17 de jun. de 2011

Nietzsche_ e Wagner

Cedo, em 1872, Nietzsche publicou o seu primeiro e único livro completo – O Nascimento da Tragédia.

Nunca havia um filosofo falado tanto com tanto lirismo. Dizia dos dois deuses que a arte grega adorara: a principio, Dionisus [Baco], o deus do vinho e da orgia, da vida ascendente, da ação eufórica, da emoção extática e da inspiração, do instinto e da aventura, o deus do canto e da musica, da dança e do drama; depois vinha Apolo, o deus da paz, do lazer, do repouso, da emoção estética e do contemplativismo intelectual, da ordem lógica e da calma filosófica, o deus da pintura, da escultura e da poesia épica. A mais nobre arte grega era uma fusão dos dois ideais – a inquieta força masculina de Dionisus e a calma beleza feminina de Apolo. No drama Dionisus inspirava o côro e Apolo o dialogo; o côro evoluía  diretamente da procissão dos devotos de Dionisus, vestidos de satiros; o dialogi era um comentário, um apêndice a experiência emocional.

O mais profundo traço do drama grego consistia na vitória de Dionisus sobre o pessimismo por meio da arte. Os gregos não eram o povo alegre e otimista que vemos nas modernas rapsódias a seu respeito; conheciam de perto os espinhos da vida e sua trágica brevidade. Quando Midas pergunta a Sileno qual o melhor fado para um homem, a resposta é: ”Miserável raça de um dia, filhos do acidente e da aflição, por que me forçais a dizer o que bom fora não fosse dito? O melhor dos fados é inacessível -  não nascer, não ser. Depois, o melhor fado é morrer cedo”. Evidentemente esses homens tinham pouco que aprender com Schopenhauer ou com os hindus. Mas os gregos escondiam as sombras de sua desilusão com fulgor da arte; de seus próprios sofrimentos faziam a matéria do drama e achavam que é “unicamente como fenômeno estético”, ou como objeto de contemplação ou reconstrução artística, “que a existência do mundo se justifica”. “O sublime é a estilização artística do horrível” [*N.T.,50,183]. Pessimismo vale por sintoma de decadência; otimismo, por sinal de superficialidade; “otimismo trágico”, é estado da alma do homem forte que procura extensão de experiência ainda  a custa da desgraça, e se deleita de saber que a luta é a lei da vida. A tragédia em si é prova de que os gregos não eram pessimistas. “Os dias em que este estado da alma originou o drama esquiliano e a filosofia pré-socrática foram “os tremendos dias da Grécia” [*Correspondência Wagner-Nietzsche].

Sócrates – “tipo do homem teórico”, era um signo do afrouxamento da fibra do caráter grego; a velha rudeza maratoniana, rudeza de corpo e alma, foi sendo mais e mais sacrificada a uma dúbia cultura que envolvia progressiva degeneração da força física e mental.

A filosofia critica substituiu a filosofia poética dos pré-socráticos; a ciência substitui a arte; o intelecto substitui o instinto; a dialética substitui os jogos. Sob a influencia de Sócrates o Platão atleta torna-se um esteta; o Platão dramaturgo torna-se um lógico, um inimigo da paixão, um exilador dos poetas, um “cristão pré-cristão”, um epistemologista. No templo de Apolo, em Delfos, estavam escritas aquelas palavras de desapaixonada sabedoria – gnothe seauton e medem agan [*”Conhece-te a ti próprio” e “Nada em excesso”], que deram a Sócrates e Platão a ilusão de que a inteligência é a única virtude, e a Aristóteles a enervante doutrina da áurea mediocridade. Em sua mocidade um povo produz mitologia e poesia; na decadência, filosofia e lógica. Em sua mocidade a Grécia produziu Homero e Esquilo; em sua decadência deu-nos Euripedes – o lógico transfeito em dramaturgo, o racionalista destruidor de mitos e símbolos, o sentimentalista destruidor do otimismo da era máscula, o amigo de Sócrates substituidor do coro dionisíaco por uma via-lactea de dialéticos e oradores.

Não admira que o oráculo de Delfos classificasse Sócrates como o mais sábio dos gregos e Euripedes como o logo abaixo; e não admira que o instinto infalível de Aristófanes englobasse Sócrates e Euripedes no mesmo ódio, vendo neles os sintomas de uma degeneração de cultura. “É verdade que ambos voltaram atrás; a ultima peça de Euripedes – As Bacantes – representava a sua rendição a Dionisus e o prelúdio do seu suicídio; Sócrates na prisão utilizou-se da musica de Dionisus para aliviar a consciência. “Será ininteligível – devia ele perguntar-se a si mesmo – o que não me é inteligível? Haverá uma zona de sabedoria da qual o lógico esteja banido? Será a arte um correlativo necessário a suplementar da ciência? Mas era tarde; o trabalho do lógico e do racionalista não podia ser desfeito; o drama grego e o caráter grego decaiam. A coisa surpreendente acontecera: “Quando o poeta e o filosofo voltaram atrás, suas tendências já estavam vitoriosas”. Com eles fecha-se a idade dos heróis – o ciclo da arte de Dionisus.

Mas quem sabe se a idade de Dionisus não vai voltar? Não destruiu Kant de uma vez para sempre a razão teórica e o homem teórico? E não nos ensinou Schopenhauer, de novo, a profundidade do instinto e a tragédia do pensamento? E não é Wagner um novo Esquilo, restaurador de mitos e símbolos, unificador da musica e do drama no êxtase dionisíaco? “Da raiz dionisíaca do espírito germânico uma força se ergue sem nada de comum com as primitivas condições da cultura socrática...nominalmente: musica alemã...em sua vasta órbita de Bach e Beethoven e de Beethoven a Wagner”. O espírito germânico por muito tempo refletiu passivamente a arte apolínea da Ítala e da França; que agora o povo alemão compreenda que seus próprios instintos são mais sadios que essas culturas decadentes; que faça uma Reforma na musica como a fez na religião -  derramando de novo na arte e na vida o selvatico vigor de Lutero. Quem sabe se das dores da guerra não brotará para o poço alemão uma nova pleidade de heróis e se do espírito da musica não renascerá a tragédia?

Em 1872 Nietzsche voltou a Basle, ainda fraco de corpo, mas com o espírito a arder de ambição e repugnado com a idéia de consumir-se a prelecionar numa catedra. “Tenho diante de mim trabalho para cinqüenta anos e estou a  marcar passo sob a canga” [*Em Halevy]. Já andava ele um tanto desiludido com a guerra: “O império está destruindo o espírito alemão”, escreveu. A vitória de 1871, derramara um áspero orgulho na alma germânica, e nada podia ser mais nocivo ao seu crescimento mental. Um impulso ímpio em Nietzsche tornava-o inquieto diante de todos os ídolos, e ele determinou atacar o orgulho alemão assaltando o mais respeitado de todos os ídolos – Davi Strauss. ”Entro na sociedade com um duelo; Stendall me dá este conselho”.

No Schopenhauer como Educador” voltava as bateria contra as universidades chauvinistas. “A experiência nos ensina que nada impede tanto o surto de grandes filósofos como o habito de chocar os pensamentos nas universidades oficiais...Nenhum estado ousaria patronizar homens como Platão e Schopenhauer...O estado os teme”. Depois renova o seu ataque no “Futuro das Nossas Instituições Educacionais”; e no “Uso e Abuso da História” ridiculariza a submersão do intelecto germânico nas minúcias da erudição antiquaria. Nestes ensaios já duas de suas futuras idéias encontravam expressão; que a moralidade, assim como a teologia, deve ser reconstruída com base na teoria da evolução, e que a função da vida é produzir “não o melhoramento da maioria, que, tomada individualmente, mostra os tipos de menor valor”, mas “a criação do gênio, o desenvolvimento e a elevação das personalidades superiores”.

O mais ardente destes ensaios é o intitulado “Richard Wagner em Bayreuth”. Nietzsche saudava-o como um Siegfried “que jamais conhecera o medo”, e como o fundador da única arte real, porque era a primeira a fundir todas em uma grandiosa síntese estética; e chamou a atenção do país para a alta significação do próximo festival de Wagner – “Bayreuth significa para nós o sacramento da manhã  no dia da batalha”. Era a voz de um jovem adorador, a voz de um espírito quase femininamente apurado que encontrava em Wagner algo da máscula decisão e coragem que entrariam mais tarde no seu conceito do Super-Homem. Mas o orador era também filosofo e percebeu em Wagner um certo egotismo ditatorial, ofensivo para uma alma aristocrática. Nietzsche não podia conformar-se com o ataque de Wagner à França em 1871 [Paris não havia sido leniente para como Tannhauser!], como também se chocava com o seu ciúme de Brahms.  O tema central deste ensaio, ainda não laudatório, não beneficiava o ídolo: “O mundo vem sendo muito orientalizado e os homens querem agora ser helenizados”. Mas Nietzsche já sabia que Wagner era meio sangue semita.

Depois, em 1876, entrou em cena Bayreuth, com as suas operas wagnerianas por noites e noites sucessivas – sem cortes – e com bandos de wagnerianas, e imperadores e príncipes e magnatas e ricos ociosos tomando o lugar dos devotos pobres. Súbito, lucilou no espírito de Nietzsche o quanto de Geyer havia em Wagner [*Nietzsche admitia Ludwig Geyer, um ator judeu, como o pai de Wagner], o quanto do Anel de Nibelungs corria por conta dos efeitos teatrais e o quanto dos melos ausente na musica havia passado para o drama. ‘Eu havia tido visões de um drama inundado de sinfonia, uma forma emergente do Lied. Mas o internacionalismo da opera arrastou Wagner para outra direção”. Nietzsche não podia segui-lo nessa direção; ele detestava o dramatico e o lirico. “Eu ficaria louco se permanecesse lá”, escreveu. “Espero com terror cada uma dessas longas noites de musica...Não as suporto mais”.

E fugiu sem uma palavra para Wagner e no meio do seu maior triunfo, quando todo o mundo se perdia em extase; fugiu “cansado e refarto de tudo que é feminismo e rapsódia indisciplinada naquele romantismo, naquela mentira idealística, naquele edulcoramento da consciência humana”. E depois, na afastada Sorrento, a quem encontraria? Ao próprio Wagner, descansando do seu triunfo e cheio da nova opera que estava compondo, Parsifal. Iria ser uma exaltação do cristianismo, da piedade, do amor etéreo, de um mundo redimido por um “puro louco” – o “o louco de Cristo”. Nietzsche afastou-se sem dizer uma palavra e nunca mais falou com Wagner. “É-me impossível reconhecer grandeza em quem não tenha candura e sinceridade para  consigo próprio. Do momento em que faço uma descoberta destas, as realizações do homem já nada valem absolutamente para mim”. Ele preferia Siegfried, o rebelde, a Parsifal, o santo, e não perdoava a Ricardo Wagner o ver no cristianismo um valor moral e uma beleza que sobre-excediam os seus defeitos teológicos. No caso Wagner atira-se contra o ídolo com furor.

*Wagner lisonjeia todos os instintos budisticos e niilisticos, e disfarça-os em musica; lisonjeia todas as espécies de cristianismo e todas as formas religiosas de decadência...Richard Wagner... um romântico desesperado e decrépito,desmaiou subitamente ao pé da Cruz. Não haverá nenhum alemão com os olhos para ver, com piedade na consciência para lamentar esse horrível espetáculo? Sou eu, então, o único a quem ele faz sofrer?... E no entanto eu era um dos mais corruptos wagnerianos...Bem, sou o filho deste século, assim como Wagner, - isto é, um decadente; mas tenho a consciência disso e defendo-me.

Nietzsche era mais “apolíneo” do que o supunham; um amante do sutil, e delicado, e refinado – não do selvatico vigor dionisíaco, nem da ternura do vinho, do canto e do amor. “Vosso irmão, com aquele ar de delicada finura, é um companheiro bem desagradável”, disse Wagner a Frau Forster-Nietzsche...”às vezes fica totalmente embaraçado com as minhas brincadeiras – e eu então as redobro” [*Ellis:Affirmations]. Havia muito de Platão em Nietzsche, no seu receio de que a arte dessorasse o homem da dureza; sendo por índole terno, supunha que o mundo inteiro fosse como ele – perigosamente perto de praticar o cristianismo.

Não tinha havido guerras bastantes para saciar este suave professor. E, no entanto, nas horas calmas, sabia que Wagner estava tão certo quanto ele, sabia que a suavidade de Parsifal era tão necessária como a força de Siegfried, e que de algum modo cósmico estas cruéis oposições se fundiam em saudável unidade criativa.

Nietzsche deleitava-se em pensar nessa “amizade estelar”, que ainda o atava, silenciosamente, ao homem que fora a mais valiosa e fecunda experiência da sua vida. E quando, nos momentos lúcidos da sua loucura final, viu um retrato do já falecido Wagner, murmurou com suavidade:”Amei-o muito”.