9 de abr. de 2011

Spinoza_O Tratado Político

Falta-nos analisar o torso trágico, o Tractatus Politicus, a obra ultima de Spinoza, interrompida subitamente pela sua morte prematura. É breve, mas cheia de pensamento e dá-nos a sensação do muito que o mundo se lesou com a perda do filosofo justamente a atingir o apogeu da maturidade. Ao tempo em que Hobbes exaltava a monarquia absoluta e denunciava o levante do povo inglês contra o rei quase tão vigorosamente como Milton o defendia, Spinoza, amigo do republicano DE Witt, formulava a filosofia política que encerrava as esperanças liberais e democráticas da Holanda e ia tornar-se uma das principais fontes da grande caudal de pensamento que culminou em Rousseau e na Revolução Francesa.

Toda filosofia política, pensa Spinoza, deve basear-se na distinção entre ordem natural e ordem moral, isto é, entre a existência antes e a existência depois da formação das sociedades organizadas. Spinoza supõe que os homens já viveram em comparativo isolamento, sem lei ou organização social; não havia então, diz ele, conceito do justo e do injusto; direito e força era tudo um.

*Em um estado natural nada pode existir que, por comum assentimento, seja considerado bom ou mau, desde que no estado natural cada homem só consulta a sua própria vantagem e só de acordo com a sua fantasia determina o que é bom ou mau, sem responsabilidade perante nenhuma lei; e por isso o pecado não pode ser concebido no estado natural, e sim apenas no estado civil, no qual por consenso comum se decreta o que é bom ou mau, ficando cada qual responsável perante o estado...A lei e a ordem da natureza sob que todos os homens nasceram nada proíbe do que seja desejado ou do que o homem possa fazer, e não se opõe a luta, ao ódio, a cólera, a traição ou, em geral, a nada que os apetites sugiram. [Tractatus Politicus].

Temos uma indicação desta lei da natureza, ou desta ausência de lei da natureza observando a conduta dos estados; “não existe altruísmo entre as nações” [*Tractatus Politicus], porque só podem existir lei e moralidades onde existem uma organização aceita e uma autoridade comum e reconhecida. Os “direitos” dos estados são hoje o que eram os “direitos” dos indivíduos. Simples potencias, e por descuidadoso deslize dos diplomatas os principais estados são muito propriamente chamados Grandes Potenciais. Assim entre as espécies; não havendo organização comum não existe entre elas nenhuma moralidade ou lei; cada espécie faz para outra o que quer e pode.

Mas, como necessidades comuns impõem muito auxilio, esta ordem natural de potencias passa entre os homens a ordem moral de direitos. “Desde que em todos os homens o medo da solidão existe, porque, desajudado, nenhum é bastante forte para defender-se e conseguir o necessário para a vida, segue-se que por natureza o homem tende a organização social”. Para guardar-se contra o perigo “a força de um homem dificilmente bastaria; daí se arranjarem em termos de mutuo serviço e ajuda”. Os homens, entretanto, não são por natureza equipados para a mutua tolerância da ordem social; só o perigo gera associação, que gradualmente nutre e fortifica os instintos sociais: “os homens não são nascidos para a cidadania, mas adaptados a ela”.

A maior parte dos homens mostra-se naturalmente rebelde contra a lei e os costumes; os instintos são mais tardios e fracos do que os individualisticos e necessitam de reforço; o homem não é ‘bom por natureza’, como Rousseau desastrosamente foi levado a supor. Mas através da associação, ainda que apenas familiar, a simpatia nasce, um sentimento que acaba gerando a bondade. Gostamos do que a nós se assemelha; “temos piedade não só de uma coisa amada mas também da que julgamos similar a nós”; sobrevêm além disso uma “limitação de emoções”, e por fim alguns graus de consciência. A consciência, todavia, não é inata mas sim adquirida; e varia cm a latitude. É o deposito no cérebro dos indivíduos das tradições morais de um grupo; por meio dela a sociedade cria para si um aliado mesmo no coração do seu inimigo – a alma naturalmente individualista.

Em uma sociedade organizada a lei do poder individual [estado de natureza] cede gradualmente diante do poder legal e moral do todo. A potencia ainda permanece direito, mas a potencia do todo limita a do individuo – teoricamente a linha no quantum necessário a não entrar em conflito com os seus semelhantes. Parte da potencia natural do individuo, ou soberania, é transmitida para a comunidade em troca do alargamento da esfera da potencia restante. Abandonamos, por exemplo, o direito a cólera e a violência em troca de ficarmos livres da cólera e da violência dos outros. A necessidade da lei decorre de serem os homens sujeitos a paixões; se todos só se guiassem pela razão seria desnecessária. A lei perfeita criaria para os indivíduos a mesma relação que a razão perfeita cria para as paixões; seria coordenação de forças hostis para evitar a ruína e aumentar o poder do todo. Justamente como na metafísica a razão é a percepção da ordem das coisas, e na ética é o estabelecimento da ordem entre os desejos, assim também na política é o estabelecimento da ordem entre os homens. O estado perfeito limitaria o poder dos cidadãos unicamente no quantum desse poder destrutivo; não retiraria  nenhuma liberdade, exceto para dar outra maior.

*O fim ultimo do estado não é dominar os homens, nem pelo terror restringir-lhes a ação; é antes libertá-los do terror, para que possam viver e agir em plena segurança e sem perigo para si e para o seu vizinho. O fim do estado, repito, não é transformar seres racionais em brutos ou maquinas. É habilitar o corpo e o espírito dos cidadãos a funcionar melhor. É levar os homens a viver pela e para a razão livre; para que não desperdicem a força em ódios e fraudes, nem se conduzam deslealmente. Assim, o verdadeiro fim do estado é a liberdade.

Liberdade é a meta do estado, porque a função do estado é promover o desenvolvimento e este depende da liberdade. Mas que sucede se as leis sufocam a liberdade nascente? Mas que deve fazer o homem se o estado, procurando preservar a sua existência [que ordinariamente significa conservação de empregos] se torna maquina de dominação e exploração? Obedecer ainda a lei injusta, responde Spinoza, caso o protesto razoável e a discussão forem permitidos e a palavra for deixada livre para reivindicar pacificamente mudanças. “Confesso que tal liberdade da palavra podem sobrevir inconvenientes; mas quem é no mundo que ainda não provocou abusos?” Leis contra a liberdade da palavra subvertem todas as outras leis; porque o homem deixa de respeitar as leis que não pode criticar.

*Mais um governo luta para suprimir a liberdade de pensamento, mais obstinada resistência encontra dos que, pela boa educação, sã moralidade e virtude, se tinham tornado mais livres. São os homens em geral constituídos de tal modo que nada sofrem com menos paciência do que verem as idéias que julgam justas serem tidas como crimes contra a lei. Sob tais circunstancias não consideram desonroso, antes acham honrosissimo, detestar as leis e tudo fazer contra o governo.

E Spinoza conclui como um bom constitucionalista americano: “Se só as ações fossem perseguidas e a palavra tivesse livre curso, a sedição nunca teria justificativa”.

Quanto menor o controle do estado sobre o espírito, tanto melhor para o estado e para o individuo. Embora reconhecendo a necessidade do estado, nele não confia Spinoza, pois o poder corrompe ainda os incorruptíveis [não era este o nome dado a Robespierre?]; e não olha com favor para a extensão da sua autoridade sobre a alma e o pensamento dos homens; seria isto o termo do desenvolvimento e a morte do grupo. Assim desaprova o controle do estado sobre a educação, especialmente nas universidades; “Academias fundadas a expensas do publico instituem-se, não tanto para cultivar os dons naturais dos homens, como para sufocá-los. Em uma republica livre as artes e as ciências serão melhor cultivadas se o ensino for livre; quem o quiser, autorize-se e ensine publicamente, por sua própria conta e risco”. Como encontrar um meio termo entre a universidade controlada pelo estado e universidade controlada pela riqueza particular? Problema que Spinoza não ventilou; em seu tempo a riqueza particular não havia crescido a ponto de dar margem a essa questão. Seu ideal era a alta educação que floresceu na Grécia, vinda, não de instituições, mas de individuo livres – “sofistas” -  que viajavam de cidade em cidade a ensinar, sem nenhum controle publico ou privado.

Estabelecidas estas premissas nenhuma diferença faz a forma de governo – e Spinoza exprime apenas morna preferência pela democracia. Qualquer das tradicionais formas políticas pode ser ajeitada de modo que faça o cidadão preferir o direito publico a vantagem privada; esta é a tarefa do legislador. A monarquia é eficiente, mas opressiva e militaristica.

*A experiência é suposta ensinar que a autoridade enfeixada nas mãos de um só homem é benéfica par a paz e a concórdia. De fato, nenhuma dominação durou tanto, sem nenhuma modificação notável, como a dos turcos; e por outro lado nenhuma dominação durou menos que a das democracias populares, nem foram tão agitadas de sedições. Mas se barbarismo, escravidão e desolação podem ter o nome de paz, não existe maior infortúnio para os homens do que a paz. Não há duvida que ocorrem mais disputas entre pais e filhos do que entre senhores e escravos; todavia não melhora a casa mudar os direitos paternos em um direito de propriedade e incluir os filhos na classe dos escravos. Escravidão, sim, não paz, é o que decorre da atribuição de toda a autoridade a um homem.

A isto Spinoza acrescenta algumas palavras sobre a diplomacia secreta:

8É nota insistente nos que querem o poder absoluto, que os interesses do estado exigem que os negócios sejam conduzidos secretamente. Esses argumentos, porém, quanto mais se disfarçam sob a mascara do bem publico mais opressivos tornam a escravidão a qual conduzem. É preferível que as boas decisões de um estado sejam conhecidas do inimigo a que os maus segredos dos tiranos sejam ocultos dos cidadãos. Os que tratam secretamente os negócios de uma nação põem-se em absoluto sob sua autoridade. E como conspiram contra o inimigo em tempo de guerra, assim conspiram contra os cidadãos na paz.

A democracia é a mais razoável das formas de governo; porque nela ‘cada qual submete ao controle da autoridade as suas ações apenas, não o seu critério ou a sua razão; isto é, visto como todos não podem pensar do mesmo modo a voz da maioria fica com força de lei”. A  base militar desta democracia deverá ser o serviço militar universal, retendo os cidadãos suas armas durante a paz; e a base fiscal será uma taxa única” [*”Os campos ou toda a terra, e ainda [se possível] as casas devem ser propriedade publica...arrendada aos cidadãos... e com esta exceção, nenhuma outra taxa em tempo de paz” – Tractatus Politicus, cap.6]. O defeito da democracia é a sua tendência de levar ao poder a mediocridade; e não existe meio de o evitar senão limitando o exercício dos cargos aos “homens preparados”. O numero em si não implica sabedoria e os mais altos cargos podem por ele ser atribuídos aos maiores lisonjeadores. “A volúvel disposição de animo das multidões leva ao desespero os que possuem experiências; porque a multidão é governada por emoções e nunca pela razão”. Assim, o governo democrático se torna um rosário de demagogos de vida curta, ao passo que aos homens de valor repugna interessar-se pelo governo, já que tem de ser escolhidos por gente que lhes é inferior. Cedo ou tarde os mais capazes rebelam-se contra semelhante sistema, embora estejam em minoria. “Desse modo as democracias se transformam em aristocracias e estas em monarquias”; o povo acaba preferindo a tirania a desordem. Igualdade de poderes constitui uma condição instável, e “quem procura a igualdade procura o absurdo”. A democracia tem ainda de solver o problema de mobilizar as melhores energias do homem com a escolha entregue ao sufrágio – mas o escolhido tem que sair dos preparados e estes governarão.

Que luz o gênio de Spinoza não poderia ter projetado sobre este problema Maximo da política moderna, se a morte prematura não lhe viesse interromper os trabalhos! O que nos legou não passa de um esboço imperfeito da sua concepção geral. Spinoza morreu enquanto traçava este capitulo sobre a democracia.

Spinoza_Religião e Imortalidade

Como nós a vemos, a filosofia de Spinoza foi uma tentativa de amor num mundo que o transformara num solitário proscrito; de novo, como Job, personificava ele o seu povo e perguntava a si próprio como podia ser justo, assim como o povo eleito, sofrer perseguição e exílio. Por algum tempo o conceito do mundo como processo de leis invariáveis e impessoais lhe bastou e o consolou; no fim, porém, o seu espírito essencialmente religioso transfez esse frio processo em algo amável. Experimentou fundir seus próprios desejos com a ordem universal das coisas e tornar-se parte quase indiscernível da natureza. “O maior dos bens é o conhecimento da união do espírito com a natureza inteira” [*De Emendatione]. Realmente, nossa separação individual é uma sensação ilusória; somos parte da grande corrente de lei e causa, parte de Deus; somos formas passageiras e perecíveis de um ser maior e sem fim. Nossos corpos não passam de células do corpo da raça; nossa raça, um incidente um drama da vida; nosso espírito, faísca da luz eterna. “Nosso espírito é um eterno de pensamento, determinado por outro modo de pensamento, que por sua vez se determina por outro e assim até ao infinito; e todos simultaneamente constituem o eterno e infinito intelecto de Deus. Nesta panteistica fusão do individuo com o Todo fala de novo o Oriente: ouvimos o eco de Omar, que “nunca chamou dois ao Um”, e recordamo-nos do velho poema da Índia: ”Reconhece em ti e no Todo uma mesma alma; bane o sonho de que és parte autônoma”.  “As vezes, diz Thoreau, quando vagueio no Walden Pond, cesso de viver para ser”.

Como parte de tal todos somos imortais. “O espírito humano absolutamente não pode ser destruído com o corpo; parte dele permanece eterna”, a parte que concebe as coisas sub specie eternitatis; mais concebemos desse modo as coisas, mais eterno é o nosso pensamento. Spinoza é ainda mais obscuro aqui do que em qualquer outra parte; após infindável controvérsia entre seus comentadores, suas palavras ainda falam diversamente a cérebros diversos. Imaninamo-lo as vezes a significar com essas palavras a idéia de George Eliot sobre a imortalidade pela reputação, isto é, que o que em nosso pensamento e em nossa vida há de mais racional e belo nos sobreviverá para exercer uma influencia indefinida para o diante. Spinoza as vezes parece ter em mente uma imortalidade individual ou pessoal; e pode ser que, como a morte o ameaçasse muito cedo, haurisse consolação na esperança que brilha eterna nos corações humanos. Insistentemente, todavia, distingue eternidade de duração. “Se dermos tento a opinião comum dos homens, os veremos todos conscientes da eternidade do espírito; as confundem eternidade com duração, e atribuem a imaginação ou memória o que julgam que durará depois da morte”. Mas, como Aristóteles, embora falando de imortalidade, Spinoza nega a sobrevivência da memória pessoal. “O espírito não pode imaginar nem recordar-se de qualquer coisa senão quando está no corpo”. Nem crê em recompensas celestiais: “Estão muito longe da virtude os que para ela esperam o galardão de Deus como a maior das recompensas; como se a virtude e o servir a Deus não fossem a felicidade em si”. “Bem-aventurança não é a recompensa da virtude, mas a virtude em si”. E talvez do mesmo modo a imortalidade não é a recompensa do alto pensamento, e sim o alto pensamento em si, que desse modo traz o passado ao presente e leva este ao futuro, superando os limites do tempo, e apreendendo a perspectiva que permanece eterna atrás das mudanças caleidoscopicas; tal pensamento é imortal porque cada verdade é uma criação permanente, parte de uma aquisição eterna do homem e que o influencia indefinidamente.

Com esta observação final termina Spinoza sua Ética. Raras vezes um livro acumulou tanto pensamento e provocou tantos comentários, permanecendo ainda hoje campo de batalha para interpretações hostis. Sua metafísica pode ser deficiente; sua psicologia, imperfeita; sua teologia, insatisfatória e obscura; mas da alma desse livro, do seu espírito, nenhum homem falará sem reverencia. No ultimo parágrafo esse espírito brilha luminoso:

*Completo assim a exposição do que pretendi mostrar no relativo ao poder do espírito sobre as emoções, ou liberdade do espírito, do qual ressalta quanto o homem sábio está na frente e quanto mais forte é ele que o ignorante, apenas guiado por apetites. Porque o ignorante, além de ser agitado de muitas maneiras por causas externas, jamais goza verdadeira satisfação de espírito; vive na quase inconsciência de si próprio, de Deus e das coisas, e logo que cessa de ser passivo cessa de ser. O sábio, ao contrário, tem consciência de si, de Deus e das coisas; nunca cessa de ser e goza sempre de satisfação de espírito. Se o caminho que mostrei é difícil, pode no entanto ser descoberto. E na realidade deve ser muito áspero já que não é raramente perlustrado. Todas as coisas excelentes são difíceis e raras.