Paris:Édipo
Em 1742, em Paris, Voltaire ensaiava Mlle.Dumesnil,tentando fazê-la guindar-se as culminâncias do trágico em sua peça Mérope. Ela queixava-se de que precisava ter o diabo no corpo para simular o arrebatamento de paixão que Voltaire exigia. “É exatamente isso”, respondeu Voltaire; “precisa-se ter o diabo no corpo para se triunfar em qualquer arte” [*Tallentyre:Vida de Voltaire, 3ª. Edição, pág.145]. Tanto seus críticos como seus inimigos admitiram que Voltaire possuía integralmente este requisito. “Il avait lê diable au corps” disse Sainte-Beuve [*Retratos do Século Dezoito, Nova York, 1905, vol.1, pág.196]; e De Maistre escreveu que ele era um homem “a quem o inferno conferia todo o seu poder” [*Brandes:As principais Correntes Literárias do Século Dezenove, vol.III, pág.107].
Desabusado, feio, fátuo,jactanciosos, devasso, inescrupuloso e as vezes até desonesto – Voltaire era homem possuidor dos defeitos de seu tempo e de seu país, mal lhe faltando um só deles. E no entanto esse mesmo Voltaire foi infatigavelmente bondoso, dedicado, pródigo de sua energia e de sua bolsa, tão pronto a auxiliar os amigos como a esmagar os inimigos, capaz de matar com uma penada e sentindo-se desarmado a primeira iniciativa de reconciliação – tão contraditório é o homem!
Mas todas estas qualidades, boas e más, eram secundárias, não constituíam a essência de Voltaire; nele o fundamento e o assombroso era a inexaurível fecundidade e a centelhação de seu espírito. Suas obras enchem noventa e nove volumes; cada pagina é rutilante e frutífera, posto que borboleteie de assunto em assunto tão volúvel e resolutamente como uma enciclopédia. “Minha função é dizer o que penso” [*Tallentyre, pág.32]; e o que ele pensava era sempre digno de ser dito, e o que dizia era sempre incomparavelmente bem dito. Se hoje não o lemos mais [embora homens como Anatole France tenham formado o espírito em sutileza e bom senso abeberando-se em suas paginas] é porque as batalhas teológicas em que se empenhou já não nos interessam; baldeamo-nos para outros campos de batalha e estamos mais absorvidos pela economia desta vida do que pela geografia da vida seguinte: foi a própria vitória completa de Voltaire sobre o clericalismo e a superstição que estacou estas fontes por ele encontradas borbotantes.
Muito de sua fama, também, provinha de sua inimitável conversação; mas scripta manent, verba volant – as palavras escritas ficam e as faladas vão-se –e, como estas, as palavras aladas de Voltaire. O que ele nos deixou é em demasia a sua carne e muito pouco a divina flama de seu espírito. Mesmo assim, mau grado a penumbra em que o vemos pela objetiva do tempo, que cintilante espírito! – “pura inteligência a transmutar cólera em facécia, fogo em claridade” [*J.M. Robertson: Voltaire, Londres, 1922, pág.67]; “uma criatura de ar e flamas, a mais excitável que tenha existido, composta de átomos mais etéreos e vibráteis do que os dos outros homens; nenhum existe de mecanismo mental mais delicado, nem cujo equilíbrio seja, a um tempo, mais móvel e mais perfeito” [*Taine: O Antigo Regime, Nova York, pág. 262].Não seria ele, talvez, a máxima energia intelectual de toda a história?
Não há duvida que labutou mais esforçadamente e realizou mais coisas do que qualquer outro homem de sua época. “Não estar ocupado e não existir são uma e a mesma coisa”, afirmou ele...”São boas todas as pessoas, exceto as ociosas”. Disse seu secretario que Voltaire só era avaro de seu tempo [*Voltaire: Romances, Nova York, 1889, pág.23]. “Para fazermos a vida suportável, devemos trabalhar o mais possível...Quanto mais me adianto em anos, mais acho necessário o trabalhar. Com o curdo do tempo isto se torna o maior dos prazeres e ocupa o lugar das ilusões da vida” [*Em Sainte-Beuve, I, 226]. “Se não desejais suicidar-vos, estai sempre ocupado com alguma coisa” [*Tallentyre, 93].
O suicídio naturalmente tentou-se sempre, pois estava sempre a trabalhar. “Foi porque teve tal virtude mental que encheu com sua vida toda uma época” [*Morley: Voltaire, LOndre, 1878, pág 14]. Tendo vivido em um dos maiores séculos [1694-1778], foi dele a alma e a essência. “Dizer Voltaire”, escreveu Vitor Hugo, “é caracterizar todo o século dezoito” [*Centenário de Voltaire]. A Itália teve a Renascença; a Alemanha, a Reforma; a França teve Voltaire; ele foi para seu país Renascença e Reforma juntamente, e meia Revolução Francesa. Tinha o ceticismo antisseptico de Montaigne e o sadio humorismo terreno de Rabelais; combateu a superstição e a corrupção mais feroz e eficazmente do que Lutero ou Erasmo, Calvino, Knox ou Melanchthon; ajudou a fabricar a pólvora com que Mirabeau e Marat, Danton e Robespierre fizeram voar pelos ares o Antigo Regime: “Se julgamos pelo que fizeram”, disse Lamartine, “Voltaire será incontestavelmente o maior escritor da Europa moderna...O destino concedeu-lhe oitenta e três anos de vida, para que ele pudesse, lentamente, destruir aquela época decadente; dispôs de tempo para combater o tempo; e, ao tombar, era o vencedor” [*Romance, págs VI e IX].
DE fato, jamais escritor exerceu tanta influencia enquanto vivo. Apesar do exílio, da prisão e da condenação de quase todos os seus livros pelos melindrosos potentados da Igreja e do Estado, ele abriu rompentemente caminho para sua verdade, até que, afinal, o cortejavam reis, papas e imperadores, tremiam tronos a sua presença e metade do mundo prestava ouvidos para não perder uma sua palavra. Era uma época em que muitas coisas pediam um grande demolidos; “pediam leões do riso”, como disse Nietzsche; pois bem: Voltaire veio e “tudo aniquilou com o riso” [*Tallentyre, 525]. Ele e Rousseau foram as duas vozes de um vasto processo de transição econômica e política da aristocracia feudal para a soberania da classe media.
Quando uma classe que se ergue encontra embaraços nas leis ou nos costumes, apela dos costumes para a razão e das leis para a natureza - precisamente como resplendem em forma de idéias os desejos em conflito no individuo. Por esse motivo a burguesia rica defendeu o racionalismo de Voltaire e o naturismo de Rousseau; urgia enfraquecer os velhos usos e costumes, renovar e robustecer o sentimento e o pensamento, preparar o espírito para as experiências e mudanças, antes que a grande Revolução pudesse sobrevir. Não que Voltaire e Rousseau fossem causas dela; talvez fossem, em vez disso, resultados das forças que estuavam e empolavam a superfície da vida francesa; seriam como a luz e o esplendor do fogo vulcânico. A filosofia é para a historia o que a razão é para o desejo; em ambos os casos um processo inconsciente determina, de baixo, o pensamento consciente do alto.
Não devemos, entretanto, levar ao excesso o esforço de retificar a tendência dos filósofos de exagerarem a influencia da filosofia. Vendo na prisão do Templo as obras de Voltaire e Rousseau, Luiz XVI, prisioneiro, disse: ”Esses dois homens destruíram a França” [*Tallentyre, 525] – o que significava: sua dinastia. “Os Bourbons poderiam conservar-se no trono”, observou Napoleão, “se tivessem fiscalizado os implementos de escrever. O advento do canhão matou o feudalismo; a tinta matará a moderna organização social” [*Bertaut, Napoleão, por suas Próprias Palavras, Chicago, 1916, pg.63]. “Os livros governam o mundo”, disse Voltaire, “ou pelo menos as nações que conhecem a linguagem escrita; as outras não entram em linha de conta”. “Nada liberta como a educação”; - e Voltaire procurou libertar a França; “Quando uma nação começa a pensar é impossível detê-la” [*Tallentyre, 101]. E com Voltaire a França começou a pensar.
“Voltaire”, isto é, François Marie Arouet, nasceu em Paris em 1694, filho de abastado notário e da mãe um tanto aristocrática. Ele devia, talvez, ao pai a sagacidade e a irascibilidade e a mãe, algo de sua leviandade de espírito. Por um triz que deixou de vir ao mundo; a mãe não lhe sobreviveu ao nascimento; era tão franzino e doentio que a ama não lhe deu mais de um dia de vida. A ama errou ligeiramente, pois Voltaire viveu quase oitenta e quatro anos; mas por toda a vida seu organismo frágil atormentou como moléstias seu indomável espírito.
Tinha Voltaire como bom modelo a um irmão mais velho de nome Armand, rapaz piedoso que se tomou de amores pela heresia jansenista e cuja fé desafiava o martírio. Disse Armand a um amigo que lhe dava conselhos cautelosos: “Se não queres ser enforcado, pelo menos não impeças que os outros o sejam”. O pai comentou que tinha filhos idiotas - um em verso e outro em prosa. O fato de François já fazer versos quase ao tempo em que aprendeu a escrever o nome convenceu ao pai notário, de espírito muito pratico, que nada de bom dele poderia esperar. Mas a celebre hetera Ninon de I’Enclos, que residia na cidade provinciana para onde os Aroures se mudaram após o nascimento de François, viu no adolescente sinais de grandes aptidões – e ao morrer deixou-lhe 2.000 francos para comprar livros.
Sua educação começou com isto e com um abade dissoluto [espécie de Jérome Coingnar em carne e osso] que lhe ensinou o ceticismo de mistura com rezas. Mais tarde, seus outros educadores, os jesuítas, deram-lhe o melhor instrumento do ceticismo ensinando-lhe a dialética – a arte de provar tudo e, por conseqüência, o habito de não crer em coisa alguma. François sentiu gosto pela argumentação; enquanto os meninos se divertiam no campo dos jogos, ele, com doze anos, ficava-se longe, a discutir teologia com doutores.
Chegada a época de ganhar a vida, escandalizou o pai manifestando o desejo de adotar a literatura como profissão. “A literatura”, ponderou-lhe Mr.Arouet, “é a profissão dos que querem ser inúteis a sociedade, um fardo para os parentes e morrer de fome”; pode-se ver em mente a mesa a tremer com o murro que acompanhou essas palavras enérgicas. E foi assim que François enveredou pela carreira das letras.
Não que fosse rapaz sossegado e só as voltas com os livros; queimava a meia-noite o azeite... alheio. Demorava-se fora de casa até tarde, com jovens trocistas de espírito ou os fanfarrões da cidade, a praticar infrações dos mandamentos. Um dia o pai, exasperado, remeteu-o a um parente em Caen, com recomendação de prender o rapaz o mais possível. Mas o carcereiro, conquistado pelo seu espírito, logo lhe deu rédeas soltas. Após a prisão, como se daria mais tarde, foi o exílio: o pai mandou-o para Haya com o embaixador francês, pedindo-lhe muita vigilância sobre o amalucado rapaz; mas François apaixonou-se incontinenti por uma damazinha, “Pimpette”, com a qual entrou a ter freqüentes entrevistas secretas; escrevia-lhe cartas ardentes que findavam sempre com o estribilho:”Amar-te-ei eternamente”. O caso foi descoberto e Voltaire recambiado para o pai. Ao fim de algumas semanas esqueceu Pimpette.
Em 1715, orgulhoso com os seus vinte e um anos, foi para Paris e chegou no momento da morte de Luiz XIV. Como o Luiz que lhe sucedeu fosse em excesso jovem para governar a França e, muito menos, Paris, caiu o poder em mãos de um regente; durante esse interregno a vida correu tumultuosa na capital do mundo, e a do jovem Arouet se harmonizava com esse estado de coisas. Em breve adquiriu a reputação de espírito brilhante e afoito. Quando o Regente, por economia, vendeu metade dos cavalos dos estábulos reais, François, observou que economia muito sensível ele faria se despedisse metade dos asnos que atulhavam a corte real. Por fim, atribuíam-lhe a paternidade de todas as coisas chistosas e ferinas cochichadas em Paris; por infelicidade havia entre elas duas poesias que acusavam o Regente de desejar usurpar o trono. O Regente enfureceu-se; e encontrando-se com o jovem, no parque, disse-lhe: “Sir. Arouet, aposto que poderei mostrar-lhe uma coisa que o senhor ainda não viu”. “Qual?” “O interior da Bastilha”. Arouet viu-a no dia seguinte. 16 de abril de 1717.
Na Bastilha adotou, por motivo ignorado, o pseudônimo de Voltaire [*Carlyle supunha ser o anagrama a-r-o-u-e-t-1-.j [Je jeune, Junior]. Mas parece ter existido este nome na família da mãe de Voltaire] e tornou-se poeta acabado. Antes de lá estar onze meses escrevera um longo poema épico não destituído de mérito, a Henriqueida, narrando a historia de Henrique de Navarra. O Regente então, havendo porventura descoberto que prendera um inocente, soltou-o e deu-lhe uma pensão; Voltaire escreveu-lhe agradecendo-lhe o haver-se preocupado com seu sustento e pedindo-lhe permissão para de então por diante ele próprio se preocupar com a sua moradia.
Quase de um pulo passou da prisão para o palco. Sua tragédia Édipo foi representada em 1718 e bateu todos os recordes parisienses, sendo levada a cena quarenta e cinco noites seguidas. Seu velho pai, que fora censurá-lo, escondia, sentado em um camarote, seu contentamento, resmungando a cada lance sensacional: “Oh! O maroto! O maroto!”.Quando após a representação o poeta Fontenelle foi ver Voltaire e lhe condenou a peça com um louvor excessivo, dizer ser “mui-brilhante para uma tragédia”, Voltaire redargüiu, sorrindo: “Preciso reler as suas pastorais” [*Robertson, 67].O rapaz andava de veia para cautelas ou cortesias; pois não chegara a encaixar na peça os seguintes versos atrevidos?
*Nossos padres não são o que pensam os simples;
Seu saber é apenas nossa credulidade [At.IV, c.I].
E na boca de Araspe este desafio que marcou época?
*Confiemos em nós mesmos, olhemos como os nossos próprios olhos;
Sejam estes nossos oráculos, nossas tripodes e nossos deuses [II,5].
A peça rendeu a Voltaire 4.000 francos, que ele tratou de empregar com sensatez inédita em homens de letras; de permeio a todas as suas tribulações não só conseguiu da arte grandes proventos, como também o fez o dinheiro render; respeitou o adágio clássico de que antes de filosofar é preciso viver. Em 1729 comprou todos os bilhetes de uma loteria mal planejada pelo governo e ganhou uma quantia que, para indignação do governo, era avultada. A medida que enriquecia tornava-se cada vez mais generoso e um crescente circulo de protegidos foi-se reunindo ao seu redor a proporção que descambava para a tarde da existência.
Foi bom que associasse um faro financeiro quase hebraico ao talento gaulês da pena, pois Artemire, sua peça seguinte, malogrou-se. Voltaire sentiu vivamente esse fracasso. Cada triunfo obtido refina mais a dor dos desastres que se lhe sucedem. Sua sensibilidade em relação a opinião publica era sempre dolorosa, pelo que invejava os animais, por não saberem o que o povo diz a seu respeito. O destino acrescentou ao desastre daquele drama um caso maligno de bexigas; curou-se a si mesmo bebendo 120 pintas de limonada e tomando um numero pouco menor de clisteres. Ao emergir das sombras da morte descobriu que sua Henriqueida o celebrizara – e ele jactou-se com razão de ter posto em moda a poesia. Foi recebido e festejado em toda parte; a aristocracia deu-lhe a mão, transformando-o em polido mundano, de inigualável conversação e possuidor da mais apurada cultura tradicional da Europa.
Por espaço de oito anos andou na berra nos salões; em seguida a fortuna abandonou-o. Alguns nobres não podiam olvidar que aquele jovem não tinha, além de seu talento, outro titulo àquele lugar e honra – e não lhe perdoavam esse destaque. Em um jantar no castelo do Duque de Sully, depois de haver Voltaire falado, por alguns minutos, com arrojada eloqüência e espírito, o cavaleiro de Rohan perguntou, mas não sotto você: “Quem é esse moço que está a falar tão alto?” “Senhor”, respondeu pronto Voltaire, “é uma pessoa que não tem grande nome, mas que sabe fazer respeitar o nome que possui”. Responder ao cavaleiro já era grande recacho; e responder-lhe irrespondivelmente, chegava a ser afronta. O respeitável cavaleiro de Rohan, assalariou um bando de malfeitores para o espancarem a noite, limitando-se a recomendar-lhes: “Não lhe batam na cabeça; dela ainda pode sair alguma coisa boa”. Na noite seguinte Voltaire apareceu no teatro enfaixado e a mancar; foi até o camarote de Rohan e desafiou-o para um duelo. Em seguida voltou para casa, passando o dia imediato a exercitar-se em esgrima. O nobre cavaleiro não desejava, porém, ser remetido ao céu ou a outra qualquer paragem por um simples homem de gênio; recorreu a seu primo, Ministro da Policia. Voltaire foi preso e viu-se novamente em sua antiga moradia, a Bastilha, tendo mais uma vez a regalia de enxergar de seu interior o mundo. Soltaram-no quase imediatamente, com a condição de expatriar-se, asilando-se na Inglaterra [1726-29].