19 de abr. de 2011

Voltaire_Ecrazes L’Infame

Em circunstancias ordinárias é provável que Voltaire nunca houvesse passado da calma filosófica deste ceticismo polido para renhidas controvérsias de seus últimos anos. As rodas aristocráticas em que se movia concordavam tão prontamente com seus pontos de vista que lhe dariam incentivo para polemicas; até os padres sorriam com ele ante os embaraços da fé, e os cardeais matutavam se, afinal de contas, não o poderiam ainda transformar em um bom frade capuchinho. Que acontecimentos o levaram da cortesia zombeteira do agnosticismo para um feroz anti-clericalismo que não admitia transigências, reclamando, ao contrário, guerra implacável para “esmagar a infame” intolerância clerical?

Não longe de Ferney ficava Toulouse, a sétima cidade da França, onde o clero dominava soberanamente. A cidade comemorou com pinturas a fresco a revogação do Edito de Nantes [edito que concedera liberdade de crença aos protestantes] e celebrava como grande dia santo a data do morticínio de São Bartolomeu. Nenhum protestante poderia ser em Toulouse advogado, médico, farmacêutico, merceeiro, livreiro ou editor; nem podia um católico ter servidor ou secretário protestante – em 1748 uma mulher fora multada em 3.000 francos por te chamado uma parteira dessa crença.

Ora, sucedeu que Jean Calas, um protestante de Toulouse, tinha uma filha que se tornara católica e um filho que se enforcara, presumivelmente por prejuízo em negócios. A lei mandava que o suicida fosse deitado de bruços e nu sobre uma grade, para ser assim carregado pelas ruas; em seguida penduravam-no na forca. Para evitar semelhante coisa o pai do jovem Calas pediu aos parentes e amigos que firmassem ter sido a morte natural. Com isto rumores começavam a correr de que o pai matara o filho para evitar sua eminente conversão ao catolicismo. Calas foi preso e torturado, morrendo logo depois [1761]. Arruinada e perseguida, sua família fugiu para Ferney, a pedir o amparo de Voltaire. Ele a acolheu em casa e consolou-a, maravilhando-se ao ouvir a história daquela perseguição medieval. Quase ao mesmo tempo [1762] sobreveio a morte de Elizabeth Sirvens, e correu novamente o boato de que a haviam jogado a um poço exatamente quando ela ia anunciar sua conversão ao catolicismo. Razoável era admitir-se que dificilmente uma minoria de protestantes procedesse de semelhante modo, pelo que deveria ficar a salvo de suspeitas. Em 1765 um rapaz de dezesseis anos, de nome La Barre, foi preso sob acusação de ter mutilado crucifixos. Submetido a torturas, confessou a culpa; cortaram-lhe a cabeça e atiraram-lhe o corpo a uma fogueira por entre aplausos da multidão. Com ele queimaram um exemplar do Dicionário Filosófico descoberto em seu poder.

Pela primeira vez na vida Voltaire tornou-se grave. Quando d’Alembert, descontente também com o estado, a igreja e o povo lhe escreveu que de então por diante zombaria de tudo, a resposta de Voltaire foi: ”Os tempos não são para zombarias; estas não se harmonizam com morticínio...País da filosofia e do prazer, este? Não; da Matança de São Bartolomeu, sim”.

Deu-se então com Voltaire o que sucedeu a Zola e Anatole France, no caso Dreyfus; exaltou-se ante aquela injustiça titânica; cessou de ser apenas um homem de letras, transfazendo-se também em um homem de aço; deixou de lado a filosofia para empenhar-se na luta, ou melhor, transformou sua filosofia em implacável dinamite. “Durante todo esse tempo, nem um sorriso me escapou sem que me recriminasse por ele, como pela pratica de um crime”. Foi então que adotou o lema celebre Ecrasez l’Infame!,e agitou a alma francesa contra os abusos da Igreja. Rompeu tal bombardeio, que aludiu o poder do clero na França e auxiliou a derribar um trono.

Voltaire dirigiu um apelo a seus amigos e companheiros, convocando-os para a luta: “Vamos, valente Diderot e intrépido d’Alembert, coliguemo-nos...derrotemos os fanáticos e os hipócritas, destruamos as insípidas declamações, os vis sofismas, a historia mentirosa...os absurdos sem conta; não deixemos os que tem bom senso sob a sujeição dos que o não tem; e a geração que está nascendo nos deverá razão e liberdade” [*Correspondência, 11 de novembro de 1765].

Exatamente nesse ponto critico fizeram uma tentativa para suborná-lo; por intermédio de Mme.,de Pompadour foi-lhe oferecido o chapéu de cardeal em troca de sua reconciliação com a Igreja [*Tallentyre, 310; posto em duvida por alguns]. Como se o dirigir alguns bispos de língua atada pudesse seduzir a um homem que era o soberano do mundo intelectual! Voltaire recusou; e qual segundo Catão pôs-se a rematar todas as suas cartas com o “Esmaguemos a infame!”. No Tratado sobre a Tolerância disse que suportaria os absurdos dos dogmas se o clero o vivesse de conformidade com suas predicas e tolerasse divergências de opiniões; mas “as sutilezas de que nenhum vestígio se encontra nos Evangelhos são a fonte das sangrentas dissensões da história cristã [*Obras Escolhidas, pág. 62]. “O homem que me dizia “Crê-de como eu, ou Deus vos condenará”, dir-me-á presentemente “Crê-de como eu, senão vos assassinarei” “Qual o direito com que um ser criado livre força outro igual a pensar como ele próprio?”. “O mal de todos os séculos foi o fanatismo entretecido de superstição e ignorância”. A paz perpetua que o Abbé de St. Pierre pregara jamais se realizaria sem que os homens aprendessem a tolerar mutuamente as divergências filosóficas, políticas e religiosas. O primeiro passo essencial para o saneamento da sociedade era a destruição do poder clerical em que a intolerância se enraizava.

Ao Tratado sobre a Tolerância sucedeu-se um niagara de panfletos, historias, diálogos, cartas, catecismos, diatribes, sátiras, sermões, versos, narrativas, fabulas, comentários e ensaios assinados com o nome de Voltaire e com uma centena de pseudônimos – “a mais assombrosa avalanche de propaganda que tenha sido feita por um só homem”. [*Robertson, 112]. Jamais fora a filosofia expressa com tal clareza e vida; Voltaire escreve tão bem, que ninguém percebe que esteja a escrever filosofia. Ele disse de si mesmo, com extrema modéstia: “Exprimo-me com bastante clareza; pareço-me aos pequenos córregos – transparentes por não serem fundos” [*Em Sainte-beuve, II, 146].E por isso era lido; em pouco, todos, até mesmo o clero, adquiriam seus folhetos; venderam-se de alguns deles 300.000 exemplares, embora o publico leitor fosse bem menor que hoje; na historia da filosofia nunca se vira coisa igual. “Os livros volumosos”, disse ele, “caíram da moda”. E por isso enviava seus pequeninos soldados, semana após semana, mês após mês, intrépidos e incansáveis, a surpreender o mundo com a fecundidade de sua inteligência e com a magnífica energia de seus setenta anos. Como o disse Helvécio, Voltaire atravessara o Rubicon e apresentara-se diante de Roma. [*Em Pellissier, 101].

Principiou com uma “critica superior” da autenticidade e credibilidade da Bíblia; forrageou muito de seu material em Spinoza, mais dos deistas ingleses e mais ainda do Dicionário Critico de Bayle [1647-1706]; mas que brilho e calor não adquiria esse material estranho nas mãos dele! Um panfleto intitula-se: “As perguntas de Zapata”, um candidato ao sacerdócio; Zapata pergunta ingenuamente: “Como poderemos demonstrar que os judeus, a quem queimamos as centenas, foram durante quatro mil anos o povo eleito de Deus?” [*Obras Escolhidas, pág.26. Até Voltaire era um tanto antissemita, principalmente pelos seus negócios que não eram propriamente excelentes com os financeiros judeus] – e prossegue com perguntas que deixam visíveis as incoerências narrativas e cronológicas do Velho Testamento. “Quando dois concílios se anatematizam um ao outro, como sucedeu muitas vezes, qual é o infalível?” Por fim “não recebendo resposta, Zapata começou a pregar a religião de Deus com toda a simplicidade, anunciou-a aos homens como o Pai comum, dispensador de recompensas, de punição e de perdão. Expurgou a verdade das mentiras e extremou a religião do fanatismo; ensinou e praticou a virtude. Era manso, bom e modesto; e foi queimado em Valladolid no ano da graça de 1631”

Na palavra “Profecia”, do dicionário Filosófico, cita o Balluarte da Fé do rabino Isaac, contra a aplicação das profecias hebraicas a Jesus, e prossegue, irônico: “Desta maneira, esses cegos interpretes de própria religião e de sua própria língua, combateram contra a Igreja, sustentando tenazmente que essas profecias de modo algum se referiam a Jesus Cristo”. Naquele tempo todos eram forçados a evitar dizer claramente as coisas, de sorte que a linha a seguir para atingir um fim era de qualquer espécie, menos a linha reta.

Voltaire gosta de filiar os dogmas e ritos cristãos aos da Grécia, Egito e Índia e entende que essas adaptações não foram a causa menor da vitória do cristianismo na antiguidade. Na palavra “Religião” pergunta astutamente: “Depois de nossa santa religião, que é, sem duvida, a única boa, que religião teria menos inconvenientes?”  - e põe-se a descrever uma crença e um culto diametralmente opostos ao cristianismo de seu tempo. “O cristianismo deve ser divino”, diz ele em uma de suas mais ferinas “piadas”, “uma vez que durou 1.700 anos apesar de tão cheio de baixezas e absurdos” [*Ensaios sobre os Costumes, parte II, cap. 9, em Morley, 322]

Ele mostra como quase todos os povos antigos tinham mitos análogos e apressa-se a disso concluir estar provado que os mitos são invenções dos padres: “O primeiro padre surgiu quando o primeiro velhaco encontrou o primeiro tolo”. Não obstante, não é a própria religião que ele atribui os males e sim a teologia.  Foram leves divergências em teologia que causaram tantas acirradas disputas e guerras religiosas. “Não foi o povo... que deu causa a essas ridículas e fatais questiunculas donde saíram tantos horrores...Homens que o trabalho do povo engordava em agradável ócio, enriqueceram-se com o suor e a miséria dos simples e lhes inocularam no coração o fanatismo destruidor para melhormente senhorea-los. Fizeram o povo supersticioso, não para que o povo temesse a Deus – sim para que temesse a eles” [*Obras Escolhidas,63].

Não se suponha contudo, que Voltaire fosse totalmente incrédulo. Voltaire repelia absolutamente o ateísmo [*Confronte-se com o O Sábio e o Ateu, caps. 9 e 10], e a tal ponto que alguns dos enciclopedistas se voltaram contra ele, dizendo: “Voltaire é um carola, pois acredita em Deus”. Em “O Filosofo Ignorante” raciocina sobre o panteísmo spinozista, mas retai-se considerando-o um quase ateísmo. A Diderot escreve:

*”Confesso que não concordo com a opinião de Saunderson, que nega Deus por ter nascido cego. Talvez me engane; mas, no lugar dele eu reconheceria uma grande inteligência que me deu tantos substitutos para a vista; e apercebendo-me, pela reflexão, das admiráveis correlações entre todas as coisas, eu suspeitaria a existência de um Obreiro infinitamente hábil. Se é grande presunção querer adivinhar o que é Ele e porque Ele fez tudo quanto existe, parece-me presunção, também, negar que Ele exista. Tenho grande desejo de encontrar-me contigo, quer te consideres uma de Suas obras, quer uma partícula desprendida, pela força da necessidade, da matéria eterna e necessária. Seja o que for o que sejas, és uma parte digna do grande Todo que não compreendo”. [*Voltaire em Suas Cartas, pág.81].

Para Holbach, Voltaire frisa que o próprio titulo de seu livro, Sistema da Natureza, indica uma inteligência divina organizadora. Por outro lado, nega firmemente os milagres e a eficácia sobrenatural da oração.

*”Eu estava na porta do convento quando Sóror Fessue disse a Sóror Confite: “Visivelmente a providencia atende-me; sabes quanto  amo meu pardal; ele teria morrido se eu não tivesse rezado nove ave-marias para obter-lhe a cura”...Um metafísico observou: “Irmã, nada há tão bom como ave-marias, principalmente quando uma moça as reza em latim e nos arrabaldes de Paris; mas não posso crer que, por mais lindo que seu pardal seja, Deus se preocupe com ele; creia que Ele tem mais coisas em que cuidar...” Sóror Fessue: “Senhor, vossas palavras sabem a heresia. Delas meu confessor...deduzirá que não acreditais na Providencia”. O metafisico: “Cara irmã, acredito, como acredito na luz do sol, em uma Providencia geral, que estabeleceu para toda a eternidade as leis que regem todas as coisas; mas não creio que uma Providencia  particular altere o mecanismo do universo por causa de seu pardal”.

“Sua Majestade Sagrada o Destino tudo decide”. A verdadeira prece não consiste em pedir a violação das leis naturais e sim na aceitação delas como a vontade imutável de Deus.

Semelhante, nega o livre arbítrio.[*O Filosofo Ignorante].Em relação a alma é um agnóstico: “Quatro mil volumes de metafísica não nos revelarão o que é a alma” [*Dicionário, Palavra “Alma”]. Estando velho, desejaria crer na imortalidade, mas acha isso difícil.

*”Ninguém pensa em admitir uma alma imortal na pulga porque então admiti-la em um elefante, em um macaco ou em meu criado?...Uma criança morre nas entranhas maternas exatamente na ocasião em que recebeu uma alma. Tornará ela a surgir como feto, adolescente ou homem? Para surgir – ser a mesma pessoa que éramos -  para isso deveríamos ter a memória perfeitamente clara e viva, pois a memória é que faz a nossa identidade. Se perdermos a memória, como seremos o mesmo homem? [*Dicionário palavra ‘Ressurreição’]...Por que será que a humanidade se jacta de ter sido dotada, só ela, de um principio espiritual e imortal?...Talvez pela desmedida vaidade. Estou capacitado de que, se um pavão falasse, ele se jactaria de ter uma alma e afirmaria que sede da mesma era sua pomposa cauda”.

Nesse mesmo tom ele repele a opinião de que acreditar na imortalidade seja necessário para a moralidade; os antigos hebreus não tinham moralidade precisamente quando eram o “povo eleito”; já Spinoza foi um modelo de moralidade.

Mais tarde mudou de parecer. Chegou a compenetrar-se de que a crença em Deus era de pouco valor moral a não ser quando acompanhada pela crença em uma imortalidade com punição ou recompensa. Talvez seja necessária, “para o povoleu [la canaille] a crença em um Deus que premia ou castiga”. Bayle perguntou: “Uma sociedade de ateus pode perdurar?” e Voltaire respondeu: “Sim, se também forem filósofos”. Mas raramente os homens são filósofos. “Se forem camponeses precisam ter uma religião”. “Eu desejo que meu advogado, meu alfaiate e minha mulher creiam em Deus”, diz “a” em “A,B,C”; “nesse caso, penso eu, serei menos roubado e enganado”. “Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”. “Começo a fazer mais cabedal da felicidade e da vida do que da verdade”; - notável antecipação, em pleno racionalismo, da própria doutrina com que mais tarde Emanuel Kant iria combater o racionalismo. Voltaire defende-se dos ataques de seus inimigos ateus; diz a Holbach, na palavra “Deus” de seu Dicionário:

*”Tu mesmo afirmas que a crença em Deus...arredou alguns homens do crime; é quanto me basta. Mesmo que essa crença evitasse só dez homicídios ou dez calunias, eu me persuadiria de que todos a deveriam seguir. Afirmas que a religião produziu incontáveis infortúnios: dize de preferência que a causadora foi a superstição que domina o nosso infeliz globo. Ela é a mais cruel inimiga do puro culto devido ao Ser Supremo. Odiemos o monstro que sempre dilacerou o seio de sua mãe; os que o combatem são benfeitores do gênero humano. A superstição é uma serpente que afoga a religião com o seu abraço; devemos esmagar-lhe a cabeça sem ferir a mãe que ela asfixia”.

É fundamental para ele esta distinção entre superstição e religião. Voltaire admite de bom grado a teologia do Sermão da Montanha e rende a Jesus um preito aa que  mal se emparelharão as paginas de êxtase sagrado. Representa o Cristo entre os sábios, a lastimar os crimes cometidos em seu nome. Por fim edifica uma igreja com a dedicatória “Deo erexit Voltaire” -  a única igreja da Europa, disse ele, erigida verdadeiramente a Deus. Voltaire dirige a Deus uma eloqüente invocação; e na palavra “Teista” declara, afinal, com clareza:

* “O Teista é um homem firmemente convencido da existência de um ser supremo tão bom quanto poderoso, que criou todas as coisas...;que pune sem crueldade todos os crimes e premia bondosamente todas as ações virtuosas...De acordo, sobre este ponto, com o resto do universo, o teista não se filia a seita alguma das que se contradizem mutuamente. Sua religião é a mais antiga e espalhada, pois a simples adoração de um Deus precede todos os sistemas do mundo. Ele fala uma língua que todos os povos entendem, ao passo que estes não se vendem uns aos outros. Tem irmãos desde Pequim até Caiena e conta todos os sábios entre seus adeptos. Crê que a religião não consiste nas opiniões de uma ininteligível metafísica, nem em vãs ostentações, e sim na adoração de Deus e na pratica da Justiça. Fazer o bem é o seu culto, e a submissão a Deus o seu credo. Brada-lhe o maometano: “Mal de vós se não fordes em peregrinação até Meca!” – o padre diz-lhe: “Sereis maldito se não fordes em romaria a Notre Dame de Lorette!”. O teista zomba de Meca e de Lorette, mas socorre o indigente e patrocina o oprimido.”
          

Voltaire_e o Dicionário Filosófico

A popularidade de um livro tão irreverente como Candide dá-nos certa idéia do espírito da época. A cultura considerável dos tempos de Luiz XIV, apesar dos poderosos bispos que desempenhavam papel tão eloqüente, aprendera  a encarar sorrindo o dogma e a tradição. O malogro da Reforma em sua tentativa de dominar a França não deixara aos franceses zona intermédia entre a infalibilidade e a impiedade; e ao passo que a intelectualidade da Alemanha e da Inglaterra se desenvolvia lenta no roteiro da evolução religiosa, o espírito francês saltava da fé ardente que chacinara os huguenotes a fria hostilidade com que La Mettrie, Helvécio, Holbach e Diderot renhiam contra a religião de seus pais. Relancemos  por um momento o ambiente intelectual em que o Voltaire dos últimos tempos se moveu.

La Mettrie [1709-1751], médico militar que perdera o cargo por haver escrito a Historia Natural da Alma, fora exilado por ser autor d’O Homem Maquina. Refugiara-se na corte de Frederico, que tinha idéias avançadas e resolvera importar a mais recente cultura de Paris. La Mettrie tomou a idéia do mecanismo no ponto onde Descartes, assustado como uma criança que queimasse os dedos, a deixara cair; e proclamou que o mundo, sem exceção do homem, era maquina. A alma é material e a matéria é animada; atuam reciprocamente uma sobre a outra e se desenvolvem ou decaem juntamente, de modo a não deixar duvidas sobre sua similaridade e interdependência essenciais. Se a alma é puro espírito, como pode o entusiasmo aquecer o corpo ou a febre perturbar a ação do espírito? Todos os organismos evolveram partindo de um germe original, em conseqüência da ação recíproca entre o organismo e o meio. A razão por que os animais tem inteligência e as plantas não, é por se moverem os animais em busca de alimento, ao passo que as plantas se valem do que chega até elas. A inteligência do homem é a maior de todas por ter mais necessidades e mais amplitude de movimento; “os seres que não tem necessidades também não tem espírito”.

Ao passo que La Mettrie era exilado por estas opiniões, Helvécio [1715-1771], que as tomou como base de seu livro Sobre o Homem, tornava-se um dos homens mais ricos da França, atingindo alta posição e sendo alvo de muitas honras. Nele temos a ética do ateísmo, como em La Mettrie, sua metafísica. Todos os atos são ditados pelo egoísmo, pelo amor a si mesmo; “até o herói obedece ao sentimento que para ele se associa ao máximo prazer”; e “a virtude é o egoísmo munido de oculto alcance” [*Taine, O Antigo Regime]. A consciência não é a voz de Deus e sim medo a policia; o sedimento deixado em nós pelas torrentes e inibições com que os pais, os professores e os livros inundaram a alma em formação. A moral não deve basear-se na teologia e sim na sociologia; o que deve determinar o que é o bem, são as mutáveis necessidades da sociedade e não alguma revelação ou algum dogma imutável.

A figura preeminente desse grupo foi Denis Diderot [1713-1784]. Suas idéias estão expressas em vários fragmentos de sua própria pena e no Sistema da Natureza do barão d’Holbach [1723-1789], cujo salão era o centro do circulo de Diderot. “Se recuarmos até os começos”, disse Holbach, “descobriremos que a ignorância e o medo criaram os deuses; que a fantasia, o entusiasmo ou o embuste os ornaram ou desfiguraram; que a fraqueza os adora e a credulidade os conserva; e que o costume os respeita e a tirania os ampara com o fim de fazer a cegueira do homem servir a seus próprios interesses”;

“A crença em Deus”, disse Diderot, “se associa com a submissão a autocracia; as duas conjuntamente se levantam ou caem”; e “os homens nunca serão livres enquanto o ultimo rei não for enforcado nas tripas do ultimo padre”. A terra só obterá o que lhe pertence quando for destruído o Céu. O materialismo pode ser uma ultra-simplificação do mundo; toda a matéria é provavelmente instinto dotado de vida, e impossível é reduzir a unidade de consciência a simples matéria e movimento; mas o materialismo é boa arma contra a Igreja e deve por isso ser usado até achar-se outra melhor. Enquanto isso, cumpre divulgar os conhecimento e acoroçoar a industria; a industria conduzirá a paz e o saber criará uma moralidade nova e natural.

Tais são as idéias que Diderot e d’Alembert  se esforçaram pó espalhar por meio da grande Encyclopedie que publicaram, volume a volume, de 1752 a 1772. A igreja condenou os primeiros volumes; e como a oposição se avolumasse, os companheiros de Diderot o abandonaram; encolerizado, continuou ele a trabalhar, forateclido pela própria raiva. “Nada conheço tão indecoroso”, disse, “como as vagas declamações dos teólogos contra a razão. Ouvindo-as, supomos que os homens não podem entrar no seio do cristianismo a não ser como gado a penetrar em curral”. Esse foi, como Taine o salientou, o século da razão; tais homens nunca duvidaram de que a inteligência era o supremo juiz de toda a verdade e de todo o bem. Liberta a razão, diziam eles, estaria em poucas gerações, realizada a Utopia. Diderot não suspeitava que, o erótico e nevrotico Jean-Jacques Rousseau, que ele acaba de apresentar a Paris, trazia na cabeça, ou no coração, os germes da revolta contra essa entronização da razão; revolta que, armada com as impressionadoras obscuridades de Emanuel Kant, conquistaria em breve todas as praças fortes da filosofia.

Como era natural, Voltaire, que se interessava por tudo e participava de todas as pelejas, foi incorporado por algum tempo ao grupo dos enciclopedistas; e estes sentiam prazer em chamar-lhe chefe; e a ele não desagradava tal incenso, embora algumas daquelas idéias necessitassem mondadura. Pediram-lhe que escrevesse artigos para a grande empresa e ele os satisfez com a facilidade e uma fertilidade que os deliciou. Acabado esse trabalho, Voltaire empreendeu escrever uma enciclopédia sua, que denominou Dicionário Filosófico; com audácia sem precedentes tomou, uns após outros, os temas que lhe sugeria o alfabeto e verteu, sobre cada um deles, os seus inesgotáveis recursos de conhecimentos e sabedoria. Imagine-se um homem a escrever sobre tudo sem que por isso deixasse de fazer obra clássica – a mais acessível e cintilante obra de Voltaire, à parte os romances; cada artigo é um modelo de clareza e penetração. “Alguns homens são prolixos em pequeno volume; Voltaire é conciso em uma centena” [*Robertson, 87].Voltaire, afinal, demonstra ser filosofo.

Começa com Bacon, Descartes, Locke e todos os modernos, pela duvida e por uma [suposta] tabula rasa. “Tomei como patrono S. Tomé de Didimo, que sempre insistia em examinar as coisas com suas próprias mãos” [*Dicionário Filosófico, Nova-York, 1901, vol. IX, pág.198]. Voltaire agradece a Bayle o haver-lhe ensinado a arte de duvidar. Repele todos os sistemas, suspeitoso de que “todo chefe de seita filosófica é um tanto charlatão”. “Quanto mais examino o assunto, mais me confirmo na idéia de que os sistemas metafísicos são para os filósofos o que os romances são para as mulheres” [*Pellisier, 11, nota]. “Só os charlatães afirmam as coisas com certeza. Nada sabemos sobre os primeiros princípios. É verdadeira extravagância definir Deus, os anjos e os espíritos, e afirmar com precisão por que Deus criou o mundo, quando nem ao menos sabemos por que movemos os braços a vontade. O estado de duvida não é muito agradável; mas o de certeza é ridículo” [*Robertson, 122]. “Não sei como fui feito nem como nasci. Não conheci absolutamente, durante um quartel de minha vida, as causas daquilo que vi, ouvi e senti...Vi aquilo que se chama matéria, não só a estrela Sirius, como também sua partícula mínima perceptível ao microscópio – e não sei o que essa matéria seja. [*Dicionário, palavra “ignorância”].

Voltaire conta a história do Bom Brâmane que disse: “Eu desejaria nunca ter nascido!”

*”Por que?” perguntei.
“Porque”, respondeu ele, “passei a estudar quarenta anos e acho que todo esse tempo foi perdido...Acredito que sou formado de matéria, mas nunca pude descobrir o que produz o pensamento. Ignoro até se minha inteligência é uma simples faculdade semelhante a de caminhar ou digerir, ou se penso com a minha cabeça do mesmo modo que pego uma coisa com minhas mãos...Falo muito e, ao acabar de falar, sinto-me confuso e envergonhado do que disse”.
No mesmo dia conversei com uma velha, sua vizinha. Perguntei-lhe se algum dia não se sentira infeliz por não compreender como sua alma foi feita. A velha nem mesmo entendeu minha pergunta. Jamais em sua vida se detivera a pensar sobre o assunto que tanto torturava o bom brâmane. Intimamente acreditava nas metamorfoses de Vishnu; e,em tendo um pouco de água sagrada do Ganges para fazer suas abluções, considerava-se a mais feliz das mulheres. Impressionado com a felicidade dessa pobre criatura, voltei para onde estava meu filosofo e falei-lhe da seguinte maneira:
“Não se vexa de ser assim tão infeliz, quando a menos de cinqüenta jardas daqui vegeta um velho autômato que em nada pensa e vive satisfeito?”
“Tem razão”, respondeu ele. “Já me disse mil vezes a mim mesmo que eu seria mais feliz se fosse tão ignorante como essa velha vizinha; mesmo assim não desejo tal felicidade”.
Esta resposta do brâmane causou-me mais impressão do que tudo [*.Romance, págs 450 4 seguintes].

Muito embora a filosofia pudesse desfechar na duvida completa do Que sais-je? [*Que sei eu?] de Montaigne, seria Ela a maior e a mais nobre das aventuras humanas. Aprendamos a contentar-nos com modestos progressos nos conhecimentos, de preferência a deixar que nossa imaginação mendaz continue incessantemente a urdir novos sistemas.

Não devemos dizer: “Inventemos princípios por meio dos quais possamos tudo explicar” e sim, freqüentemente: “Façamos cuidadosa análise da matéria e em seguida tentemos ver, com muito cuidado, se ela se coaduna com algum principio [*Em Pellisier, 28, nota]....O Chanceler Bacon mostrou o caminho que a ciência deve trilhar...Mas depois surgiu Descartes e fez justamente o contrário: em vez de estudar a natureza, quis adivinha-la....Ele, o melhor dos matemáticos, criou apenas romances no terreno da filosofia [*A Prosa de Voltaire, edição Cohn e Woorward, Bosto, 1918, pag.54]...É nos possível, calcular, pesar, medir e observar: esta é a filosofia natural; o mais não passa de quimera [*Em Pellisier, 29-30].