Hoje só subsistem três sistema de ética, três concepções do caráter ideal e da vida moral. Uma é a de Buda e Jesus, que dá preponderância as virtudes femininas; que considera todos os homens igualmente preciosos; que resiste ao mal contrapondo-lhe o bem; que identifica virtude com amor e se inclina, em política, a uma ilimitada democracia. Outra é a ética de Machiavel e Nietzsche, que dá preponderância as virtudes masculinas, que aceita a desigualdade dos homens; que se deleita nos riscos do combate, da conquista e do mando; que identifica virtude com poder e exalta a aristocracia hereditária. Terceira é a de Sócrates, Platão e Aristóteles, que nega a universal aplicabilidade das virtudes masculinas ou femininas; que considera que somente os espíritos maduros e bem informados podem decidir, de acordo com as circunstancias, quando deve imperar amor e quando deve imperar o poder; que identifica virtude com inteligência e advoga no governo uma mistura de democracia e aristocracia. Spinoza reconcilia estas filosofias aparentemente hostis numa harmoniosa unidade, produzindo um sistema de moral que é o máximo primor do pensamento moderno.
Começa fazendo da felicidade o objetivo da conduta; e muito simplesmente define felicidade como presença do prazer e ausência da dor. Mas prazer e dor são relativos, não absolutos; e não são estados e sim transições. “Prazer é a transição humana de um estado de menor para um de maior perfeição”. “Alegria é a sensação de que o nosso poder cresce”, disse Nietzsche. “Dor é a transição humana de um estado de perfeição maior para um menor. Digo transição porque o prazer não é a perfeição em si; se um homem nascesse com a perfeição não sentiria a emoção do prazer. E o inverso disto ainda torna a idéia mais clara”. Todas as paixões são passagens; todas as emoções são movimentos de ou para completação e poder.
“Por emoção [affectus] compreendo as modificações do corpo por meio das quais o poder da ação no corpo é aumentado ou diminuído, ajudado ou restringido; e também as idéias destas modificações” [esta teoria da emoção é habitualmente atribuída a James e Lange; mas se acha aqui formulada com mais precisão do que nesses psicologistas e concorda notavelmente com os estudos do professor Cannon]. Uma paixão ou uma emoção não é boa ou má em si, mas unicamente quando aumenta ou diminui nosso poder. “Por virtude e poder significo a mesma coisa”; virtude é poder de agir, uma forma de capacidade; “mais um homem pode preservar seu ser e procurar o que é bom para si, maior sua virtude”. Spinoza não pede ao homem o sacrifício pelo bem de outrem; é mais leniente que a natureza. Pensa que o egoísmo é o corolário do supremo instinto de conservação; “ninguém jamais rejeitou o que julga bom, exceto se tem esperança de com a rejeição alcançar um bem maior”. Isto parece a Spinoza perfeitamente razoável. “cada homem precisa amar-se a si mesmo e ser útil a si mesmo e desejar tudo quanto o leve a um maior estado de perfeição; e assim preservará seu ser”. O filosofo constrói desse modo a sua ética, não sobre o altruísmo, ou bondade natural do homem, como os reformadores utópicos, nem sobre o egoísmo cru e a natural perversidade do homem, como querem os cínicos – mas no que considera um inevitável e justificável egoísmo. Um sistema de moral que ensina o homem a ser fraco é sem valor; “o fundamento da virtude não é mais que o esforço para manter o individuo; e a felicidade do homem consiste em o conseguir”.
Como Nietzsche, Spinoza não dá valor a humildade; é, ou hipocrisia com segundas intenções, ou timidez do escravo; implica ausência de poder – e para Spinoza todas as virtudes são formas de habilidade e poder. Assim o remorso é mais defeito que virtude; “quem se arrepende é duas vezes infeliz e duas vezes fraco”. Mas Spinoza não perde tanto tempo como Nietzsche em investir contra a humildade; porque “a humildade é muito rara”, e, como disse Cícero, ainda os filósofos que escrevem livros em louvor dela botam seus nomes na pagina do frontispício. “Quem despreza a si próprio denota orgulho”, diz Spinoza, pondo em sentença uma teoria dileta dos psicanalistas, para os quais cada virtude consciente é um esforço para ocultar ou corrigir um vicio secreto. E conquanto Spinoza se desgoste da humildade, admira a modéstia e objeta contra o orgulho que não se realiza em feitos. O orgulho faz que um homem seja um incomodo para os outros: “o orgulho menciona unicamente seus grandes feitos e cala os alheios”; deleita-se com a presença de inferiores que se assombram com suas perfeições e façanhas, e torna-se, afinal, a vitima dos que mais o louvaram; porque “as maiores vitimas da lisonja são os orgulhosos”.
Até aqui o nosso filosofo nos oferece uma ética um tanto espartana; em outras passagens desce a tons mais suaves. Spinoza maravilha-se da soma de inveja, recriminação, mutua detração e ódio que agira e separa os homens; e não vê remédio para os males sociais senão na eliminação destas emoções. Crê mais simples mostrar que o ódio, talvez por aproximar-se muito de amor, possa ser mais facilmente vencido pelo amor do que pela reciprocidade. Porque o ódio é alimentado pelo sentimento de que é retribuído; daí “quem vem a saber-se amado da criatura que odeia torna-se presa de emoções em conflito, e como o amor tende a criar amor, o ódio desintegra-se e perde a força. Odiar é admitir a nossa inferioridade e o nosso medo; não odiamos ao inimigo que podemos confiadamente dominar. “Os que desejam vingar-se reciprocando ódio, viverão miseravelmente. Mas o que procura contrabater o ódio com o amor, luta com prazer e confiança; resiste igualmente a um ou a muitos homens e escassamente necessita a ajuda da sorte. Os que ele conquista cedem com alegria”. “Os espíritos são conquistados não com armas mas com grandeza d’alma”. Em tais passagens Spinoza parece banhado da luz que brilhou na Galileia.
Mas a essência de sua ética é antes grega do que cristã. “O esforço para compreender é a primeira e única base da virtude” – nada pode ser mais profundamente socrático. Porque “somos joguetes de causas extremas e, como vagas movidas por ventos contrários, ondeamos inconscientes dos nossos destinos”. Julgamo-nos mais nós mesmos quando estamos mais apaixonados, e portanto mais passivos, mais colhidos na torrente de sentimentos e impulsos ancestrais e propelidos a reações precipitadas que só atendem a parte da situação; o apaixonamento encurta a vista . Paixão é uma “idéia inadequada”; pensamento é resposta [response] retardada até que cada ângulo vital do problema tenha provocado uma reação correlativa, herdada ou adquirida; só então a idéia é adequada e a resposta completa [*Em outros termos: ação reflexa é a resposta a um estimulo local; ação instintiva, a resposta parcial a parte de uma situação; razão é a resposta total a toda a situação].Os instintos são magnificentes como força impulsora, mas perigosos como guias; porque, dado o individualismo dos instintos, cada qual procura a sua própria expansão sem atender ao todo da personalidade. Que desastre tem sido para os homens a cupidez, por exemplo, a belicosidade, a luxuria e outros instintos que tornam as criaturas meros apêndices do instinto que as empolga. “As emoções que diariamente nos tomam sempre dizem respeito a alguma parte do corpo mais afetada que as outras, e por isso as emoções são em regra excessivas, pois conservam o espírito na contemplação de um só objeto e impedem-no de pensar em outros”. “O desejo procedente de prazer ou dor que só dizem respeito a uma ou a certas partes do corpo, não se mostra vantajoso para a totalidade do homem”. Para nos realizar temos de nos completar.
Isto não passa da velha distinção filosófica entre razão e paixão; mas Spinoza vai além de Sócrates e dos estóicos. Ele sabe que a paixão sem razão é cega, e a razão sem paixão é morta. “Uma emoção só pode ser detida ou removida por outra emoção, contraria e mais forte”. Em vez de inutilmente opor a razão a paixão – caso em que o elemento de maiores raízes ancestrais sempre vence – Spinoza opõe as paixões desordenadas as paixões coordenadas pela razão e perfeitamente enfocadas dentro da perspectiva total da situação. Ao pensamento não deve faltar o calor do desejo, nem ao desejo a luz do pensamento. “Uma paixão cessa de o ser logo que de maneira clara a apreendamos, e o espírito é sujeito a paixões na proporção do numero de idéias adequadas que concebe”. “Todos os apetites são paixões unicamente quando emergem de idéias inadequadas; e são virtudes quando gerados de idéias adequadas” [*Note-se a semelhança destas duas citações com a teoria da psicanálise, de que os desejos são “complexos” unicamente enquanto não nos damos conta das suas causas exatas, e que o primeiro passo no tratamento é fazer virem à consciência essas causas para transformá-las em idéias adequadas]; toda conduta inteligente, isto é, que toma em conta a situação total, é uma ação virtuosa – e no fim a virtude confunde-se com a inteligência.
A ética de Spinoza deflue de sua metafísica: assim como naquela a razão jaz na percepção da lei no caótico fluxo das coisas, esta jaz no estabelecimento da lei no caótico fluxo dos desejos; lá jaz no ver, aqui no agir, sub specie eternitatis, fazendo a percepção e a ação se ajustarem a perspectiva eterna do todo. O pensamento nos ajuda nesta visão mais larga porque é auxiliado pela imaginação, a qual nos preluz os efeitos distantes das ações atuais. O grande obstáculo á conduta inteligente é a vivacidade muito maior das sensações do momento comparadas as sensações projetadas na memória [imaginação]. “Quando o espírito concebe uma coisa de acordo com os ditados da razão será ele afetado da mesma maneira, seja a idéia presente, passada ou futura. Por meio da imaginação e da razão enfocamos a experiência; tornamo-nos criadores do nosso futuro e libertamo-nos do passado”.
Desse modo realizamos a única liberdade possível ao homem. A passividade as paixões é gargalheira; a ação da razão é liberdade. Liberdade, não de leis causais, ou processos, mas de paixões parciais ou impulsos; liberdade, não da paixão, mas de paixões incoordenadas e incompletas. Só somos livres quando sabemos [*Dewey; “Um medico ou engenheiro é livre em seu pensamento e ação no grau em que sabe o que está fazendo. Possivelmente encontramos aqui a chave de todas as liberdades”, - Human Nature and Conduct].
Ser super-homem é ser livre, não das restrições da justiça e das amenidades sociais, mas do individualismo dos instintos. Com esta completação e integridade surge a equanimidade do homem prudente; não a aristocratica complacência do herói de Aristóteles e muito menos a superciliosa superioridade do ideal de Nietzsche, mas paz de espírito e equilíbrio. “Homens bons pela razão, isto é, homens que guiados pela razão procuram o que lhes é útil, nada desejam para si que também não possam desejar para o resto da humanidade”. Ser grande não é colocar-se acima da humanidade a dirigir os outros; mas ficar fora das parcialidades e futilidades do desejo mal informado e dirigir-se a si próprio.
É esta liberdade mais nobre que a que os homens chamam livre arbítrio; porque a vontade nem é livre nem talvez seja ‘vontade’. E ninguem suponha que porque não é ‘livre’ deixa de ser moralmente responsável pela sua conduta e pela estrutura de sua vida. Exatamente porque as ações dos homens são determinadas pelas suas memórias, a sociedade precisa, para proteger-se, formar seus cidadãos dentro do quadro de suas esperanças e receios. Toda educação pressupõe determinismo e derrama no cérebro aberto da juventude um estoque de proibições destinadas a determinar-lhe a conduta. “O mal que decorre de maus atos não se torna menos de recear por vir da necessidade; livres ou não as nossas ações, nossos motivos continuam sendo esperança e receio. É falsa, pois a asserção de que eu não deixo espaço para preceitos e normas de conduta”. Ao contrario, o determinismo trabalha para uma melhor vida moral; ensina-nos a não desprezar, ridicularizar ou nos encolerizar contra quem quer que seja; os homens ‘não são culpados’; e embora punamos os perversos, agimos sem ódio, porque eles não sabem o que fazem.
Acima de tudo o determinismo nos habilita a esperar e suportar com o mesmo espírito as duas faces da sorte; sabemos que tudo decorre dos altos decretos de Deus. Talvez ainda nos ensine ele o “amor intelectual de Deus”, por meio do qual aceitemos alegremente as leis naturais e nos desenvolvamos dentro de suas limitações. Quem vê tudo como determinado não pode queixar-se, embora possa resistir; porque “percebe as coisas sob uma certa espécie de eternidade”, e encontra justificativas na seqüência eterna das coisas. Com o espírito assim conformado esse homem se ergue dos desordenados prazeres da paixão a alta serenidade da contemplação, vendo todas as coisas como partes de uma ordem e de um desenvolvimento eternos; aprende a sorrir diante do inevitável e, “realize-se agora ou de agora a mil anos, permanecerá contente”. Aprenderá a velha lição de que Deus não é uma personalidade caprichosa a absorver-se nos negócios particulares dos devotos e sim o sustentador invariável da ordem do universo. Platão o exprime belamente na Republica. “Aquele cujo espírito está fixo na ordem eterna não tem tempo para atentar nas pequeninas agitações dos homens ou encher-se de ciúme e inimizade na luta contra eles; seus olhos estão sempre dirigidos para os princípios fixos e imutáveis, princípios que ele não vê em choque uns contra os outros mas em movimento de perfeita harmonia”. “O que é de necessidade, diz Nietzsche, não me ofende. Amor fati – amor do fado – é o coração da minha natureza” [*Ecce Homo. Foi antes uma esperança de Nietzsche do que uma realização].
Ou Kears:
- To bear all naked truths,
And to envisage circunstance, all calm:
That is the top of sovereignty. [Hyperion].
Tal filosofia nos ensina a dizer SIM a vida e também a morte – “Um homem livre não pensa na morte; sua sabedoria é uma meditação sobre a vida, não sobre a morte” [*Ética,IV]. Com a amplidão das perspectivas ela nos acalma os agitados egos; reconcilia-nos com as limitações dentro das quais nossos propósitos tem que ser circunscritos. Pode levar a resignação ou a passividade oriental; mas é a base indispensável de toda sabedoria e força.