Visões pessoais da realidade só fazem sentido quando utilizadas para facilitar a nossa vida cotidiana, sem que se perca de vista a possibilidade de outros paradigmas. Pressupor que a nossa perspectiva é a única forma correta de ver o mundo tende, geralmente, a criar sérios problemas para o ser humano. Impossibilidade de mudança, acúmulo de preconceitos, falta de criatividade e ausência de liberdade são apenas alguns deles.
Uma visão de mundo, um sistema de descrição de como o mundo funciona, é um mapa da realidade. Como em qualquer outro mapa, certas definições do que “existe” e do que é “real” são aceitas, outras não. O mapa diz: “O que mostro é real para o seu propósito, o que não mostro não é real para seu propósito”. Ele define a realidade, e a definição é válida, uma vez que ajuda a realizar nossos propósitos com mais facilidade. Tomemos um exemplo.
A seguir, vamos imaginar que temos dois mapas da área em torno da cidade de Nova York. Um deles é o que deve ser usado pelo piloto de avião partícula, quando o dia está claro. O piloto olha pra baixo, vê rios, pontos, prédios, etc., e a partir desses pontos sabe onde está e como chegar ao aeroporto. O outro mapa é utilizado pelo piloto de uma linha aérea comercial. Aponta apenas os sinais de rádio. Esses dois mapas do que “está fora” no mesmo espaço geográfico, ambos acurados, válidos e úteis, não têm um único traço em comum. Poderíamos levar a discussão mais adiante, imaginando outros tipos de mapas da mesma área,tais como mapas barométricos, de densidade demográfica, de relevo e outros mais. Cada um deles teria uma imagem diferente, conteria diferentes elementos, conduziria a diferentes comportamentos e serviria a diferentes objetivos. Cada um seria “um mapa” válido e não “o mapa válido”. [1]
A maior diferença ente um mapa físico e visão de mundo está neste último ponto. Quando olhamos para um mapa, sabemos que ele é válido apenas para o propósito a que se destina. Ele não tem o pressuposto de representar a “única” forma correta de se olhar o território. Uma imagem do mundo tem, quase invariavelmente, esse falso pressuposto e tende a criar para nós, humanos, a maioria das situações problemáticas com as quais nos deparamos. Esquecemos que, como acontece com o mapa físico, ele pode apenas nos ajudar a alcançar certas metas. As outras, ele define como irreais e não existentes, conduzindo portanto as partes de nosso ser que seriam alimentadas por aquelas metas a definharem insatisfeitas.
Estamos tão convictos de que o nosso sistema de organização da realidade é o único válido e “real que fica difícil compreendermos a idéia de que os símbolos usados por nosso sistema não são uma parte inextricável daquilo que representam. Em outras palavras, achamos que os símbolos que a nossa cultura nos ensinou a usar são os naturalmente corretos e todos os outros são errados. Se pronunciarmos a palavra “igle” diante de um americano e um alemão, o primeiro a associará a um pássaro e nada mais; o segundo, a um porco-espinho, como se somente um porco-espinho pudesse ser chamado assim.[2] Observe a afirmação de que 2+2=4. É difícil acreditar que o sinal + possa significar igualmente “dividido por”. Estamos tão bem treinados que o conceito “mais” parece o único natural e correto para o sinal +. A designação original foi completamente acidental e poderia muito bem ser “dividido por”, mas é muito difícil acreditarmos nisso.
Há uma velha anedota que ilustra bem esse sentimento. Adão e Eva davam nome aos animais no Jardim do Éden. Eva disse: “Este é um hipopótamos”. Adão perguntou por que esse nome, e Eva respondeu:”Por que ele parece um hipopótamo.” Hoje, de fato, ele parece mesmo. Seria muito difícil mudar seu nome para “phlerm” sem comentar secretamente:”Eu o chamo de ‘phlerm’,mas é, na verdade, um hipopótamo”. Os símbolos e o mapa da realidade que nos orientam parecem ser as únicas possibilidades válidas.
Um coisa deve ficar clara sobre nossa realidade, o mundo que percebemos e ao qual reagimos:ele é passível de transformações. Com a intenção de observar essa hipótese, falarei sobre alguns diferentes aspectos da realidade, começando com a variedade de idéias que elas contêm e o seu alcance.
No século 15, o maior engenheiro do mundo projetou um helicóptero. A máquina voadora de Leonardo da Vinci é perfeitamente viável e voaria não fosse uma razão:na percepção dele de realidade não havia o menor vestígio de um conceito que hoje todo garoto de 8 anos conhece – que a energia pode ser obtida de outras formas além do vento, da água e dos músculos. Isso simplesmente não fazia parte da realidade de Da Vinci. Conseqüentemente, quando levantou-se o problema de como fazer a hélice girar, a única solução encontrada por ele foi colocar dois homens no helicóptero girando manivelas. A solução não produziu força suficiente se comparada ao peso dos homens, e o helicóptero não pôde voar. Pelo que sabemos das habilidades de Leonardo, é óbvio que, se ele soubesse da possibilidade de uma força não proveniente do vento, da água ou dos músculos, teria construído rapidamente uma máquina a vapor e, bem ou mal, o helicóptero teria voado, cinco séculos atrás.
Este parece apenas um fato histórico medianamente interessante. Entretanto,tem suas implicações atuais. O incidente [...] sobre a discussão entre pai e filho a respeito da carreira deste último pode ser um exemplo. A convicção do filho de que o maior benefício para um indivíduo e para a sociedade advém do fato de que cada pessoa deve aprender a cantar sua própria canção, tocar a própria música com sua maneira de ser, criar e relacionar-se, talvez não exista na realidade do pai. Mas é crucial na realidade do filho. Por outro lado, a idéia de que conquistar qualquer coisa de valor na vida requer trabalho duro e disciplina pode fazer parte realidade do pai e não da do filho. A menos que os dois aprendam a escutar um ao outro e a perceber a realidade do outro, eles podem estar na mesma sala, bem próximos, conversando, mas a comunicação será pobre e a experiência não trará nenhum crescimento ou mudança [...]. Literalmente, nenhum deles é livre, nem tem livre-arbítrio, enquanto estiver preso a respostas convenientes à sua própria realidade; e uma vez que não admite a existência de outra realidade “real”, não pode mudar seu comportamento.
Até poucos anos atrás, o problema da ecologia - ou seja, a questão de não transformar nosso planeta em um imenso depósito de lixo inabitável – era impossível de ser solucionado porque dois pensamentos relacionados à ecologia não faziam parte da realidade da maioria das pessoas. Para elas, as noções de que todas as coisas se inter-relacionam e tudo tem de ir para algum lugar estavam tão distantes do jeito como percebiam o mundo quando a idéia do motor a combustível estava para Leonardo da Vinci. Só quando essas idéias passaram a fazer parte da realidade da vida das pessoas a ecologia tornou-se uma atividade significativa.
Nossas realidades mudam à medida que novas idéias passam a fazer parte delas. Algumas idéias novas, como a de que os seres humanos tem inconsciente, de que a Terra é redonda, de que a bactéria existe, de que as emoções podem afetar o corpo, já integram a nossa realidade. Uma vez que conseguimos aceitar novas idéias e que elas podem transformar o mundo em que vivemos, cada um de nós deve se perguntar de que novas idéias precisamos [ como a fonte de energia de Leonardo] para resolver os problemas importantes. Podemos manter os olhos voltados para essas novidades e então checá-las e testá-las. Podemos sugerir, para começar, a noção de que nossas idéias [portanto, o mundo em vivemos]podem mudar, somar-se a outras e tornar-se mais ricas. Só com esse conceito já introduzimos uma mudança significativa em nossa realidade: permitimos que ela se abra para novas transformações, se forem as que buscamos.
Outro aspecto da realidade de uma pessoas que pode mudar é o seu campo de ação: até onde ele vai? Podemos olhar para esse aspecto, perguntando: “Quantas pessoas ele abrange?” Isto é, quantas pessoas são reais para que você possa agir como se fossem tão reais quanto você? Há mais alguém além de você? Uma, duas, três ou mais? Família? Amigos? Colegas de trabalho? Será que uma criança que morre de fome em outro país é tão real que você a leve em consideração na hora de votar ou decidir sobre impostos, o racionamento ou alguma campanha de caridade? Pessoas diferentes incluem diferentes quantidades de outras pessoas em suas realidades.
Historicamente, o campo de ação da realidade mudou para a maioria com o crescimento populacional. Podemos observar esse fato claramente se considerarmos o assunto sob o ponto de vista do impulso para a ação, talvez de defender, lutar e até morrer por alguém. Provavelmente, primeiro havia apenas eu, ou eu e a família. Depois, ampliou-se até a tribo, a cidade, a província e a nação.
A cada nova expansão, a realidade continuou abrangendo todas as pessoas que já faziam parte dela em vez de substituí-las. É interessante notar que nossos sentimentos em relação às pessoas que vivem uma realidade mais ampla que a nossa são muito diferentes dos que nutrimos pelas pessoas inseridas numa realidade mais limitada. Imagine como você se sentiria em relação a alguém disposto a lutar por uma cidade, mas não pelo país. Digamos que essa pessoa lutasse pela Borgonha ou por New Jersey em vez de pela França ou pelos Estados Unidos. Agora imagine o que sentiria por alguém que vê todo o planeta como sua própria realidade, como Dag Hammarskjold ou Albert Schweitzer. Obviamente os sentimentos são diferentes.
Desde que se tenha CONSCIÊNCIA da extensão da própria realidade, pode-se decidir o que se sente por ela; se se deseja ou não mudá-la. Este é o primeiro passo e é crucial: estar consciente de um aspecto da sua realidade, saber que pode ser modificado e decidir se quer ou não fazê-lo.
Há exemplos de que nossa contribuição tenha mudado o que existe fora, de que nossa percepção do mundo e nosso comportamento tenham,portanto, também mudado? Certamente, essa tem sido uma verdade constante em nosso julgamento do belo. Michelangelo era considerado um escultor de segunda linha, e Shakespeare, um escritor elisabetano menor. Exemplos deste tipo são infinitos. Podemos também observar o conceito de criança. A lei que permitia tirar crianças [de 7 e 8 anos] das escolas para trabalhar nas fábricas de dez a 12 horas por dia foi revista apenas recentemente. Houve, na época em que aprovamos a lei, há apenas 50 ou 60 anos, alguma transformação na criança que tivesse mudando nosso comportamento com relação a ela? É evidente que não; mas houve uma mudança em nossas contribuições para a realidade, para o que existe no mundo “fora”. É possível até que nossas contribuições para o que é real e importante mudem novamente e cheguemos à conclusão de que o valor de nosso carro é menor que a saúde de nossas crianças. Se assim o fizermos, mudaremos nosso comportamento e aprovaremos leis realmente eficazes contra a poluição.
Não existe algo como tamanho do espaço. “Qual é o tamanho do espaço?” Essa pergunta não faz sentido. “Qual o tamanho do espaço para mim?” Podemos, legitimamente, fazer esta segunda pergunta e obter uma resposta razoável. O tamanho do espaço, em nossa realidade, é apenas suficiente para conter e separar todos os objetos e pessoas aos quais reagimos, como se, nesse momento, eles fossem verdadeiramente reais e presentes. As pessoas e os objetos devem influenciar nosso comportamento, pois essa é, para nós, a definição de real.[3]
Assim como nosso espaço é suficiente para conter e separar todas as coisas presentes em nossa vida, o mesmo se dá com a definição de tempo. Não podemos esperar uma resposta significativa à pergunta: “Qual é a duração do tempo?” Podemos perguntar: “Quanto dura o tempo para mim?” O tempo dura o suficiente para conter e separar todas as pessoas e atos aos quais reagimos, como se fossem reais. Se reagirmos a problemas que poderão surgir dentro de 20 anos economizando para a nossa aposentadoria, nosso tempo avançará no futuro pelo menos 20 anos. Se reagirmos agora a incidentes e atmosferas de nossa infância, como todos fazemos em maior ou menor grau, nosso tempo real se estenderá pelo menos até aquele ponto do passado. Um historiador percebe os fatos presentes que lhe influenciam e ao seu comportamento como parte de uma seqüência de acontecimentos ocorridos antes de ele nascer; nesse caso, seu tempo real estende-se muito no passado. Se reagirmos ao que pode acontecer depois da nossa morte biológica, tentando evitar um futuro acidente ecológico ou demográfico, nosso tempo será ‘real’ pelo menos até onde se estende o futuro.
Talvez essa idéia fique mais clara se, em vez de perguntarmos quantos números existem, a pergunta seja quantos números são reais para nós. Contrastam aí dois extremos: o ignorante que consegue contar até dez e chama o número seguinte de “muitos”, e o matemático. Consigo também estimar meus próprios limites. Até certo ponto, reajo diferentemente a cada número. Além desse ponto, reajo somente a diferenças maiores [como entre 100 e 125, mas não entre 100 e 101]. Há um limite além do qual novos acréscimos simplesmente não mudam meu comportamento. Não acho, por exemplo, que me comportaria de forma diferente diante de um ou dois milhões de uma mesma coisa. Um “milionário”, um estatístico e um contador de uma grande empresa iriam se comportar de maneiras completamente diferentes.
Há mais um aspecto ligado à nossa percepção de tempo e espaço. Dentro de nossa realidade essas áreas são nitidamente delimitadas [como a superfície de um tabuleiro de damas] ou são uma única “peça” de roupa bem acabada? Percebemos e reagimos ao tempo como se ele fosse composto de períodos claramente delimitados, ou como a água corrente de um rio cujas partes não podem ser separadas? O espaço é uma série de círculos concêntricos à nossa volta[minha família, meus amigos, minha cidade, meu país] que nos leva a reagir de maneira diferente a fatos que ocorrem entre esse círculos? Ou será que percebemos e reagimos ao nosso espaço como se dentro dele não houvesse limitações e as coisas e pessoas estivessem inextricavelmente interligadas ao ponto de, como afirmou o físico P.C.Bridgeman, “qualquer movimento local agita todo o universo?”. Como veremos na discussão sobre as diferentes imagens do mundo, esse é um importante aspecto da realidade sujeito à nossa decisão de transformá-lo.
Escrevi [...] sobre a questão levantada por Voltaire a respeito do índio que visitou os tribunais da Inquisição e não entendeu as ações daquelas pessoas. Obviamente, o índio e os espanhóis organizavam a realidade de maneiras diferentes, por isso percebiam e reagiam às imagens da realidade de forma bastante diferente. Isso é algo que nós, seres humanos, podemos fazer: organizar a realidade de diferentes maneiras e, deste modo, modificá-la. È bastante improvável que os animais tenham essa capacidade na mesma proporção. O animal parece ser bem limitado em suas escolhas.
É verdade que os animais também utilizam várias descrições da realidade. Um forte impulso-proteção, forme, sexo - dominando o animal provocará a reestruturação de seu universo e dará diferentes significados aos objetos. Um crustáceo perceberá e reagirá a uma anêmona, seja como alimento, abrigo ou armadilha, dependendo do impulso mais forte no momento [4]. Não há comunicação entre as diferentes organizações de realidade:”elas estão separadas como as diferentes cenas em um palco giratório”.[5].
Nesse ponto, a diferença ente seres humanos e animais não é apenas o maior número de opções, mas o fato de que os primeiros podem exercitar a prerrogativa humana de escolher a organização da realidade mais eficaz para atingir suas metas. O animal muda automaticamente de acordo com o impulso. Seres humanos podem fazer de outro modo.
Começa a se delinear aqui uma definição de ‘ser humano’. Ele é um organizador da realidade e tem grande variedade de opções. Quanto mais usa suas opções, mais humano e menos animal ele é. Defino aqui o ser humano a partir do modelo da ciência moderna, não pelo que ele é em si – no caso, uma pessoa -, mas pelo que faz. A ciência do Renascimento definia as coisa primeiro em termos de estrutura [quais são seus componentes?]; hoje, a ciência as define primeiro em termos de processo [o que faz?]. Diante da grande variedade de opções, talvez possamos definir o ser humano como alguém que tem e exerce a escolha de alternativas, e quanto mais ele as utilizar, mais estará exercitando a função especificamente humana.
O inverso dessa definição de ser humano também é verdadeiro. Quanto menos uma pessoa exercitar suas opções, menos consciência terá das diferentes e válidas possibilidades de se organizar a realidade, de perceber e reagir a ela, e menos utilizará seu potencial especificamente humano. Essa poderá ser brilhante e capaz de lidar com organização específica da realidade que considera única e “real”, mas estará limitada a responder a qualquer outra coisa que aconteça de acordo com sua forma única de ver o mundo; portanto, estará limitada e terá diminuído seu livre-arbítrio.
Este conceito nos leva a outro: nenhuma visão de mundo funciona completamente. Não se trata de uma mapa da realidade, mas o mapa de uma forma de organizar a realidade. Fundamenta-se na crença em certas coisas básicas [a matemática chama-os de axiomas, que jamais podem ser provados] e na exclusão de outras não pertencentes ao sistema, portanto, “irreais”.[6]. Em função disso, todos os sistemas metafísicos, todas as visões de mundo “falham”; funcionam bem para alguns propósitos e mal para outros. Nenhuma dessas visões encerra todas as necessidades humanas. Aquelas por exemplo, que lidam eficazmente com a questão do “como“, lidam com menos eficácia[ou nenhuma] com a questão do “por que” e vice-versa. As que satisfazem nossas necessidades de prever e controlar a realidade não satisfazem nossa necessidade de compreensão. O inverso também é verdadeiro.
Aparentemente, esse é um dos motivos pelo qual os seres humanos tem se mostrado ineficientes com seus problemas da vida. Estamos sempre desequilibrados em alguma área. [É provável que haja exceções, mas certamente são raras]. Não há registro algum na historia humana d que em algum momento tenhamos conseguido usar todo o nosso potencial de prazer, alegria, produtividade, amor e bondade. É evidente que temos um grande potencial em todas essas áreas, porque já o experimentamos e vimos outros fazê-lo em vários momentos da vida. Reconhecemos também o respeito que sentimos por aqueles que utilizam seu potencial intensamente em uma determinada área e respeito ainda maior pelos que o fazem em mais de uma.
É como se nosso comportamento limitado em relação a nós mesmos, em relação aos outros e ao planeta, se devesse, em parte, ao fato de vivermos a realidade do universo de uma forma que é incompleta pela natureza. Estamos atrelados a essa realidade descoberta-inventada porque ela é um pressuposto de toda visão de mundo: parte do principio de que a imagem da verdade é única e é impossível ser “realista”, aceitar ou mesmo levar a sério qualquer outra verdade. Forçados a viver num universo que preenche apenas parte de nossas necessidades humanas, debatemo-nos em agonia atacando primeiro a nós mesmos, depois a nosso vizinho, e prestando pouca atenção à natureza universal que nos mantém vivos.
A saída, se esse conceito for válido, seria aumentar o número de visões de mundo ao qual podemos reagir-perceber, de modo a satisfazer todas as necessidades humanas. Dessa forma, poderíamos escolher o conceito de realidade que mais se ajustasse às necessidades predominantes do momento. Evidentemente, não podemos fazê-lo até termos a clareza de que nenhum dos sistemas válidos de organização da realidade está mais próximo da “verdade” que outro;que cada um representa uma forma diferente de perceber e reagir ao que existe.
Uma nova definição de liberdade começa a aparecer em nossa busca. Parece-me ser a capacidade de procurar novas formas de relacionamento entre nosso “ser” e o “mundo exterior”. Na medida em que pudermos provocar novas formas de conceber-descrever a realidade, seremos livres; se não conseguirmos efetuar esta busca, não seremos livres, mas estaremos fadados a reagir à realidade da maneira que nossa cultura nos permite. Uma vez que essa é a única realidade concebível, devemos responder a ela adequadamente. E nesse conjunto de respostas “apropriadas” não somos livres. Entretanto, se tivermos outras ferramentas, outras formas de criar a realidade, outros jeitos de organizar e relacionar o ‘self’ com o ‘mundo exterior’, seremos livres para escolher entre diferentes formas cada uma delas com um diferente conjunto de respostas apropriadas e, portanto, seremos mais livres.
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Notas
[1]O presente artigo é um excerto do capitulo 3 de Realidades Alternativas, de Lawrence LeShan, publicado no Brasil pela Summus Editorial. Tradução:Edith Elek e Vera Palma.
[2]O exemplo é de Gestalt Psychology, de Kohler, W. Nova Yor, Horace Liveright, 1929, p.72
[3] Este item é uma paráfrase de The Grammar of Science, de Karl Pearson. Nova York, Medidian Books, 1957.
[4]Uma análise cuidadosa disso foi feita por Jacob von Vexkuçç, em seu “Um Passeio Pelos Mundos de Animais e Homens”, in C.H. chiller Instinctive Behaviour.C.H. Schiller, Nova York, International University Press, 1957.
[5] Werner, H. The Comparative Psychology of Mental Development. Nova York, International University, 1973, p.339.
[6]”... já que toda prova se baseia em pressupostos, é inútil que a filosofia pretenda provar todas as suas proposições materiais...Não podemos explicar a experiência nem qualquer outra coisa sem presumir algo...” Cohen, M.R. Studies in Philosophy and Science. Nova Yorkk, Harper & Row, 1949, p.10.
Um dos grandes avanços na matemática ocorreu quando o matemático Kurt Godel mostrou que todos os sistemas matemáticos devem se basear numa série de pressupostos impossíveis de serem provados – os “axiomas”.
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[Por Lawrence LeShan]
Uma visão de mundo, um sistema de descrição de como o mundo funciona, é um mapa da realidade. Como em qualquer outro mapa, certas definições do que “existe” e do que é “real” são aceitas, outras não. O mapa diz: “O que mostro é real para o seu propósito, o que não mostro não é real para seu propósito”. Ele define a realidade, e a definição é válida, uma vez que ajuda a realizar nossos propósitos com mais facilidade. Tomemos um exemplo.
A seguir, vamos imaginar que temos dois mapas da área em torno da cidade de Nova York. Um deles é o que deve ser usado pelo piloto de avião partícula, quando o dia está claro. O piloto olha pra baixo, vê rios, pontos, prédios, etc., e a partir desses pontos sabe onde está e como chegar ao aeroporto. O outro mapa é utilizado pelo piloto de uma linha aérea comercial. Aponta apenas os sinais de rádio. Esses dois mapas do que “está fora” no mesmo espaço geográfico, ambos acurados, válidos e úteis, não têm um único traço em comum. Poderíamos levar a discussão mais adiante, imaginando outros tipos de mapas da mesma área,tais como mapas barométricos, de densidade demográfica, de relevo e outros mais. Cada um deles teria uma imagem diferente, conteria diferentes elementos, conduziria a diferentes comportamentos e serviria a diferentes objetivos. Cada um seria “um mapa” válido e não “o mapa válido”. [1]
A maior diferença ente um mapa físico e visão de mundo está neste último ponto. Quando olhamos para um mapa, sabemos que ele é válido apenas para o propósito a que se destina. Ele não tem o pressuposto de representar a “única” forma correta de se olhar o território. Uma imagem do mundo tem, quase invariavelmente, esse falso pressuposto e tende a criar para nós, humanos, a maioria das situações problemáticas com as quais nos deparamos. Esquecemos que, como acontece com o mapa físico, ele pode apenas nos ajudar a alcançar certas metas. As outras, ele define como irreais e não existentes, conduzindo portanto as partes de nosso ser que seriam alimentadas por aquelas metas a definharem insatisfeitas.
Estamos tão convictos de que o nosso sistema de organização da realidade é o único válido e “real que fica difícil compreendermos a idéia de que os símbolos usados por nosso sistema não são uma parte inextricável daquilo que representam. Em outras palavras, achamos que os símbolos que a nossa cultura nos ensinou a usar são os naturalmente corretos e todos os outros são errados. Se pronunciarmos a palavra “igle” diante de um americano e um alemão, o primeiro a associará a um pássaro e nada mais; o segundo, a um porco-espinho, como se somente um porco-espinho pudesse ser chamado assim.[2] Observe a afirmação de que 2+2=4. É difícil acreditar que o sinal + possa significar igualmente “dividido por”. Estamos tão bem treinados que o conceito “mais” parece o único natural e correto para o sinal +. A designação original foi completamente acidental e poderia muito bem ser “dividido por”, mas é muito difícil acreditarmos nisso.
Há uma velha anedota que ilustra bem esse sentimento. Adão e Eva davam nome aos animais no Jardim do Éden. Eva disse: “Este é um hipopótamos”. Adão perguntou por que esse nome, e Eva respondeu:”Por que ele parece um hipopótamo.” Hoje, de fato, ele parece mesmo. Seria muito difícil mudar seu nome para “phlerm” sem comentar secretamente:”Eu o chamo de ‘phlerm’,mas é, na verdade, um hipopótamo”. Os símbolos e o mapa da realidade que nos orientam parecem ser as únicas possibilidades válidas.
Um coisa deve ficar clara sobre nossa realidade, o mundo que percebemos e ao qual reagimos:ele é passível de transformações. Com a intenção de observar essa hipótese, falarei sobre alguns diferentes aspectos da realidade, começando com a variedade de idéias que elas contêm e o seu alcance.
No século 15, o maior engenheiro do mundo projetou um helicóptero. A máquina voadora de Leonardo da Vinci é perfeitamente viável e voaria não fosse uma razão:na percepção dele de realidade não havia o menor vestígio de um conceito que hoje todo garoto de 8 anos conhece – que a energia pode ser obtida de outras formas além do vento, da água e dos músculos. Isso simplesmente não fazia parte da realidade de Da Vinci. Conseqüentemente, quando levantou-se o problema de como fazer a hélice girar, a única solução encontrada por ele foi colocar dois homens no helicóptero girando manivelas. A solução não produziu força suficiente se comparada ao peso dos homens, e o helicóptero não pôde voar. Pelo que sabemos das habilidades de Leonardo, é óbvio que, se ele soubesse da possibilidade de uma força não proveniente do vento, da água ou dos músculos, teria construído rapidamente uma máquina a vapor e, bem ou mal, o helicóptero teria voado, cinco séculos atrás.
Este parece apenas um fato histórico medianamente interessante. Entretanto,tem suas implicações atuais. O incidente [...] sobre a discussão entre pai e filho a respeito da carreira deste último pode ser um exemplo. A convicção do filho de que o maior benefício para um indivíduo e para a sociedade advém do fato de que cada pessoa deve aprender a cantar sua própria canção, tocar a própria música com sua maneira de ser, criar e relacionar-se, talvez não exista na realidade do pai. Mas é crucial na realidade do filho. Por outro lado, a idéia de que conquistar qualquer coisa de valor na vida requer trabalho duro e disciplina pode fazer parte realidade do pai e não da do filho. A menos que os dois aprendam a escutar um ao outro e a perceber a realidade do outro, eles podem estar na mesma sala, bem próximos, conversando, mas a comunicação será pobre e a experiência não trará nenhum crescimento ou mudança [...]. Literalmente, nenhum deles é livre, nem tem livre-arbítrio, enquanto estiver preso a respostas convenientes à sua própria realidade; e uma vez que não admite a existência de outra realidade “real”, não pode mudar seu comportamento.
Até poucos anos atrás, o problema da ecologia - ou seja, a questão de não transformar nosso planeta em um imenso depósito de lixo inabitável – era impossível de ser solucionado porque dois pensamentos relacionados à ecologia não faziam parte da realidade da maioria das pessoas. Para elas, as noções de que todas as coisas se inter-relacionam e tudo tem de ir para algum lugar estavam tão distantes do jeito como percebiam o mundo quando a idéia do motor a combustível estava para Leonardo da Vinci. Só quando essas idéias passaram a fazer parte da realidade da vida das pessoas a ecologia tornou-se uma atividade significativa.
Nossas realidades mudam à medida que novas idéias passam a fazer parte delas. Algumas idéias novas, como a de que os seres humanos tem inconsciente, de que a Terra é redonda, de que a bactéria existe, de que as emoções podem afetar o corpo, já integram a nossa realidade. Uma vez que conseguimos aceitar novas idéias e que elas podem transformar o mundo em que vivemos, cada um de nós deve se perguntar de que novas idéias precisamos [ como a fonte de energia de Leonardo] para resolver os problemas importantes. Podemos manter os olhos voltados para essas novidades e então checá-las e testá-las. Podemos sugerir, para começar, a noção de que nossas idéias [portanto, o mundo em vivemos]podem mudar, somar-se a outras e tornar-se mais ricas. Só com esse conceito já introduzimos uma mudança significativa em nossa realidade: permitimos que ela se abra para novas transformações, se forem as que buscamos.
Outro aspecto da realidade de uma pessoas que pode mudar é o seu campo de ação: até onde ele vai? Podemos olhar para esse aspecto, perguntando: “Quantas pessoas ele abrange?” Isto é, quantas pessoas são reais para que você possa agir como se fossem tão reais quanto você? Há mais alguém além de você? Uma, duas, três ou mais? Família? Amigos? Colegas de trabalho? Será que uma criança que morre de fome em outro país é tão real que você a leve em consideração na hora de votar ou decidir sobre impostos, o racionamento ou alguma campanha de caridade? Pessoas diferentes incluem diferentes quantidades de outras pessoas em suas realidades.
Historicamente, o campo de ação da realidade mudou para a maioria com o crescimento populacional. Podemos observar esse fato claramente se considerarmos o assunto sob o ponto de vista do impulso para a ação, talvez de defender, lutar e até morrer por alguém. Provavelmente, primeiro havia apenas eu, ou eu e a família. Depois, ampliou-se até a tribo, a cidade, a província e a nação.
A cada nova expansão, a realidade continuou abrangendo todas as pessoas que já faziam parte dela em vez de substituí-las. É interessante notar que nossos sentimentos em relação às pessoas que vivem uma realidade mais ampla que a nossa são muito diferentes dos que nutrimos pelas pessoas inseridas numa realidade mais limitada. Imagine como você se sentiria em relação a alguém disposto a lutar por uma cidade, mas não pelo país. Digamos que essa pessoa lutasse pela Borgonha ou por New Jersey em vez de pela França ou pelos Estados Unidos. Agora imagine o que sentiria por alguém que vê todo o planeta como sua própria realidade, como Dag Hammarskjold ou Albert Schweitzer. Obviamente os sentimentos são diferentes.
Desde que se tenha CONSCIÊNCIA da extensão da própria realidade, pode-se decidir o que se sente por ela; se se deseja ou não mudá-la. Este é o primeiro passo e é crucial: estar consciente de um aspecto da sua realidade, saber que pode ser modificado e decidir se quer ou não fazê-lo.
Há exemplos de que nossa contribuição tenha mudado o que existe fora, de que nossa percepção do mundo e nosso comportamento tenham,portanto, também mudado? Certamente, essa tem sido uma verdade constante em nosso julgamento do belo. Michelangelo era considerado um escultor de segunda linha, e Shakespeare, um escritor elisabetano menor. Exemplos deste tipo são infinitos. Podemos também observar o conceito de criança. A lei que permitia tirar crianças [de 7 e 8 anos] das escolas para trabalhar nas fábricas de dez a 12 horas por dia foi revista apenas recentemente. Houve, na época em que aprovamos a lei, há apenas 50 ou 60 anos, alguma transformação na criança que tivesse mudando nosso comportamento com relação a ela? É evidente que não; mas houve uma mudança em nossas contribuições para a realidade, para o que existe no mundo “fora”. É possível até que nossas contribuições para o que é real e importante mudem novamente e cheguemos à conclusão de que o valor de nosso carro é menor que a saúde de nossas crianças. Se assim o fizermos, mudaremos nosso comportamento e aprovaremos leis realmente eficazes contra a poluição.
Não existe algo como tamanho do espaço. “Qual é o tamanho do espaço?” Essa pergunta não faz sentido. “Qual o tamanho do espaço para mim?” Podemos, legitimamente, fazer esta segunda pergunta e obter uma resposta razoável. O tamanho do espaço, em nossa realidade, é apenas suficiente para conter e separar todos os objetos e pessoas aos quais reagimos, como se, nesse momento, eles fossem verdadeiramente reais e presentes. As pessoas e os objetos devem influenciar nosso comportamento, pois essa é, para nós, a definição de real.[3]
Assim como nosso espaço é suficiente para conter e separar todas as coisas presentes em nossa vida, o mesmo se dá com a definição de tempo. Não podemos esperar uma resposta significativa à pergunta: “Qual é a duração do tempo?” Podemos perguntar: “Quanto dura o tempo para mim?” O tempo dura o suficiente para conter e separar todas as pessoas e atos aos quais reagimos, como se fossem reais. Se reagirmos a problemas que poderão surgir dentro de 20 anos economizando para a nossa aposentadoria, nosso tempo avançará no futuro pelo menos 20 anos. Se reagirmos agora a incidentes e atmosferas de nossa infância, como todos fazemos em maior ou menor grau, nosso tempo real se estenderá pelo menos até aquele ponto do passado. Um historiador percebe os fatos presentes que lhe influenciam e ao seu comportamento como parte de uma seqüência de acontecimentos ocorridos antes de ele nascer; nesse caso, seu tempo real estende-se muito no passado. Se reagirmos ao que pode acontecer depois da nossa morte biológica, tentando evitar um futuro acidente ecológico ou demográfico, nosso tempo será ‘real’ pelo menos até onde se estende o futuro.
Talvez essa idéia fique mais clara se, em vez de perguntarmos quantos números existem, a pergunta seja quantos números são reais para nós. Contrastam aí dois extremos: o ignorante que consegue contar até dez e chama o número seguinte de “muitos”, e o matemático. Consigo também estimar meus próprios limites. Até certo ponto, reajo diferentemente a cada número. Além desse ponto, reajo somente a diferenças maiores [como entre 100 e 125, mas não entre 100 e 101]. Há um limite além do qual novos acréscimos simplesmente não mudam meu comportamento. Não acho, por exemplo, que me comportaria de forma diferente diante de um ou dois milhões de uma mesma coisa. Um “milionário”, um estatístico e um contador de uma grande empresa iriam se comportar de maneiras completamente diferentes.
Há mais um aspecto ligado à nossa percepção de tempo e espaço. Dentro de nossa realidade essas áreas são nitidamente delimitadas [como a superfície de um tabuleiro de damas] ou são uma única “peça” de roupa bem acabada? Percebemos e reagimos ao tempo como se ele fosse composto de períodos claramente delimitados, ou como a água corrente de um rio cujas partes não podem ser separadas? O espaço é uma série de círculos concêntricos à nossa volta[minha família, meus amigos, minha cidade, meu país] que nos leva a reagir de maneira diferente a fatos que ocorrem entre esse círculos? Ou será que percebemos e reagimos ao nosso espaço como se dentro dele não houvesse limitações e as coisas e pessoas estivessem inextricavelmente interligadas ao ponto de, como afirmou o físico P.C.Bridgeman, “qualquer movimento local agita todo o universo?”. Como veremos na discussão sobre as diferentes imagens do mundo, esse é um importante aspecto da realidade sujeito à nossa decisão de transformá-lo.
Escrevi [...] sobre a questão levantada por Voltaire a respeito do índio que visitou os tribunais da Inquisição e não entendeu as ações daquelas pessoas. Obviamente, o índio e os espanhóis organizavam a realidade de maneiras diferentes, por isso percebiam e reagiam às imagens da realidade de forma bastante diferente. Isso é algo que nós, seres humanos, podemos fazer: organizar a realidade de diferentes maneiras e, deste modo, modificá-la. È bastante improvável que os animais tenham essa capacidade na mesma proporção. O animal parece ser bem limitado em suas escolhas.
É verdade que os animais também utilizam várias descrições da realidade. Um forte impulso-proteção, forme, sexo - dominando o animal provocará a reestruturação de seu universo e dará diferentes significados aos objetos. Um crustáceo perceberá e reagirá a uma anêmona, seja como alimento, abrigo ou armadilha, dependendo do impulso mais forte no momento [4]. Não há comunicação entre as diferentes organizações de realidade:”elas estão separadas como as diferentes cenas em um palco giratório”.[5].
Nesse ponto, a diferença ente seres humanos e animais não é apenas o maior número de opções, mas o fato de que os primeiros podem exercitar a prerrogativa humana de escolher a organização da realidade mais eficaz para atingir suas metas. O animal muda automaticamente de acordo com o impulso. Seres humanos podem fazer de outro modo.
Começa a se delinear aqui uma definição de ‘ser humano’. Ele é um organizador da realidade e tem grande variedade de opções. Quanto mais usa suas opções, mais humano e menos animal ele é. Defino aqui o ser humano a partir do modelo da ciência moderna, não pelo que ele é em si – no caso, uma pessoa -, mas pelo que faz. A ciência do Renascimento definia as coisa primeiro em termos de estrutura [quais são seus componentes?]; hoje, a ciência as define primeiro em termos de processo [o que faz?]. Diante da grande variedade de opções, talvez possamos definir o ser humano como alguém que tem e exerce a escolha de alternativas, e quanto mais ele as utilizar, mais estará exercitando a função especificamente humana.
O inverso dessa definição de ser humano também é verdadeiro. Quanto menos uma pessoa exercitar suas opções, menos consciência terá das diferentes e válidas possibilidades de se organizar a realidade, de perceber e reagir a ela, e menos utilizará seu potencial especificamente humano. Essa poderá ser brilhante e capaz de lidar com organização específica da realidade que considera única e “real”, mas estará limitada a responder a qualquer outra coisa que aconteça de acordo com sua forma única de ver o mundo; portanto, estará limitada e terá diminuído seu livre-arbítrio.
Este conceito nos leva a outro: nenhuma visão de mundo funciona completamente. Não se trata de uma mapa da realidade, mas o mapa de uma forma de organizar a realidade. Fundamenta-se na crença em certas coisas básicas [a matemática chama-os de axiomas, que jamais podem ser provados] e na exclusão de outras não pertencentes ao sistema, portanto, “irreais”.[6]. Em função disso, todos os sistemas metafísicos, todas as visões de mundo “falham”; funcionam bem para alguns propósitos e mal para outros. Nenhuma dessas visões encerra todas as necessidades humanas. Aquelas por exemplo, que lidam eficazmente com a questão do “como“, lidam com menos eficácia[ou nenhuma] com a questão do “por que” e vice-versa. As que satisfazem nossas necessidades de prever e controlar a realidade não satisfazem nossa necessidade de compreensão. O inverso também é verdadeiro.
Aparentemente, esse é um dos motivos pelo qual os seres humanos tem se mostrado ineficientes com seus problemas da vida. Estamos sempre desequilibrados em alguma área. [É provável que haja exceções, mas certamente são raras]. Não há registro algum na historia humana d que em algum momento tenhamos conseguido usar todo o nosso potencial de prazer, alegria, produtividade, amor e bondade. É evidente que temos um grande potencial em todas essas áreas, porque já o experimentamos e vimos outros fazê-lo em vários momentos da vida. Reconhecemos também o respeito que sentimos por aqueles que utilizam seu potencial intensamente em uma determinada área e respeito ainda maior pelos que o fazem em mais de uma.
É como se nosso comportamento limitado em relação a nós mesmos, em relação aos outros e ao planeta, se devesse, em parte, ao fato de vivermos a realidade do universo de uma forma que é incompleta pela natureza. Estamos atrelados a essa realidade descoberta-inventada porque ela é um pressuposto de toda visão de mundo: parte do principio de que a imagem da verdade é única e é impossível ser “realista”, aceitar ou mesmo levar a sério qualquer outra verdade. Forçados a viver num universo que preenche apenas parte de nossas necessidades humanas, debatemo-nos em agonia atacando primeiro a nós mesmos, depois a nosso vizinho, e prestando pouca atenção à natureza universal que nos mantém vivos.
A saída, se esse conceito for válido, seria aumentar o número de visões de mundo ao qual podemos reagir-perceber, de modo a satisfazer todas as necessidades humanas. Dessa forma, poderíamos escolher o conceito de realidade que mais se ajustasse às necessidades predominantes do momento. Evidentemente, não podemos fazê-lo até termos a clareza de que nenhum dos sistemas válidos de organização da realidade está mais próximo da “verdade” que outro;que cada um representa uma forma diferente de perceber e reagir ao que existe.
Uma nova definição de liberdade começa a aparecer em nossa busca. Parece-me ser a capacidade de procurar novas formas de relacionamento entre nosso “ser” e o “mundo exterior”. Na medida em que pudermos provocar novas formas de conceber-descrever a realidade, seremos livres; se não conseguirmos efetuar esta busca, não seremos livres, mas estaremos fadados a reagir à realidade da maneira que nossa cultura nos permite. Uma vez que essa é a única realidade concebível, devemos responder a ela adequadamente. E nesse conjunto de respostas “apropriadas” não somos livres. Entretanto, se tivermos outras ferramentas, outras formas de criar a realidade, outros jeitos de organizar e relacionar o ‘self’ com o ‘mundo exterior’, seremos livres para escolher entre diferentes formas cada uma delas com um diferente conjunto de respostas apropriadas e, portanto, seremos mais livres.
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Notas
[1]O presente artigo é um excerto do capitulo 3 de Realidades Alternativas, de Lawrence LeShan, publicado no Brasil pela Summus Editorial. Tradução:Edith Elek e Vera Palma.
[2]O exemplo é de Gestalt Psychology, de Kohler, W. Nova Yor, Horace Liveright, 1929, p.72
[3] Este item é uma paráfrase de The Grammar of Science, de Karl Pearson. Nova York, Medidian Books, 1957.
[4]Uma análise cuidadosa disso foi feita por Jacob von Vexkuçç, em seu “Um Passeio Pelos Mundos de Animais e Homens”, in C.H. chiller Instinctive Behaviour.C.H. Schiller, Nova York, International University Press, 1957.
[5] Werner, H. The Comparative Psychology of Mental Development. Nova York, International University, 1973, p.339.
[6]”... já que toda prova se baseia em pressupostos, é inútil que a filosofia pretenda provar todas as suas proposições materiais...Não podemos explicar a experiência nem qualquer outra coisa sem presumir algo...” Cohen, M.R. Studies in Philosophy and Science. Nova Yorkk, Harper & Row, 1949, p.10.
Um dos grandes avanços na matemática ocorreu quando o matemático Kurt Godel mostrou que todos os sistemas matemáticos devem se basear numa série de pressupostos impossíveis de serem provados – os “axiomas”.
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[Por Lawrence LeShan]