a Grande Reconstrução estaria pronta em poucos anos; sem ele, o trabalho demandaria gerações.

O que há de animadoramente novo em Bacon é a solene convicção com que prediz o domínio do homem sobre a natureza. “Eu apostaria tudo pela vitória da arte sobre a natureza”. Aquilo que os homens já fizeram é apenas ligeira mostra das coisas que hão de fazer”. Mas por que esta grande esperança? Não havia já dois mil anos que os homens procuravam a verdade e exploravam os campos da ciência? Por que esperar agora grande êxito, quando em tão grande trajeto de tempo se conseguira, resultado tão modesto? – Responde Bacon: Sim! – Os métodos que os homens usavam eram impróprios e imprestáveis, Não foi isso a causa de, saindo do bom caminho, extraviarem-se as pesquisas em desvios que acabam no ar? Necessitamos de uma revolução implacável em nosso métodos de investigar e pensar, em nosso sistema de ciência e de lógica; precisamos de um novo Organon, melhor que o de Aristóteles e adequado a nosso mundo mais vasto.
E Bacon apresenta a sua obra culminante.

2]O NOVO ORGANON
A maior realização de Bacon”, diz seu mais rigoroso critico, “é o primeiro livro do Novum Organum” [*Macaulay, op, cit., pg.92]. Jamais homem algum pôs mais vida na lógica, fazendo da indução uma aventura épica e uma conquista. Quem quiser estudar Lógica deve começar por esse livro. “A parte da filosofia humana que trata da lógica desagrada ao paladar de muitos, não se lhes figurando senão uma rede, um laço de sutilizes espinhosas...Mas se quisermos dar o justo valor as coisas, reconheceremos que as ciências racionais são a chave do resto” [*Progresso da Ciência, V, 1].

A filosofia foi estéril tanto tempo, diz Bacon, pela falta de um método de torná-la fecunda. O grande erro dos filósofos gregos foi terem dedicado muito tempo a teoria e pouco a observação. Ora, o pensamento pode ser auxiliar, mas não substituto da observação. Diz o primeiro aforisma do Novum Organum, como a lançar um desafio a toda a Metafísica: ”O homem, ministro e interprete da natureza, só faz e compreende tanto quanto lhe permitem suas observações sobre a natureza das coisas; mais do que isso não conhece, nem é capaz de conhecer”.

Os antecessores de Sócrates eram a este respeito mais bem avisados que os filósofos que se lhes sucederam; Demócrito, principalmente, possuía mais faro para os fatos do que olhos para as nuvens. Não admira que a filosofia progredisse tão pouco desde Aristóteles, pois que se pusera a usar os métodos deste. “Querer ultrapassar Aristóteles empregando a luz de Aristoteles é acreditar que uma luz de empréstimo pode exceder em brilho o foco de sua origem” [*Valerius Terminun].E agora, após moer-se lógica, por dois mil anos, na maquina inventada por Aristóteles, a filosofia caíra tão baixo que já ninguém lhe prestava culto. Teorias, teoremas, disputas da Idade Media tudo devia ser jogado fora e esquecido; para se renovar, a filosofia deveria começar de novo com ardósia limpa e espíritos também limpos.

O primeiro passo, por conseguinte, era o Expurgo da Inteligência. Devíamos como que converter-nos em crianças, tornando-nos incontaminados de teorias e abstrações, purificados de prejuízos e idéias preconcebidas. Devíamos destruir os Ídolos do espírito.

Um ídolo, conforme a significação dada por Bacon a esta palavra [talvez reflexo do repudio, pelos protestantes, da adoração das estatuas], é uma imagem tomada como realidade, um pensamento que por engano é tido como coisa. Disto derivam erros; e o primeiro problema  da lógica é descobrir e estancar as fontes desses erros. Bacon procede então a uma analise justamente famosa das de tais erros. “Homem nenhum”, disse Condilac, “conheceu melhor do que Bacon as causas dos erros humanos”.

Estes erros são, primeiro, os Ídolos da Tribu – erros naturais a humanidade em geral. “Pois sobre os sentidos do homem foi falsamente asseverado [por Protágoras, com o seu:O Homem é a medida de todas as coisas] serem eles a craveira de tudo; pelo contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como do espírito, apenas se referem ao homem e não ao universo; e o espírito humano assemelha-se aos espelhos de superfície desigual, que comunicam suas próprias qualidades aos diferentes objetos...e os deformam e desfiguram”. [*Nov. Org.I, 41]. Nossos pensamentos são mais imagens nossas, do que dos objetos respectivos. Por exemplo: ”a inteligência humana, devido a sua natureza peculiar, facilmente admite a existência de maior grau de ordem e regularidade nas coisas do que na realidade existe....Daí a ficção de que todos os corpos celestes descrevem círculos perfeitos [*Id., I, 45].Ainda mais,

...depois de assente alguma proposição [quer pelo assenso e crença gerais, quer pelo prazer que proporciona], o entendimento humano força tudo o mais a lhe dar novo apoio e confirmação: e embora possam existir em contrário os mais flagrantes e numerosos exemplos, não os observa, ou então os despreza, ou refuta-os estabelecendo alguma distinção, impelido pelo seu estranhado preconceito, preferindo isso a sacrificar a autoridade das primeira conclusões. Boa resposta foi daquele homem a quem mostraram em um templo os retratos votivos ali pendurados pelos que haviam escapado de um naufrágio, e a quem perguntavam com insistência se não reconhecia com isso o poder dos deuses...- Mas onde estão os retratos dos que apesar de seus votos morreram? – Todas as superstições são iguais, sejam de astrologia, ou sonhos, presságios, males sofridos como castigo, e coisas semelhantes, em todas as quais as pessoas crédulas e iludidas observaram que ocorreram mas não registram os ocorridos, embora sejam estes muito mais comuns [*Id., I, 46].

“Primeiramente, uma pessoa determina a questão de acordo com sua vontade; depois recorre a experiência e, torcendo esta de conformidade com os seus desejos, condu-la como um escravo em um préstito” [*Id., I, 63].Em suma, “a inteligência humana não é puramente uma luz: encerra em si contribuições da vontade e dos sentimentos, e disso resultam as ciências que podemos chamar “ciências como se desejam”...Pois um homem crê mais facilmente naquilo que antes já acreditava ser a verdade” [*Id., I, 49].E não é mesmo assim?

Neste ponto Bacon dá conselhos de ouro. “Todos os que estudam a natureza devem adotar como regra que, se seu espírito apreende e retêm uma coisa com particular satisfação, há que desconfiar dessa descoberta, e que ao tratar de tais questões deve ter muito mais cuidado de conservar o espírito calmo e lúcido” [*Id., I,58]. “Não se deve deixar o espírito saltar e voar dos particulares para os axiomas remotos e da mais alta generalidade;...convem não se lhe darem asas, e, sim, de preferência, pendurar-lhe pesos para impedir-lhes os pulos e vôos” [*Nov Org., 104]. A imaginação pode ser a maior inimiga da inteligência, quando não se limita a prestar-se, unicamente, a suas tentativas e experiências.

A uma segunda classe de erros, Bacon denomina Ídolos da Caverna – são os erros peculiares ao homem individualmente considerado. “Pois todos tem sua caverna ou cova particular, que refrange e descora a luz natural”; é o seu caráter, conforme o formou a natureza ou a alimentação, ou a sua disposição ou condição de corpo e espírito. Alguns espíritos, v.gr., são fundamentalmente analíticos e em tudo vêem diferenças; outros são fundamentalmente sintéticos e vêem similitudes; desse modo temos, de um lado, o cientista e o pinto; e, de outro, o poeta e o filosofo. Ainda mais, “alguns temperamentos acusam admiração ilimitada pelas coisas antigas e outros anseiam por novidades; somente poucos podem manter-se no justo  meio, sem repelir o que os antigos criaram com acerto, nem desdenhar as convenientes inovações dos modernos” [*Id., I, 56].Para a verdade não há partidarismos.

Em terceiro lugar vem os Ídolos do Mercado, proveniente “do comércio e associação dos homens”. Porquanto os homens para conversarem, utilizam-se da linguagem; mas as palavras se impõem de conformidade com a inteligência da multidão; e disso dimana uma criação de palavras más e inadequadas, que obstruem consideravelmente o espírito [*Nov Org., i, 43]. Os filósofos manipulam os infinitos com a tranqüila segurança com que os gramáticos manejam os infinitivos; e poderá algum homem saber o que é esse infinito ou se este verdadeiramente teve o trabalho de existir? Falam os filósofos sobre “causas primeira não causadas” e “primeiro motor não movido”; mas não serão frases-folhas-de-figueira para cobrir a nudez da ignorância e que talvez indiquem, em quem as usa, uma consciência culposa? Toda cabeça clarividente e honesta sabe não poder existir causa nem motor não movido. Talvez a maior reconstrução da filosofia seja simplesmente esta – fazer-nos deixar de mentir.

“Há finalmente ídolos que dos vários dogmas dos filósofos e também das más leis de demonstração emigraram para o espírito dos homens. A estes chamo Ídolos do Teatro, porque em meu juízo os sistemas de filosofia são outros tantos palcos que representam os mundos de sua própria criação de um modo irreal e dramatizado...E nas peças desse teatro filosófico observareis a mesma coisa que se nota no teatro dos poetas, isto é, que as historias inventadas para o palco são mais condensadas e elegantes, mais do que desejaríamos que o fossem, e mais do que as histórias verdadeiras tiradas da História” [*Nov.Org.I,84].O mundo como Platão o descreve é meramente um mundo edificado por Platão e pinta mais Platão do que o mundo.

Jamais iremos longe, em nossas procura da verdade, se, a cada passo, até os melhores dentre nós estiverem a embaraçar-se com esses ídolos. Necessitamos de novos métodos de raciocinar, novos instrumentos para a inteligência. “E assim como nunca se descobririam as imensas regiões das Índias se primeiro não se conhecesse o uso da bússola, não admira que a descoberta e o desenvolvimento das artes não haja feito maiores progressos, quando a arte de inventar e descobrir continua até agora desconhecida” [*Progresso da Ciência, V.2]. ”E certo seria desairoso que, tendo sido as regiões do globo material...em nosso tempos amplamente desvendadas e reveladas, continuasse o mundo intelectual confinando entre os estreitos limites das antigas descobertas” [*Nov,Org., I,84].

Nosso embaraços são devidos aos dogmas e deduções; não encontramos novas verdades porque tomamos alguma venerável mas duvidosa proposição como indiscutível ponto de partida e nunca pensamos em submeter essa presunção a prova da observação ou da experiência. Ora, “se um homem começar com incertezas, acabará em duvidas; mas se no começo se contentar com duvidas, acabará com certezas”. Esta é uma nota comum ao alvorecer da filosofia moderna, parte de sua proclamação de independência; Descartes também iria falar da necessidade da “duvida metódica” como de um requisito dissipador das nevoas que conturbam o pensamento honesto.
Bacon empreende uma admirável descrição do método cientifico de investigar. “Existe a simples experiência, a qual, se tomarmos como se manifesta, chama-se acidente” [empírica];”e, se for provocada, experimentação...O verdadeiro método da experimentação primeiro acende a vela” [hipótese] “e em seguida, por meio da vela, mostra o caminho” [ordena e delimita a experiência]; começa-se com experiências bem determinadas e na devida ordem e não tumultuarias ou causais, e dela induzem-se axiomas, e dos axiomas estabelecidos voltamos outra vez a novas experiências” [*Nov Org.I,82]. [Temos aqui – como em outra passagem que se refere aos resultados das experiências iniciais como primeira coleta necessária para se prosseguirem as pesquisas – um explicito, embora inadequado reconhecimento da necessidade da hipótese, experiência e dedução que alguns críticos de Bacon supõem que lhe tivessem completamente escapado]. Devemos recorrer a natureza e não a livros, tradições e autoridades; devemos “por a natureza no cavalete de tortura, obrigando-a a prestar seu testemunho” até contra si própria, de forma a podermos dominá-la para servir a nosso fins. Devemos concatenar, com elementos de toda a parte, uma “historia natural” do mundo, construída com as investigações combinadas dos cientistas da Europa. Necessitamos da indução.

Mas indução não significa “simples enumeração” de todos os dados; como bem se concebe, isto seria infindável e inútil; nenhum amontoado de material constitui por si mesmo uma ciência. Seria o mesmo que “perseguir uma caça em campo aberto”; devemos restringir e fechar o campo afim de apanhar nossa presa. O método da indução deve encerrar uma técnica para a classificação dos dados e eliminação das hipóteses, de modo que com o cancelamento sucessivo de explicações possíveis apenas sobre, afinal, uma só. Talvez que o mais útil elemento desta técnica seja a “tábua de graus ou de variação que enfileira exemplos em que duas qualidades ou condições aumentam ou diminuem juntas, e assim revelam, presumivelmente, uma relação casual entre fenômenos que variam simultaneamente. Assim, a pergunta:”Que é o calor?” Bacon procura algum agente que aumente com o aumento do calor e diminua com sua diminuição; e depois de longa analise encontra uma correlação exata entre o calor e o movimento; e a conclusão de que o calor é uma forma de movimento constitui uma de suas poucas contribuições particulares para a ciência natural.

Com esta insistente acumulação e analise de dados, chegaremos, no dizer de Bacon, a forma dos fenômenos que estudamos – a sua natureza secreta e intima essência. A teoria das formas de Bacon é semelhantissima a teoria das idéias de Platão: uma metafísica da ciência. “Quando falamos em formas não significamos outra coisa a não ser as leis da atuação simples que ordenam e determinam fatos simples da natureza...Por isso, a forma do calor ou a forma da luz significam unicamente a lei do calor e a lei da luz” [*Nov.Org., II,13,17].[Com idêntico arrojo Spinoza iria dizer que a lei do circulo é a sua substancia].”Pois embora nada exista na natureza tirante corpos individuais manifestando claramente efeitos individuais de acordo com leis particulares, mesmo assim, em cada ramo de conhecimento, aquelas mesmas leis – sua investigação, descoberta e desenvolvimento – são a base tanto da teoria como da pratica”. [8Idem,II,1].

Da teoria e da pratica; uma sem a outra seria inútil e perigosa; o saber que não gera realização pratica é coisa pálida e anêmica, indigna da humanidade. Esforçamo-nos para conhecer as formas das coisas não por causa dessas formas e sim porque, conhecendo-lhes as formas, as leis, podemos refazer as coisas a imagem de nosso desejo. Por essa razão estudamos matemáticas para aprender o calculo das quantidades e construir pontes, estudamos psicologia para nos orientarmos na selva da sociedade. Quando a ciência houver aprendido suficientemente as formas das coisas, o mundo passará a ser simplesmente o material bruto para qualquer utopia que o homem resolver edificar.

3] A UTOPIA DA CIÊNCIA
Atingida a perfeita ciência e, em seguida, a perfeita ordem social por meio de nosso domínio sobre a ciência, teríamos uma verdadeira Utopia. Tal é o mundo que Bacon nos descreve em seu breve fragmento e ultimo trabalho. A Nova Atlântida, publicado dois anos antes de sua morte. Wells considera que o “maior serviço prestado por Bacon a ciência” [*Esboço de Historia,c ap. XXXV, num.6] foi traçar-nos, embora em ligeiro esboço, o quadro de uma sociedade em que por fim a ciência ocupa o seu devido lugar de dominadora das coisas; foi um magnífico trabalho de imaginação que fez que durante três séculos um grande exercito de soldados da campanha do saber e da invenção contra a ignorância e a pobreza tivesse em mira uma alvo determinado. Nessas poucas paginas vemos a essência e a ‘forma’ de Francis Bacon, a lei de seu ser e de sua vida, a secreta e pertinaz aspiração de sua alma.

Narrou-nos Platão no Timeu [*Esboço de Historia, cap.XXXV, num.6]a velha lenda da Atlântida, o continente submerso dos mares ocidentais. Bacon e outros autores identificaram a nova América de Colombo e de Cabot com essa velha Atlântida; o grande continente não submergira; o que desaparecera fora a coragem dos homens de se meterem ao mar largo. Estando agora conhecida essa velha Atlântida, que parecia habitada por uma raça de indivíduos bastante fortes, mas não muito parecidos com os brilhantes utopienses da fantasia de Bacon, ele imaginou uma nova Atlântida, uma ilha daquele remoto Pacifico que somente Drake e Magalhães haviam atravessado, ilha bastante afastada da Europa e do conhecimento dos homens, afim de mais livremente poder dar largas a imaginação.

A historia principia do modo mais artisticamente sem arte, como as celebres narrativas de Defoe e de Swift. “Zarpamos do Peru [onde havíamos estanceado um ano inteiro] pelo Mar do Sul, em direção a China e ao Japão”. Sobreveio grande calmaria, o que deu causa a permanecermos varias semanas parados na extensão sem limites das águas, como manchas na superfície de um espelho; enquanto isso, minguavam dia a dia as provisões. Depois, ventos impetuosos impeliram os navios cada vez mais para o norte, para longe do sul semeado de ilhas para o infinito deserto do mar.

Reduziam-se cada vez mais as rações; a tripulação adoeceu. Afinal, quando já se haviam conformado com a morte, os navegantes sem quase dar fé ao testemunho de seus olhos, avistaram uma bela ilha. A proporção que se aproximavam, não viam na praia selvagens e, sim, homens em trajes singelos e manifestamente de inteligência bem desenvolvida. Permitiram-lhes que desembarcassem, mas avisaram-nos de que o governo da ilha não consentia que os estrangeiros nela permanecessem. Todavia, como os marinheiros estavam doentes, podiam ficar em terra até se restabelecerem.

Durante as semanas da convalescença, desvendou-se, dia a dia, aos navegantes o mistério da Nova Atlântida, “Há cerca de mil e novecentos anos”, contou-lhes um dos ilhéus, “reinava aqui um rei cuja memória deveremos adorar mais do que as dos outros reis...Seu nome era Solamona e veneramo-lo pelas leis que deu a esta nação. Tinha um grande coração e todo o seu desejo era tornar felizes seu reino e seus vassalos” [*A Nova Atlântida, Imprensa da Universidade de Cambridge, 1900,pág. 20]. “Entre os excelentes atos deste rei, um deles sobremaneira se salientou. Foi a criação e instituição da Ordem chamada “Casa de Salomão”, a mais nobre das instituições, a nosso ver, que jamais tinha existido na terra, verdadeiro farol deste reino” [*Id., pág.22].

Segue-se aqui uma descrição da Casa de Salomão, complicada demais para uma abstrata e rápida citação, mas bastante eloqüente para arrancar ao hostil Macaulay a opinião de que  “não se encontra em nenhuma composição humana trecho mais eminentemente realçado de profunda e serena filosofia” [*Id., pág.XXV]. A Casa de Salomão, na Nova Atlântida, desempenha o papel do Parlamento em Londres; é a sede do governo na ilha. Mas lá não existem políticos, nem arrogantes “pessoas com privilégios”, nem “palanfrorio patriótico”, como diria Caryle, nem partidos, reuniões de diretórios, câmaras baixas, convenções, campanhas eleitorais, conluios, cartazes, editoriais, discursos, mentiras e eleições; a idéia de desempenhar função publica com meios não teatrais parece nunca haver entrado nas cabeças daqueles atlantinos. Mas o caminho para as cumiadas da fama cientifica acha-se aberto a todos e só os que por ele viajarem tomam parte nos conselhos da nação. É o governo do povo e para o povo por meio dos melhores escolhidos de entre o povo; um governo de técnicos, arquitetos, astrônomos, geólogos, biologistas, físicos, químicos, economistas, sociólogos, psicólogos e filósofos. Bastante complicado; mas imagine-se: um governo sem políticos!

Governa-se, em verdade, pouquíssimo na Nova Atlântida; seus dirigentes empenham-se mais em senhorear a natureza do que em governar os homens. “O Fim de Nova Instituição é o Conhecimento das Causas e da constituição intima das coisas, e a dilatação dos limites do império do homem para a realização de todas as coisas possíveis” [*A Nova Atlântida, pág.34]. Esta é a sentença-chave do livro e de Francis Bacon. Encontramos ai os governadores a darem-se a ocupações modestas como observar as estrelas, procurar utilizar para a industria a força das quedas d’água, desenvolver o estudo de gases para a cura de várias moléstias [*Confronte-se com o relatório dos químicos do Ministério da Guerra, sobre o uso dos gases de guerra para a cura de moléstias, no “New York Times”, de 2 de maio de 1923]. Fazer experiências em animais para obter conhecimentos cirúrgicos, cultivar novas variedades de plantas e animais por meio do cruzamento, etc.

“Imitamos o vôo das aves. Já conseguimos voar um pouco. Temos navios e botes para navegar em baixo d’água”. Há trafico com o estrangeiro, mas de espécie inusitada; a ilha produz o que consome, e consome o que produz; e não empreende guerras para conquistar mercados externos. “Temos importação mas não de ouro, prata ou jóias, nem de sedas, especiarias ou outra qualquer substancia: mas só da primeira coisa criada por Deus, que foi a luz; de toda a luz surgida em todas as partes do mundo” [*A Nova Atlântida, pág.24]. Estes “Mercadores de Luz” são membros da Casa de Salomão, enviados de doze em doze anos ao estrangeiro, para viver entre as gentes de todos os países civilizados, afim de aprender a língua e estudar as ciências e literaturas; ao regressar, ao cabo de doze anos, relatam o que aprenderam ao chefes da Casa de Salomão; e nova turma de exploradores científicos vai substituí-los no estrangeiro. Por esse modo o melhor do mundo chega logo a Nova Atlântida.

Embora assim resumindo, vemos aqui o esboço da utopia de todos os filósofos -  isto é, um povo governado na paz e em modesta abundancia pelos seus homens, mais sábios. O sonho de todo o pensador é substituir o político pelo cientista; e por que continua a ser sonho depois de tanto se manifestar? Será que o pensador é sonhador em excesso para entrar na arena da vida pratica e convertes suas concepções em realidades? Será que a grosseira ambição das almas pequeninas e gananciosas está destinada a triunfar sempre sobre as delicadas e escrupulosas aspirações dos filósofos e dos santos? Ou não terá ainda a ciência chegado a maturidade e ao poder consciente de si mesma? Ou por que somente em nossos dias os químicos e sos técnicos começam a ver que o papel crescente da ciência, na industria e nas guerras, os torna o eixo da estratégia social? Tempo não virá em que suas forças bem articuladas convencerão o mundo a chamá-los para assumirem a soberania? A ciência quiçá, ainda não mereceu ser a senhora do mundo; mas talvez dentro em pouco o mereça.