Perguntemo-nos agora como subsiste ainda hoje, após tão fustigada pelas tormentas filosóficas de todo um século, esta complexa estrutura lógica, metafísica, psicológica, ética e política. Apraz-no dizer que grande parte dessa grande edificação ainda perdura e que a “filosofia critica” representa um sucesso de importância permanente na historia do pensamento humano. Mas já aluiram muitos detalhes e obras exteriores dessa estrutura.
Em primeiro lugar, é o espaço mera “forma de sensibilidade”, e sem realidade objetiva fora do espírito que o percebe? Sim e não. Sim: pois o espaço é um conceito vazio quando não contêm os objetos percebidos; “espaço” significa simplesmente que certos objetos estão, para o espírito que os percebe, em tal posição ou distancia, em relação a outros objetos percebidos; e não é possível nenhuma percepção exterior a não ser a dos objetos no espaço. O espaço é, então, seguramente, “uma forma necessária do senso externo”. E não: pois fatos espaciais, com a elipse anual percorrida pela natureza em torno do sol,embora verificáveis somente por um espírito, existem independentemente de qualquer percepção; o profundo e sombrio oceano azul já existia antes que Byron assim o chamasse e continuou a existir depois que o poeta deixou de viver. Nem é o espaço uma “construção” do espírito, mediante a coordenação de sensação sem dimensões; percebemo-lo diretamente por meio de nossa percepção simultânea de diferentes objetos e diversos pontos - bem como quando vemos um inseto mover-se contra um fundo imóvel.
Similarmente: o tempo como sensação do antes e do depois, ou como medida do movimento é naturalmente subjetivo e altamente relativo; mas uma arvore envelhecerá e secará quer meçam, quer não meçam, quer percebam ou não percebam o lapso de tempo de sua duração. A verdade é que Kant, para fugir ao materialismo, sentia grande desejo de provar a subjetividade do espaço; receava o argumento de que, se o espaço é objetivo e material, Deus deve existir no espaço e ser, por conseguinte, espacial e material. Ele poderia contentar-se com o idealismo critico, que mostra que conhecemos primariamente toda a realidade como sensações e idéias nossas. A velha raposa abocou um pedaço maior do que o que podia mastigar. [*A vitalidade persistente da teoria do conhecimento, de Kant, patenteia-se pela sua associação total por parte de um cientista de espírito positivo como o falecido Charles P. Steinmetz:”Todas as nossas percepções sensoriais são limitadas pelos conceitos de tempo e de espaço e associadas aos mesmos. Kant o maior e o mais critico de todos os filósofos, nega que o tempo e o espaço resultem da experiência e mostra serem categorias – conceito com que nosso espírito reveste as percepções dos sentidos. A física moderna chegou, na teoria da relatividade, a mesma conclusão de não existirem o espaço e o tempo absolutos e sim que o tempo e o espaço existem unicamente quando preenchidos por coisas ou fatos – isto é, quando são formas de percepção” – Comunicado a Igreja Unitária, Schenectady, 1923].
Ele poderia, também, contentar-se com a relatividade da verdade cientifica, sem se esforçar para atingir a miragem do absoluto. Estudos recentes como os de Pearson na Inglaterra, os de Mach na Alemanha e de Henri Poincaré na França, concordam mais com Hume do que com Kant: toda ciência, inclusive a mais precisa matemática, é relativa em sua verdade. A própria ciência não se preocupa muito com esta matéria,contentando-se com um elevado grau de probabilidade. No fim de contas o conhecimento “necessário” talvez não seja necessário.
O grande mérito de Kant é haver mostrado, de uma vez por todas, que apenas conhecemos o mundo externo como sensação – e que o espírito não é simples e inerte tabula rasa, o paciente inativo da sensação, e sim um agente ativo, que seleciona e reconstrói a experiência quando esta surge. Podemos desfalcar a sua realização sem lhe danificar a grandeza essencial. Podemos sorrir, como Schopenhauer, de suas categorias a somarem uma dúzia exata, e tão bem acondicionadas em tríades e em seguida espichadas, contraídas e interpretadas torcida e implacavelmente para adaptar-se a todas as coisas e abrangê-las. E podemos até por em duvida o serem inatas essas categorias ou formas interpretativas do entendimento; talvez suceda assim com o individuo, conforme Spencer o admitiu, por terem sido adquiridas pela espécie – ou mesmo, o que é provável, o próprio individuo as poderia adquirir: as categorias podem ser sulcos do entendimento, hábitos de percepção e concepção produzidos gradualmente por sensações e percepções que automaticamente se dispõem – a principio desordenadamente, e em seguida por uma espécie de seleção natural de modos de arranjo - em ordem e de modo adequado e esclarecedor. É a memória que classifica e interpreta as sensações convertendo-as em percepções e, as percepções, tornando-as em idéias; mas a memória é uma acessão. Aquela unidade de espírito que Kant supõe inata [a “unidade transcendental de apercepção”] é adquirida - mas não por todos; e assim como se adquire, pode perder-se – pela amnésia, pela personalidade alternada ou pela demência. Os conceitos são uma elaboração e não um dom natural.
O século dezenove tratou com alguma rudeza a ética de Kant, sua teoria de um inato e apriorístico senso moral absoluto.A filosofia da evolução sugeriu irresistivelmente que o sendo do dever é uma sedimentação social no individuo; que é adquirido o conteúdo da consciência – apesar de ser inata a vaga tendência ao procedimento social. O eu moral, o homem social, não é uma criação especial provinda misteriosamente da mão de Deus e sim o produto de uma lenta evolução. A moral não é absoluta, e sim, um código de procedimento desenvolvido mais ou menos ao acaso para a sobrevivência do grupo e variável conforme a natureza e as circunstancias desse grupo; por exemplo: um povo cercado por inimigos considera amoral o individualismo balsâmico e diligente que uma nação nova e com segurança quanto a suas riquezas e, isolada, incentivará como fator necessário para a exploração dos recursos naturais e formação do caráter nacional. Nenhuma ação é boa por si mesma, como o supõe Kant [*Razão Prática, pág.31].
Deram-lhe pendor moralista sua mocidade pietista e sua vida penosa de trabalho constante e raros prazeres; chegou por fim a pregar o dever pelo dever, e caiu destarte inconscientemente, nos braços do absolutismo prussiano [*Confronte-se com A Filosofia e a Politica Alemãs, do professor Dewey]. Existe algo do severo calvinismo escocês em sua oposição do dever a felicidade; Kant é o continuador de Lutero e da Reforma estóica, assim como Voltaire o é de Montaigne e da Renascença Epicurista. Encarnava uma severa reação contra o egoísmo e o hedonismo em que Helvécio e Hollbach refletiram a vida desses tempos desregrados, exatamente como Lutero reagira contra o luxo e a dissolução dos costumes da Itália Mediterrânea. Mas depois de um século de reação contra o absolutismo da ética de Kant, encontramo-nos novamente em um monturo de sensacionalismo e imoralidade urbanos, de implacável individualismo não refreado pela consciência democrática ou pela honra aristocrática; e talvez chegue breve o dia em que uma civilização a desintegrar-se acolherá de novo, satisfeita, o apelo kantiano ao cumprimento do dever.
A maravilha da filosofia de Kant é fazer vigorosamente reviver, em sua segunda Critica, as idéias religiosas de Deus, liberdade e imortalidade que a primeira Critica, aparentemente destruíra. “Na obra de Kant, diz o critico amigo de Nietzsche, Paul Ree, sentimos a impressão de estar em uma feira campezina. Podemos ali comprar tudo o que quisermos – a liberdade moral e a escravidão moral, o idealismo e a refutação do idealismo, o ateísmo e o bom Deus. Como na mágica do prestidigitador e do chapéu vazio, Kant tira de seu conceito do dever um Deus, a imortalidade e a liberdade – com grande surpresa para seus leitores” [*Em Untermann, Ciência e Revolução, Chicago, 1905, pág.81]. Schopenhauer também acha graça ao vê-lo deduzir a imortalidade, da necessidade de recompensa: “A virtude de Kant, que a principio o fez investir tão bravamente contra a felicidade, perde depois esse desassombro e por um triz não se desmanda” [*Paulsen, pág 317].
O grande pessimista acredita que Kant era verdadeiramente um cético e que, havendo deixado de crer, hesitava em destruir a fé popular, receoso das conseqüências na moral publica. “Kant parenteia a falta de alicerces da teologia especulativa e deixa intacta a teologia popular, chegando mesmo a estabelecê-la em mais nobre forma, como o é uma fé baseada no sentimento moral. Isto foi depois desvirtuado pelos filosofastros em apreensão racional e consciência de Deus, etc...;ao passo que o desejo de Kant, ao destruir erros antigos e veneráveis mas compreendendo o perigo de assim proceder, era, por meio da teologia moral, fornecer alguns frágeis e temporários suportes a fé, para que seus escombros não caíssem sobre ele, tendo, assim, tempo de fugir-lhes” [*O Mundo como Vontade e como Idéia, vol. II, pág.129].
Do mesmo modo, Heine, com intenção claramente humorística, apresenta-nos Kant, após ter destruído a religião, a sair a passeio com Lampe, o seu servidor: notando em dado momento os olhos do velho marejados de lagrimas, “Emanuel Kant compadece-se dele e mostra que, além de grande filosofo, é também um homem bom; e em tom entre bondoso e irônico fala assim: “Diz a razão que sem um Deus o velho Lampe não poderá ser feliz; é preciso, portanto, que eu faça garantir-lhe esse Deus” [*Citado por Paulsen, pág.8]. Se tais opiniões fossem verazes, deveríamos dar a segunda Critica o nome de Anestetica Transcendental.
Mas estas arriscadas reconstituições do Kant intimo não devem ser tomadas muito a sério. O tom ardente do ensaio sobre a “Religião dentro do Limite da Razão Pura” evidencia uma sinceridade muito grande para que seja posta em duvida; e a tentativa de substituir por uma base moral a base teológica da religião, e pelas normas de conduta os seus pontos de fé, só poderia emanar de um espírito profundamente religioso. “É grande verdade”, escreveu ele a Moses Mendelssohn em 1766, “que penso com a mais forte convicção muitas coisas... que nunca terei a coragem de dizer; mas nunca direi coisa alguma a não ser aquilo que penso” [*Em Paulsen, pág. 53].
É natural que conduza a interpretações contraditórias uma obra alentada e obscura como a grande Critica; uma das primeiras analises daquele livro, poucos anos após seu aparecimento, analise da autoria de Reinhold, disse o que ainda hoje poderemos repetir: “A critica da Razão Pura” foi proclamada pelos dogmatistas como a tentativa de um cético para abalar a certeza de todo o conhecimento; pelos céticos, como uma obra de arrogante presunção que empreende erigir nova forma de dogmatismo sobre as ruínas dos sistemas anteriores; pelos super-naturalistas, como um artifício habilmente maquinado para remover os fundamentos históricos da religião e estabelecer sem controvérsias o naturalismo; pelos naturalistas, como um novo suporte a moribunda filosofia da fé; pelos materialistas, como uma refutação idealista da realidade da matéria; pelos espiritualistas, como uma injustificável limitação da realidade do mundo corpóreo, rebuçado com o nome de domínio da experiência” [*Em Paulsen, pág.114]. A gloria do livro reside, verdadeiramente, em sua apreciação sob todos estes pontos de vista; e para uma inteligência penetrante como a do próprio autor, poderia perfeitamente antolhar-se que ele havia, de fato, reconciliado a todos aqueles, fundindo-os em um todo de complexa verdade, como até então a filosofia nada vira em toda a sua história.
Quanto a sua influencia, todo o pensamento filosófico do século XIX girou em torno das especulações de Kant. Depois dele a Alemanha inteira começou a falar sobre metafísica. Schiller e Goethe o estudaram; Beethoven citou com admiração suas celebres palavras sobre as duas maravilhas da vida: “em cima, o céu estrelado, e dentro de nós a lei moral”; e Fichte, Schelling, Hegel e Schopenhauer criaram em rápida sucessão grandes sistemas filosóficos alicerçados no idealismo do velho sábio de Koenigsberg. Foi nesses fagueiros dias da metafísica alemã que Jean Paul Richter escreveu: “Deus deu aos franceses o domínio da terra; aos ingleses o do mar, e aos alemães, o do ar”.
A critica da razão de Kant e sua exaltação do sentimento prepararam o voluntarismo de Schopenhauer e de Nietzsche, o intuicionismo de Bérgson e o pragmatismo de Willian James; a sua identificação das leis do pensamento com as leis da realidade deu a Hegel um sistema completo de filosofia; e sua incognoscível “coisa em si” exerceu em Spencer mais influxo do que este teve consciência. Em muito da obscuridade de Carlyle poderemos rastrear uma tentativa de alegorizar a já obscura idéia de Goethe e Kant – de que as varias religiões e filosofias são apenas as vestes cambiantes de uma verdade eterna. Caird, Green, Wallace, Watson e Bradley e muitos outros ingleses se inspiraram na primeira Critica; e até Nietzsche, o feroz inovador, tira sua epistemologia da obra do “grande chinês de Koenigsberg”, cuja ética estática ele verbera com tamanha veemência. Após um século de lutas entre o idealismo de Kant, variamente remodelado, e o materialismo dos racionalistas, diversamente modificado, afigura-se que a vitória ficou do lado de Kant. Até o grande materialista Helvécio escreveu, paradoxalmente: “os homens, se me atrevo a dizer assim, são os criadores da matéria” [*Em Chamberland, vol I, pág.86]. A filosofia não mais será tão ingênua em seus tempos mais antigos e simples; será sempre diversa e mais profunda – porque Kant existiu.