13 de abr. de 2011

Voltaire_Londres_Cartas Inglesas

Voltaire corajosamente empreendeu assimilar a nova língua. Desagradava-lhe saber que plague, peste, tem uma sílaba e, ágüe, febre palustre, duas; desejou que a praga devorasse uma metade  dessa figura e a febre a outra. Mas logo pode traduzir bem o inglês e, dentro de um ano, conhecia o melhor da literatura inglesa daqueles tempos. Foi apresentado aos homens de letras por Lord Bolingbroke, e jantava ora com um, ora com outro – até com o esquivo e sarcástico Dean Swift. Não tinha pretensões a nobre, nem exigia nobreza dos outros. Quando Congreve falou de suas próprias peças como de ninharias, declarando preferir ser considerado fidalgo ocioso a ser tido como autor teatral, Voltaire retrucou-lhe ferino: “Se tivésseis a desgraça de ser apenas fidalgo como os outros, nunca eu viria à vossa casa”.

Surpreendia-o a liberdade com que Bolingbroke, Pope, Addison e Swift escreviam o que lhes agradava; ali estava um povo com opiniões próprias, que refizera sua religião, enforcara seu rei, importara outro e construíra um parlamento mais forte que qualquer soberano europeu. Ali não existiam Bastilhas, nem lettres de cachet, com as quais funcionários titulados ou ociosos cortesãos pudessem meter no cárcere, sem motivo e sem julgamento, seus inimigos sem títulos. Havia ali trinta religiões e nenhum padre. Ali existia a mais destemerosa das seitas, a dos Quakers, cujos adeptos espantavam toda a cristandade procedendo como cristãos. Até o fim da vida, Voltaire não cessou de admirá-los; no Dictionnaire Philosophique faz um deles dizer: “Nosso Deus, que nos mandou amar nossos inimigos e sofrer o mal sem nos queixarmos, não deseja certamente que atravessemos o oceano para ir cortar o pescoço de irmãos, só porque assassinos de fardas vermelhas e chapéus de três palmos de alto alistam cidadãos batendo ruidosamente com dois pauzinhos em uma pele de burro esticada”.

Era também uma Inglaterra que vibrava de máscula atividade intelectual. Ainda pairava no ar o nome de Bacon e em todas as províncias do saber triunfava o método indutivo de aproximações. Hobbes [1588-1679] transformara o espírito cético da Renascença e o espírito positivo de Bacon em um materialismo tão completo e tão manifesto, que lhe teria proporcionado, na França, a honra do martírio por uma quimera. Locke [1632-1794] escrevera uma obra prima de analise psicológica [o Ensaio Sobre o Entendimento Humano, 1689] sem quaisquer preconceitos sobrenaturais. Collins, Tyndal e outros deistas reafirmavam sua fé em Deus, pondo ao mesmo tempo em duvida todos os outros pontos de fé da igreja estabelecida. Newton acabava de morrer. Voltaire assistiu-lhe aos funerais e com freqüência memorava a impressão que lhe causaram as honras nacionais prestadas aquele modesto inglês. “Não há muito tempo” escreve ele “numa distinta roda se discutia a comezinha e fútil questão de qual fosse o maior homem – César, Alexandre, Tamerlão ou Cromwell. Alguém respondeu que indubitavelmente era Isaac Newton. E com razão: pois é aos que nos senhoreiam o espírito pela força bruta, que devemos a nossa reverencia” [*Cartas Inglesas, XIII, em MORLEY, 52]. Voltaire tornou-se um paciente e dedicado estudioso das obras de Newton e foi por ultimo o principal propagador das idéias newtonianas na França.

É de assombrar a rapidez com que assimilou tudo o que a Inglaterra poderia ensinar-lhe em literatura, ciência e filosofia; tomou esses vários elementos, caldeou-os ao fogo da cultura e alma francesas e transmutou-os no ouro do espírito e eloqüência gauleses. Registrou suas impressões nas Cartas Inglesas; que circularam em manuscrito entre seus amigos; não se atreveu a imprimi-las, pois elogiavam demasiadamente a “pérfida Albion”, o que não seria de agrado do real censor. Faziam-se nelas confrontos entre a liberdade política e independência intelectual dos ingleses, e a tirania e servidão francesas [*Diderot esteve preso meses devido a sua Carta sobre o Cego; Buffon, em 1751, foi forçado a retratar-se publicamente de suas lições sobre a antiguidade da terra; Freret foi enviado para a Bastilha por causa de uma investigação critica sobre as origens dos poder real na França; livros continuaram a ser queimados oficialmente pelo carrasco até 1788, como também após a restauração em 1815; em 1757 um edito cominava a pena de morte para todo escritor que ‘atacasse a religião’, isto é, pusesse em duvida algum dogma da fé tradicional. – Robertson, 73, 84, 105, 107; Pellissier, Voltaire, Filosofo, Paris, 1908, pág 92; Buckle, Historia da Civilização, Nova-York, 1913, vol. 1 pags, 529 e seguintes]. Voltaire profligava a aristocracia ociosa da França e seu clero devorador de dízimos, e o método infalível de responder a perguntas e duvidas por meio da Bastilha e concitava as classes medias a se erguerem ao lugar que lhes competiam no estado, o qual devia ser o que as mesmas classes tinham na Inglaterra. Sem ele o saber, ou conscientemente o pretender, foram essas cartas o primeiro galicanto da Revolução Francesa.   

Voltaire_E o Racionalismo Francês

Paris:Édipo
Em 1742, em Paris, Voltaire ensaiava Mlle.Dumesnil,tentando fazê-la guindar-se as culminâncias do trágico em sua peça Mérope. Ela queixava-se de que precisava ter o diabo no corpo para simular o arrebatamento de paixão que Voltaire exigia. “É exatamente isso”, respondeu Voltaire; “precisa-se ter o diabo no corpo para se triunfar em qualquer arte” [*Tallentyre:Vida de Voltaire, 3ª. Edição, pág.145]. Tanto seus críticos como seus inimigos admitiram que Voltaire possuía integralmente este requisito. “Il avait lê diable au corps” disse Sainte-Beuve [*Retratos do Século Dezoito, Nova York, 1905, vol.1, pág.196]; e De Maistre escreveu que ele era um homem “a quem o inferno conferia todo o seu poder” [*Brandes:As principais Correntes Literárias do Século Dezenove, vol.III, pág.107].

Desabusado, feio, fátuo,jactanciosos, devasso, inescrupuloso e as vezes até desonesto – Voltaire era homem possuidor dos defeitos de seu tempo e de seu país, mal lhe faltando um só deles. E no entanto esse mesmo Voltaire foi infatigavelmente bondoso, dedicado, pródigo de sua energia e de sua bolsa, tão pronto a auxiliar os amigos como a esmagar os inimigos, capaz de matar  com uma penada e sentindo-se desarmado a primeira iniciativa de reconciliação – tão contraditório é o homem!

Mas todas estas qualidades, boas e más, eram secundárias, não constituíam a essência de Voltaire; nele o fundamento e o assombroso era a inexaurível fecundidade e a centelhação de seu espírito. Suas obras enchem noventa e nove volumes; cada pagina é rutilante e frutífera, posto que borboleteie de assunto em assunto tão volúvel e resolutamente como uma enciclopédia. “Minha função é dizer o que penso” [*Tallentyre, pág.32]; e o que ele pensava era sempre digno de ser dito, e o que dizia era sempre incomparavelmente bem dito. Se hoje não o lemos mais [embora homens como Anatole France tenham formado o espírito em sutileza e bom senso abeberando-se em suas paginas] é porque as batalhas teológicas em que se empenhou já não nos interessam; baldeamo-nos para outros campos de batalha e estamos mais absorvidos pela economia desta vida do que pela geografia da vida seguinte: foi a própria vitória completa de Voltaire sobre o clericalismo e a superstição que estacou estas fontes por ele encontradas borbotantes.

Muito de sua fama, também, provinha de sua inimitável conversação; mas scripta manent, verba volant – as palavras escritas ficam e as faladas vão-se –e, como estas, as palavras aladas de Voltaire. O que ele nos deixou é em demasia a sua carne e muito pouco a divina flama de seu espírito. Mesmo assim, mau grado a penumbra em que o vemos pela objetiva do tempo, que cintilante espírito! – “pura inteligência a transmutar cólera em facécia, fogo em claridade” [*J.M. Robertson: Voltaire, Londres, 1922, pág.67]; “uma criatura de ar e flamas, a mais excitável que tenha existido, composta de átomos mais etéreos e vibráteis do que os dos outros homens; nenhum existe de mecanismo mental mais delicado, nem cujo equilíbrio seja, a um tempo, mais móvel e mais perfeito” [*Taine: O Antigo Regime, Nova York, pág. 262].Não seria ele, talvez, a máxima energia intelectual de toda a história?

Não há duvida que labutou mais esforçadamente e realizou mais coisas do que qualquer outro homem de sua época. “Não estar ocupado e não existir são uma e a mesma coisa”, afirmou ele...”São boas todas as pessoas, exceto as ociosas”. Disse seu secretario que Voltaire só era avaro de seu tempo [*Voltaire: Romances, Nova York, 1889, pág.23]. “Para fazermos a vida suportável, devemos trabalhar o mais possível...Quanto mais me adianto em anos, mais acho necessário o trabalhar. Com o curdo do tempo isto se torna o maior dos prazeres e ocupa o lugar das ilusões da vida” [*Em Sainte-Beuve, I, 226]. “Se não desejais suicidar-vos, estai sempre ocupado com alguma coisa” [*Tallentyre, 93].

O suicídio naturalmente tentou-se sempre, pois estava sempre a trabalhar. “Foi porque teve tal virtude mental que encheu com sua vida toda uma época” [*Morley: Voltaire, LOndre, 1878, pág 14]. Tendo vivido em um dos maiores séculos [1694-1778], foi dele a alma e a essência. “Dizer Voltaire”, escreveu Vitor Hugo, “é caracterizar todo o século dezoito” [*Centenário de Voltaire]. A Itália teve a Renascença; a Alemanha, a Reforma; a França teve Voltaire; ele foi para seu país Renascença e Reforma juntamente, e meia Revolução Francesa. Tinha o ceticismo antisseptico de Montaigne e o sadio humorismo terreno de Rabelais; combateu a superstição e a corrupção mais feroz e eficazmente do que Lutero ou Erasmo, Calvino, Knox ou Melanchthon; ajudou a fabricar a pólvora com que Mirabeau e Marat, Danton e Robespierre fizeram voar pelos ares o Antigo Regime: “Se julgamos pelo que fizeram”, disse Lamartine, “Voltaire será incontestavelmente o maior escritor da Europa moderna...O destino concedeu-lhe oitenta e três anos de vida, para que ele pudesse, lentamente, destruir aquela época decadente; dispôs de tempo para combater o tempo; e, ao tombar, era o vencedor” [*Romance, págs VI e IX]. 

DE fato, jamais escritor exerceu tanta influencia enquanto vivo. Apesar do exílio, da prisão e da condenação de quase todos os seus livros pelos melindrosos potentados da Igreja e do Estado, ele abriu rompentemente caminho para sua verdade, até que, afinal, o cortejavam reis, papas e imperadores, tremiam tronos a sua presença e metade do mundo prestava ouvidos para não perder uma sua palavra. Era uma época em que muitas coisas pediam um grande demolidos; “pediam leões do riso”, como disse Nietzsche; pois bem: Voltaire veio e “tudo aniquilou com o riso” [*Tallentyre, 525]. Ele e Rousseau foram as duas vozes de um vasto processo de transição econômica e política da aristocracia feudal para a soberania da classe media.

Quando uma classe que se ergue encontra embaraços nas leis ou nos costumes, apela dos costumes para a razão e das leis para a natureza -  precisamente como resplendem em forma de idéias os desejos em conflito no individuo. Por esse motivo a burguesia rica defendeu o racionalismo de Voltaire e o naturismo de Rousseau; urgia enfraquecer os velhos usos e costumes, renovar e robustecer o sentimento e o pensamento, preparar o espírito para as experiências e mudanças, antes que a grande Revolução pudesse sobrevir. Não que Voltaire e Rousseau fossem causas dela; talvez fossem, em vez disso, resultados das forças que estuavam e empolavam a superfície da vida francesa; seriam como a luz e o esplendor do fogo vulcânico. A filosofia é para a historia o que a razão é para o desejo; em ambos os casos um processo inconsciente determina, de baixo, o pensamento consciente do alto.

Não devemos, entretanto, levar ao excesso o esforço de retificar a tendência dos filósofos de exagerarem a influencia da filosofia. Vendo na prisão do Templo as obras de Voltaire e Rousseau, Luiz XVI, prisioneiro, disse: ”Esses dois homens destruíram a França” [*Tallentyre, 525] – o que significava: sua dinastia. “Os Bourbons poderiam conservar-se no trono”, observou Napoleão, “se tivessem fiscalizado os implementos de escrever. O advento do canhão matou o feudalismo; a tinta matará a moderna organização social” [*Bertaut, Napoleão, por suas Próprias Palavras, Chicago, 1916, pg.63]. “Os livros governam o mundo”, disse Voltaire, “ou pelo menos as nações que conhecem a linguagem escrita; as outras não entram em linha de conta”. “Nada liberta como a educação”; - e Voltaire procurou libertar a França; “Quando uma nação começa a pensar é impossível detê-la” [*Tallentyre, 101]. E com Voltaire a França começou a pensar.

“Voltaire”, isto é, François Marie Arouet, nasceu em Paris em 1694, filho de abastado notário e da mãe um tanto aristocrática. Ele devia, talvez, ao pai a sagacidade e a irascibilidade e a mãe, algo de sua leviandade de espírito. Por um triz que deixou de vir ao mundo; a mãe não lhe sobreviveu ao nascimento; era tão franzino e doentio que a ama não lhe deu mais de um dia de vida. A ama errou ligeiramente, pois Voltaire viveu quase oitenta e quatro anos; mas por toda a vida seu organismo frágil atormentou como moléstias seu indomável espírito.

Tinha Voltaire como bom modelo a um irmão mais velho de nome Armand, rapaz piedoso que se tomou de amores pela heresia jansenista e cuja fé desafiava o martírio. Disse Armand a um amigo que lhe dava conselhos cautelosos: “Se não queres ser enforcado, pelo menos não impeças que os outros o sejam”. O pai comentou que tinha filhos idiotas -  um em verso e outro em prosa. O fato de François já fazer versos quase ao tempo em que aprendeu a escrever o nome convenceu ao pai notário, de espírito muito pratico, que nada de bom dele poderia esperar.  Mas a celebre hetera Ninon de I’Enclos, que residia na cidade provinciana para onde os Aroures se mudaram após o nascimento de François, viu no adolescente sinais de grandes aptidões – e ao morrer deixou-lhe 2.000 francos para comprar livros.

Sua educação começou com isto e com um abade dissoluto [espécie de Jérome Coingnar em carne e osso] que lhe ensinou o ceticismo de mistura com rezas. Mais tarde, seus outros educadores, os jesuítas, deram-lhe o melhor instrumento do ceticismo ensinando-lhe a dialética – a arte de provar tudo e, por conseqüência, o habito de não crer em coisa alguma. François sentiu gosto pela argumentação; enquanto os meninos se divertiam no campo dos jogos, ele, com doze anos, ficava-se longe, a discutir teologia com doutores.

Chegada a época de ganhar a vida, escandalizou o pai manifestando o desejo de adotar a literatura como profissão. “A literatura”, ponderou-lhe Mr.Arouet, “é a profissão dos que querem ser inúteis a sociedade, um fardo para os parentes e morrer de fome”; pode-se ver em mente a mesa a tremer com o murro que acompanhou essas palavras enérgicas. E foi assim que François enveredou pela carreira das letras.

Não que fosse rapaz sossegado e só as voltas com os livros; queimava a meia-noite o azeite... alheio. Demorava-se fora de casa até tarde, com jovens trocistas de espírito ou os fanfarrões da cidade, a praticar infrações dos mandamentos. Um dia o pai, exasperado, remeteu-o a um parente em Caen, com recomendação de prender o rapaz o mais possível. Mas o carcereiro, conquistado pelo seu espírito, logo lhe deu rédeas soltas. Após a prisão, como se daria mais tarde, foi o exílio: o pai mandou-o para Haya com o embaixador francês, pedindo-lhe muita vigilância sobre o amalucado rapaz; mas François apaixonou-se incontinenti por uma damazinha, “Pimpette”, com a qual entrou a ter freqüentes entrevistas secretas; escrevia-lhe cartas ardentes que findavam sempre com o estribilho:”Amar-te-ei eternamente”. O caso foi descoberto e Voltaire recambiado para o pai. Ao fim de algumas semanas esqueceu Pimpette.

Em 1715, orgulhoso com os seus vinte e um anos, foi para Paris e chegou no momento da morte de Luiz XIV. Como o Luiz que lhe sucedeu fosse em excesso jovem para governar a França e, muito menos, Paris, caiu o poder em mãos de um regente; durante esse interregno a vida correu tumultuosa na capital do mundo, e a do jovem Arouet se harmonizava com esse estado de coisas. Em breve adquiriu a reputação de espírito brilhante e afoito. Quando o Regente, por economia, vendeu metade dos cavalos dos estábulos reais, François, observou que economia muito sensível ele faria se despedisse metade dos asnos que atulhavam a corte real. Por fim, atribuíam-lhe a paternidade de todas as coisas chistosas e ferinas cochichadas em Paris; por infelicidade havia entre elas duas poesias que acusavam o Regente de desejar usurpar o trono. O Regente enfureceu-se; e encontrando-se com o jovem, no parque, disse-lhe: “Sir. Arouet, aposto que poderei mostrar-lhe uma coisa que o senhor ainda não viu”. “Qual?” “O interior da Bastilha”. Arouet viu-a no dia seguinte. 16 de abril de 1717.

Na Bastilha adotou, por motivo ignorado, o pseudônimo de Voltaire [*Carlyle supunha ser o anagrama a-r-o-u-e-t-1-.j [Je jeune, Junior]. Mas parece ter existido este nome na família da mãe de Voltaire] e tornou-se poeta acabado. Antes de lá estar onze meses escrevera um longo poema épico não destituído de mérito, a Henriqueida, narrando a historia de Henrique de Navarra. O Regente então, havendo porventura descoberto que prendera um inocente, soltou-o e deu-lhe uma pensão; Voltaire escreveu-lhe agradecendo-lhe o haver-se preocupado com seu sustento e pedindo-lhe permissão para de então por diante ele próprio se preocupar com a sua moradia.

Quase de um pulo passou da prisão para o palco. Sua tragédia Édipo foi representada em 1718 e bateu todos os recordes parisienses, sendo levada a cena quarenta e cinco noites seguidas. Seu velho pai, que fora censurá-lo, escondia, sentado em um camarote, seu contentamento, resmungando a cada lance sensacional: “Oh! O maroto! O maroto!”.Quando após a representação o poeta Fontenelle foi ver Voltaire e lhe condenou a peça com um louvor excessivo, dizer ser “mui-brilhante para uma tragédia”, Voltaire redargüiu, sorrindo: “Preciso reler as suas pastorais” [*Robertson, 67].O rapaz andava de veia para cautelas ou cortesias; pois não chegara a encaixar na peça os seguintes versos atrevidos?

*Nossos padres não são o que pensam os simples;
Seu saber é apenas nossa credulidade [At.IV, c.I].

E na boca de Araspe este desafio que marcou época?

*Confiemos em nós mesmos, olhemos como os nossos próprios olhos;
Sejam estes nossos oráculos, nossas tripodes e nossos deuses [II,5].

A peça rendeu a Voltaire 4.000 francos, que ele tratou de empregar com sensatez inédita em homens de letras; de permeio a todas as suas tribulações não só conseguiu da arte grandes proventos, como também o fez o dinheiro render; respeitou o adágio clássico de que antes de filosofar é preciso viver. Em 1729 comprou todos os bilhetes de uma loteria mal planejada pelo governo e ganhou uma quantia que, para indignação do governo, era avultada. A medida que enriquecia tornava-se cada vez mais generoso e um crescente circulo de protegidos foi-se reunindo ao seu redor a proporção que descambava para a tarde da existência.

Foi bom que associasse um faro financeiro quase hebraico ao talento gaulês da pena, pois Artemire, sua peça seguinte, malogrou-se. Voltaire sentiu vivamente esse fracasso. Cada triunfo obtido refina mais a dor dos desastres que se lhe sucedem. Sua sensibilidade em relação a opinião publica era sempre dolorosa, pelo que invejava os animais, por não saberem o que o povo diz a seu respeito. O destino acrescentou ao desastre daquele drama um caso maligno de bexigas; curou-se a si mesmo bebendo 120 pintas de limonada e tomando um numero pouco menor de clisteres. Ao emergir das sombras da morte descobriu que sua Henriqueida o celebrizara – e ele jactou-se com razão de ter posto em moda a poesia. Foi recebido e festejado em toda parte; a aristocracia deu-lhe a mão, transformando-o em polido mundano, de inigualável conversação e possuidor da mais apurada cultura tradicional da Europa.

Por espaço de oito anos andou na berra nos salões; em seguida a fortuna abandonou-o. Alguns nobres não podiam olvidar que aquele jovem não tinha, além de seu talento, outro titulo àquele lugar e honra – e não lhe perdoavam esse destaque. Em um jantar no castelo do Duque de Sully, depois de haver Voltaire falado, por alguns minutos, com arrojada eloqüência e espírito, o cavaleiro de Rohan perguntou, mas não  sotto você: “Quem é esse moço que está a falar tão alto?” “Senhor”, respondeu pronto Voltaire, “é uma pessoa que não tem grande nome, mas que sabe fazer respeitar o nome que possui”. Responder ao cavaleiro já era grande recacho; e responder-lhe irrespondivelmente, chegava a ser afronta. O respeitável cavaleiro de Rohan, assalariou um bando de malfeitores para o espancarem a noite, limitando-se a recomendar-lhes: “Não lhe batam na cabeça; dela ainda pode sair alguma coisa boa”. Na noite seguinte Voltaire apareceu no teatro enfaixado e a mancar; foi até o camarote de Rohan e desafiou-o para um duelo. Em seguida voltou para casa, passando o dia imediato a exercitar-se em esgrima. O nobre cavaleiro não desejava, porém, ser remetido ao céu ou a outra qualquer paragem por um simples homem de gênio; recorreu a seu primo, Ministro da Policia. Voltaire foi preso e viu-se novamente em sua antiga moradia, a Bastilha, tendo mais uma vez a regalia de enxergar de seu interior o mundo. Soltaram-no quase imediatamente, com a condição de expatriar-se, asilando-se na Inglaterra [1726-29].