21 de mar. de 2010

O Escaravelho Sagrado


As crianças sujas mas tão queridas, mais freqüentemente meninos, cujo fascínio pelas atividades de pequenos seres vivos acaba resultando em joelhos e cotovelos sujos, eram sem dúvida tão numerosos no Egito Antigo como em toda parte do mundo atual. Aquelas crianças egípcias deviam passar muitas horas felizes observando o ‘Scarabeus Sacer’, o bojudo besouro cor de antracito cuja casca brilha sob luz intensa. Deviam ver uma cena comum mesmo hoje em dia nas margens do Nilo: os bezouros quebrando e moldando rapidamente porções de esterco animal e depois revirando-as para cá e para lá e empurrando-as sob seu corpo. Assim acaba sendo feita uma bola, às vezes muito maior do que o próprio corpo do besouro. Uma vez a bola completa, o besouro a separa do monte de esterco e sai rolando, empurrando para trás com seus dois pares de pernas posteriores, enquanto sua cabeça quase se arraste pelo chão.

Todo esse trabalho de empurrar e rolar é feito com pressa frenética, para que o material da bola não seque demais e mantenha a forma esférica; do contrário, essa futura refeição acaba sendo descoberta por um possível ladrão. Se um outro besouro se aproxima nesse momento, o dono da bola de esterco sobe no seu tesouro, agarrando-se a ele com todas as suas seis patas. O outro besouro verifica com seu olfato se está se defrontando com um escaravelho macho ou fêmea. Se os besouro são do mesmo sexo, o intruso é prontamente afastado; se são de sexos opostos, o intruso torna co-proprietário da bola de esterco. Se o dono original é macho, permite que a fêmea o siga, mas se é uma fêmea, passa ao macho a tarefa de agir como força motriz, enquanto ela pode até passear no topo da bola durante uma parte do caminho. Num lugar seguro é cavado um buraco, a fim de que essa provisão possa ser comida abaixo do nível do solo, em relativa privacidade e segurança.

No Egito Antigo, quando um menino corria para os pais a fim de compartilhar excitado sua observação da atividade desse inseto, aprendia que o escaravelho era um símbolo do Sol. Mas por que haveria um inseto de aspecto tão insignificante ser transformando num símbolo tão importante?

SÍMBOLO DO SOL
Os egípcios antigos nos explicariam que, se olharmos atentamente para um escaravelho, veremos o ouro do Sol cintilando dele a despeito de sua cor negra, e perceberemos que sua forma arredondada é parecida com a do disco solar. ‘Kheper’ [“escaravelho” em egípcio antigo] é a forma que o deus Khepera [ou Khepri]assume quando empurra o disco solar acima do horizonte. Além disso, projetando-se da cabeça do escaravelho há uma espécie de placa com uma borda curva serrilhada. Diz-se que os raios que vemos logo antes de o Sol se erguer são essas projeções da cabeça do escaravelho, as quais nos indicam que o dia está prestes a começar. No fim do dia, Khepera rola o Sol novamente por baixo da Terra. Assim, o deus é um aspecto de Ra, o deus-Sol, personificando o jovem Sol do alvorecer.

Os escaravelhos ficavam quietos por certo período todo ano, mas, depois que as águas da enchente do Nilo retrocediam, nosso curioso menino podia ver seus pequenos amigos insetos aparecerem em grande número, saindo das margens lamacentas do Nilo. “Eles tinham ido embora”, dizia ele a seus pais, “mas, já voltaram!”. Aprendiam então que o deus Khepera, que assume a forma do besouro, é o deus que cria a si mesmo. Assim, o simbolismo do besouro, que surge da terra renovado, é um sinal de imortalidade e renascimento. Aquele menino aprendia que o grande deus Khepera era o deus da criação que, após ter dado forma a si mesmo, criou o mundo e o ser humano.

CRENÇAS MÁGICAS
Em consonância com essa idéia, o erudito egípcio E.A. Wallis Budge traduziu do papiro de Ñesi Khensu:”...o senhor das riquezas, o poder, Khepera, que cria toda a evolução de sua existência, além do qual no começo nenhum outro existia...e que, tendo feito a si mesmo, deu vida a todos os homens”.

As explicações simples adequadas para crianças e para a massa iletrada, bem como as estórias e crenças mágicas que surgiam delas, eram o tipo de informação que tendia a chamar a atenção dos tão inquiridores gregos. Assim, aprendemos de fontes gregas, escritas séculos depois que o Egito perdeu sua independência e se tornou uma província romana, que se acreditava que os escaravelhos eram todos machos. Nos ‘Hieróglifos de Horapollo’ lê-se que o besouro macho enterra uma bola de esterco de vaca durante os vinte e oito dias do ciclo lunar e, no dia exato da conjunção entre o Sol e a Lua, quebra essa bola dentro d’água e aparecem pequenos besouro. Plutarco, que escreveu no mesmo período, diz em ‘Isis e Osíris’:”os egípcios veneravam também o...besouro, porque, observavam...certas vagas semelhanças do poder dos deuses, como imagens do Sol em gotas de água...Essa espécie de besouro não tem fêmeas, mas todos os machos injetam seu esperma numa bolota de material...” Plutarco diz também que os militares egípcios mandavam gravar seus selos ou sinetes em forma de besouro, porque esses insetos eram somente machos.

O CICLO VITAL
Muitos autores modernos, comentando a relação entre o deus e seu símbolo, afirmam que o besouro rola o seu ovo dentro da nutritiva bola de esterco. O verdadeiro começo do ciclo vital do besouro é mais complexo do que isso. O escaravelho fêmea forma uma bola de material nutritivo para seus filhos. Rola esse material redondo para um local escolhido. Aí cava um túnel para dentro da terra e faz uma câmara do tamanho de um punho, onde coloca a bola de esterco. Depois raspa o suficiente para formar em cima de uma pequena câmara, empurrando o material para o alto numa espécie de parapeito circular, fazendo assim com que a bola ganhe a forma de uma pêra, com a abertura superior diminuindo à medida que a parede vai subindo.

O escaravelho fêmea põe então um ovo e o faz aderir à borda interna da parede com uma substancia pegajosa que ela exsuda. A abertura é frouxamente fechada com fragmentos do seu material de construção e talvez alguns grãos de areia a fim de criar um meio de ventilação para a larva que sairá do ovo. O besouro se afasta para repetir o processo para seus outros ovos. Quando a larva aparece, sai comendo a bola para baixo, deixando-a oca. E quando a lagarta se torna suficientemente grande para assumir a forma de pupa, a crosta externa da bola está muito dura. A pupa fica quieta, com as costas para baixo, até que se completa a transformação em besouro adulto. O jovem inseto, vigorosamente ativo, quebra então a crosta endurecida da câmara de nascimento e sai para a superfície.

Para os egípcios, o escaravelho era o ‘Rolador’ e Khepera era chamado de ‘aquele que rola o Sol pelos Céus’. Era também ‘Pai dos deuses’ e criador de todas as coisas do céu e da terra. Portanto, o hieróglifo do escaravelho significa ‘tornar-se’ ou ‘vir a existir’ ou ‘criar’. Representa também o deus Khepera. Para o autor dos ‘Hieróglifos de Horapollo’, as conotações e a simbologia foram aceitas como significado literal do signo. Para ele o hieróglifo do escaravelho significava: ‘unigênito, nascimento, pai, mundo, ou homem’. E dá uma explicação complexa da simbologia envolvida nisso, e embora sua história natural seja mais fantástica do que exata, como era comum entre os gregos e romanos, suas conjeturas descrevem realmente os aspectos cosmológicos das idéias egípcias incorporadas no deus que assume a forma de escaravelho, pois ele é criador de si mesmo e criador [pai] do mundo e do homem [nascimento].

Escaravelhos são o tipo de artesanato mais numeroso que os arqueólogos encontraram nas areias do Egito, numa indicação de que não eram apenas os militares que usavam o escaravelho em seus selos e sinetes. Sem dúvida todos os níveis da sociedade usavam o escaravelho, visto que ele era o principal símbolo de ressurreição, um conceito básico naquela cultura. Eram feitos escaravelhos de madeira, argila, ametista, cornalina, além do material mais comum, esteatita, uma espécie de pedra-sabão. Eles serviam como jóias, amuletos e selos. Hieróglifos eram comumente entalhados nas costas dos escaravelhos, referindo-se a pessoas, lugares ou divindades, ou transmitindo mensagens de bom augúrio ou votos amistosos.

TUTMÉS III
O próprio escaravelho podia fazer parte de uma inscrição contida num cartucho. Por exemplo, no selo do Faraó Pepi I constam as palavras, “o filho do escaravelho que nasce em Helpet sob o cabelo de luasaas, o Setentrional e o filho da sobrancelha de Seb”. E é de se notar o cartucho de Tutmés III, fundador das Escolas de Mistérios Egípcias, antecessoras tradicionais das ‘Fraternidades Místico/Esotéricas’. Os hieróglifos significam ‘men khepera’, o ‘filho do Sol’, e assim as fraternidades perpetuam esse significado e antigo símbolo do renascimento.

O escaravelho era um símbolo muito difundido na antiguidade. Escaravelhos foram encontrados na área da Palestina e eram itens de troca entre os romanos e os etruscos. Foram feitas cópias contendo combinações hieroglíficas sem sentido na base. Essas imitações das peças egípcias eram provavelmente usadas como amuletos.

No Egito, amuletos de escaravelhos eram colocados nos envoltórios de múmias e uma grande pedra em forma de escaravelho era usada para substituir o coração retirado do corpo durante o embalsamamento. Esse besouro era geralmente verde e representava uma outra espécie afim do ‘Scarabeus Sacer’. Nele gravava-se usualmente uma citação do ‘Livro dos Mortos’, advertindo o coração para não revelar aos Juízes dos Mortos nada prejudicial à pessoa falecida. Mas, durante o reinado de Akhenaton, o escaravelho coração levava uma prece simples em nome de Aton, por uma vida longa, graças e alimento. John Ward sugere em ‘O Besouro Sagrado’ que um versículo de Ezequiel, ‘eu retirarei o coração de pedra da carne deles e lhes darei um coração de carne’, refere-se a essa prática de embalsamamento.

Pode-se perceber, portanto, que Khepera e o escaravelho estavam sempre presentes na vida dos egípcios antigos. É significativo que, na filosofia e na cosmologia dos egípcios, a mais abstrata idéia proposta para descrever e explicar em termos simbólicos e religiosos os primórdios do mundo e do homem ganhe clareza e dimensão mediante o ciclo vital de um humilde inseto: ‘o escaravelho’.
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[Texto de Clara Elderkin Campbell]