A expressão do título é um reducionismo, pois a História comporta mais de uma chaga. Porém, a tendência humana ou de parte significativa da Humanidade em não admitir o que lhe é diferente tem sido uma causa constante dos conflitos que ela viveu e, infelizmente, ainda vive.
Diferentemente do que o ideólogo da direita norte-americana Samuel P. Huntington propõe em seu execrável livro ‘O choque de civilizações[1]’, no qual divide o mundo em blocos de culturas imiscíveis, portanto fadadas ao confronto, a própria e velha História nos demonstra que houve mais interações e trocas entre os homens do que a recíproca exclusão. O maniqueísmo desse autor revela, antes de tudo, uma leitura bastante simplista e preconceituosa da realidade. Ao invés de propor e lançar luzes de entendimento e de tolerância, propõe e lança sementes da discórdia e do confronto.
É preferível ouvir outras vozes, como a de um israelense que nasceu e vive em meio a um mar de intolerância, AMÓS OZ. Ou como a de um palestino que, em lado oposto do mesmo mar, fez de sua vida uma construção de pontes de entendimento e não uma fenda de barreiras, EDWARD SAID.
AMÓS OZ, em seu livro ‘Contra o Fanatismo’, resultado de três conferências que proferiu na Universidade de Tübingen, na Alemanha, em 2002, nos ensina:
“ A crise atual no mundo – no Oriente Médio, em Israel, na Palestina – não diz respeito aos valores do Islã. Não diz respeito de jeito algum à mentalidade dos árabes, como querem alguns racistas. Diz respeito à luta antiga entre fanatismo e pragmatismo. Entre fanatismo e pluralismo. Entre fanatismo e tolerância. O 11 de setembro não tem a ver nem mesmo com a questão de se a América é boa ou má, se o capitalismo é ameaçador ou transparente, se a globalização deveria cessar ou não. Diz respeito, isto sim, a uma reivindicação típica dos fanáticos: se julgo algo mau, elimino-o, junto com seus vizinhos. O fanatismo é mais antigo que o Islã, mais velho que o cristianismo, que o judaísmo, que qualquer estado, governo ou sistema político, que qualquer ideologia ou fé no mundo. O fanatismo é, infelizmente, um comportamento onipresente da natureza humana, um gene do mal, se quiserem chamá-lo dessa forma. Pessoas que explodem clínicas de aborto nos Estados Unidos, que queimam mesquitas e sinagogas na Alemanha diferem de Bin Laden apenas em escala, mas não na natureza de seus crimes[2].”
O palestino-americano EDWARD SAID, em entrevista à revista brasileira Veja, quando perguntado se gostava da expressão “choque de civilizações”, assim se referiu:
”[...]Essa expressão foi posta para circular pelo cientista político americano Samuel Huntington, apoiando-se num artigo de Bernard Lewis, especialista famoso no Oriente Médio por seu menosprezo pelas pessoas que lá vivem. São inúmeros os seus problemas. Para começar, ela trata as civilizações como se fossem entidades fechadas, lacradas, alheias a qualquer tipo de troca. E isso é tudo o que as civilizações não são, pos elas se forjam na inter-relação e na fertilização mútua. Em segundo lugar, a imagem que Huntington faz das civilizações encobre o fato de que elas não são inteiramente monolíticas – que também estão crivadas de contradições, de correntes e contracorrentes que as animam. Por fim, a idéia de choque de civilizações tem um aspecto caricatural muito nocivo, como se enormes entidades chamadas “Ocidentes” e “Islã” estivessem em um ringue, lutando para ver qual é a melhor. Essa imagem das civilizações exibindo seus músculos uma para outra, como Brutus e Popeye no desenho animado, é de uma infantilidade atroz[3].”
O fanatismo é um elemento comum às três principais religiões monoteístas:
=> o cristianismo;
=> o islamismo;
* [derivadas ambas de sua matriz original]; e o
=> judaísmo.
É um fenômeno, portanto, a princípio, religioso; porém, no mundo moderno, trasladou-se para a política. Esse fato representa uma profunda contradição, pois a principal característica da modernidade é a de ter um projeto secular, quer dizer, leigo ou laicizante, ao qual Max Weber denominou, brilhantemente, de “desencantamento do mundo”.
A separação entre Estado e religião é o principal elemento das instituições democráticas modernas. Quando essas instituições se juntam, a carga explosiva se recompõe, pois todo o Estado religioso tende a não respeitar os direitos das minorias, quer dizer, dos que vivem e professam crenças diferentes. Por exemplo, o discurso de GEOGE W. BUSH – em seu maniqueísmo de estabelecer uma luta entre o Bem e o Mal - nega a própria essência da democracia americana, uma vez que os Estados Unidos da América foram, justamente, a primeira nação a declarar-se lega, justamente para garantir os direitos dos que são diferentes e pensam diferentemente. Sem isso, a democracia não se sustenta. Vejamos alguns exemplo, no âmbito das três principais religiões monoteístas.
O EXTREMISMO JUDEU_
Pela sua própria e conturbada história, diferentemente das que dela derivaram – o cristianismo e o islamismo -, a religião judaica nunca foi proselitista. O número de seus adpetos não é elevado. É uma escassa minoria se comparada às outras duas que o são. Além disso, os judeus sofreram perseguições e extermínios ao longo dos tempos, culminando com o Holocausto Nazista, quando cerca de 6 milhões deles foram trucidados.
Apesar disso, o judaísmo comporta inúmeras divisões internas, seja por razões de pratica religiosa, seja por opções políticas de seus membros. Impressiona o fato de os judeus terem vivido uma diáspora que durou perto de 2 mil anos e terem mantido a sua identidade, mesmo espalhados em comunidades que lhes eram estranhas e os estranhavam.
A partir de uma tendência moderada que, justamente, recebeu a denominação “do meio”, surgiu o Movimento Conservador no final do século XIX, nos Estado Unidos. Pretendeu ser um meio-termo entre a “esquerda” religiosa do movimento reformista e a “direita” representada pela ortodoxia. O termo “conservador” presta-se a uma confusão, uma vez que não necessariamente os seus membros o sejam. Mais ainda quando recebeu outra denominação de judaísmo “Masorti” [termo hebraico para “tradicional”]. Na verdade, com intenção aglutinadora, uma vez que afirmava compromissos com as leis e os costumes judaicos tradicionais, mas sem nenhuma leitura fundamentalista, pretendia uma relação aberta e positiva frente à cultura moderna, conciliando métodos rabínicos tradicionais com científicos modernos. Deriva do judaísmo histórico-positivo, fundando pelo rabino Zecharias Frankel em meados do século XIX, em Breslau, na Alemanha.
À margem das questões meramente religiosas, um movimento eminentemente político, fundando na idéia de recriação de uma pátria judaica, chamado MOVIMENTO SIONISTA e criado pelo jornalista Theodor Herzl, em 1895, não encontrou força moderadora. Cindiu-se, desde o principio, em facções de ‘esquerda’, auto-proclamadas de socialistas, defensoras da convivência pacifica com as populações árabes-palestinas, e de ‘direita’, avessas a qualquer forma de entendimento e tendentes ao exclusivismo.
O moderno Estado de Israel reflete bem isso. Alternam-se forças políticas e religiosas que revelam ora uma busca de entendimento ora uma declarada segregação da população palestina. O primeiro ministro Ariel Sharon concretizou, literal e infelizmente, a última opção, mandando construir uma gigantesca muralha que está ‘encapsulando’ a região da Cisjordânia. A construção do muro é a marca visível da intolerância recíproca, mas que marca, pelo lado de Israel, a vitória de suas forças mais retrógradas e intransigentes. A amarga ironia é que foi feita pelo povo que, desde a Antigüidade, tem sido o propagador do humanismo radical.
O FUNDAMENTALISMO PROTESTANTE_
Os diferentes grupos batistas do sul dos Estados Unidos produziram, desde meados do século XIX, um forte movimento reacionário que consiste em uma leitura literal do texto bíblico. Aliás, não é qualquer tradução da Bíblia, mas sim a clássica tradução para a língua inglesa, feita por Rei James [The King James Bible]. Nela, indicavam-se, claramente, os ‘servos de Satanás’, o racionalismo alemão, o evolucionismo de Darwin e a critica textual de Westcott e Hort, que deviam ser rechaçados.
Elaboram-se, então, os 5 pontos iniciais do fundamentalismo [sendo, para o que nos interessa, o primeiro o mais importante]> a inerrância, a infabilidade, a suficiência, a inspiração e a preservação da Bíblia [na versão King James, é claro]~.
No sitio eletrônico da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, versão em português do sitio eletrônico da Igreja Batista estadunidense, há uma citação sem indicação de fonte que diz:
“Entre 1875 e 1914, o fundamentalismo, que nada mais é do que a crença na Bíblia e a pregação do cristianismo autêntico, cresceu em várias localidades espalhadas como ensinos e pregações ortodoxas, ao invés de um movimento organizado. Institutos Bíblicos, como o fundado em Chicago em 1886 por Dwight L. Moody, floresciam restabelecendo ensinos ortodoxos que haviam sido obscurecidos por escolas apóstatas, como Harvard, Yale e Princeton, contaminadas pelos hereges racionalistas alemães. [...] O movimento fundamentalista tem ligação indissolúvel com o dispensacionalismo, odiado pelos liberais que alegorizavam a Bíblia.[4].”
De onde vem, portanto, a denominação desse movimento religioso anti-moderno e irracional?
Eles mesmos explicam:
“ O mais notável projeto foi o famoso The Fundamentals [Os Fundamentos], lançado em Los Angeles por dois empresários crentes chamados Lyman e Milton Stewart. Esse empreendimento consistiu em 12 volumes publicados entre 1910 e 1915, com 90 artigos sobre a Bíblia e assuntos correlatos. Cerca de 3 milhões de cópias foram impressas e estão disponíveis até hoje com uma excelente referência sobre a defesa da fé cristã.”
Para muitos e importantes lideres batistas, as maiores polêmica políticas a que se deve dar uma ‘resposta cristã’ referem-se a questões como a homossexualidade, o aborto, o feminismo, a inerrância bíblica e a não-aceitação da historicidade das narrativas bíblicas. Não é difícil deduzir a quem se refere o escritor AMÓS OZ, no texto citado acima, sobre ‘pessoas que explodem clinicas de aborto nos Estados Unidos[...].
Há informações seguras de que o presidente norte-americano George W. Bush abandonou o alcoolismo freqüentando igrejas batistas do Texas [...]. Não seria melhor que ele continuasse a beber os seus drinques?
O INTEGRISMO CATÓLICO_
Instituição dominante em toda a Idade Média européia, demasiado influente nos tempos modernos, embora acossada por pressões religiosas e políticas desde a reforma protestante [1517], não causa nenhuma admiração o fato de a Igreja Católica alinhar-se, quase sempre, à tradição e a movimentos conservadores, quando não, reacionários. O embate, no entanto, tornou-se inevitável.
O avanço da secularização, levado a cabo pelas transformações econômicas e sociais, fatalmente desaguariam, como desaguaram, na política. Os teóricos políticos modernos, desde Maquiavel até os constitucionalistas americanos e os iluministas franceses, irão propor a dessacralização, ou seja, a separação entre política e religião, fato consumado, por exemplo, na fundação dos Estados Unidos da América, o primeiro Estado leigo da História.
O racionalismo moderno irá desencadear uma torrente de transformações cientificas e tecnológicas, consumadas na Revolução Industrial. Tanto que, desde Saint-Simon, o termo ‘revolução’ ganhou outro significado. Ao invés de indicar ‘o retorno de um corpo ao seu ponto de partida’, passou a significar ‘transformação’, e uma transformação visível, uma vez que elementos da natureza ganharam novas e inusitadas formas. É claro que as explicações transcendentes, míticas e até mesmo religiosas sofreram forte abalo.
Na segunda metade do século XIX, quando a aceleração histórica se acentuou, surgiram movimentos reacionários, anti-modernos e anti-modernistas. Foi nesse contexto que surgiu o chamado ‘integrismo católico’, que dividiu e ainda divide a maior religião cristã.
O Pe. Charles Antoine relembra as origens do movimento:
“O aparecimento de um catolicismo ’moderno’, desejoso de conciliar as exigências do intelecto com os dados da fé, resultou no nascimento de um catolicismo ‘integral’, decidido a nada deixar perder-se dos seus valores tradicionais; melhor ainda, desejoso de provar que o catolicismo – e só ele – é capaz de formar o fermento regenerador da sociedade como tal. Os pronunciamentos de Pio IX e de Pio X, em favor da imutabilidade, intangibilidade e integralidade do catolicismo, concorreram, indubitavelmente, para aguçar a crise modernista [5].
A divisão entre os que propunham uma atualização modernizadora e os tradicionalistas se fez desde então. Naquele contexto histórico, acontecia o fim da soberania temporal do papado. A Unificação da Itália [1870] provocou o desaparecimento dos Estados Pontifícios, com a conseqüente perda dos territórios eclesiais. O rompimento entre o novo Estado italiano e a Igreja só terminou com a assinatura do Tratado de Latrão [1929], entre o líder fascista Benito Mussolini e o Papa Pio XI, quando foi criado o Estado do Vaticano.
A fenda aberta naquela ocasião ainda não foi fechada. De um lado, os que propunham maior inclusão da Igreja nas questões sociais, abrindo espaços para maior atuação dos leigos, e os que se aferravam nos primados espirituais e expunham as conotações evidentes dos termos: o que se entendia por ‘social’ sacudia a tutela teológica, e ‘integral’ pressupunha um fechamento da doutrina tradicional. Os efeitos políticos não tardaram. Eclodiram movimentos de tendência transformadora e revolucionária e outros, marcadamente conservadores e até fascistóides, como foi o caso da Ação Francesa, liderada pelo fanático Charles Maurras.
No Brasil, as correntes conservadoras dominaram os movimentos da Igreja Católica, desde quando um intelectual como Jackson de Figueiredo, em 1919, lançou um movimento de regeneração que contou com importantes figuras da intelectualidade nacional, sobretudo depois da criação do Centro Dom Vital, em 1922. Dois deles encarnaram o debate entre as correntes antagônicas por mais de uma geração: Alceu de Amoroso Lima, que escrevia seus artigos com o pseudônimo de Tristão de Athayde, de visão aberta e moderna, e o tradicionalista Gustavo Corção, de viés conservador e reacionário.
O advento da TEOLOGIA DE LIBERTAÇÃO foi o capitulo mais recente desse embate. Notadamente após o pontificado de João Paulo II, que representou um retrocesso em relação à abertura ecumênica do Concilio Vaticano II, as tendências conservadoras se reforçaram. Mais ainda, agora, quando o atual papa, Bento XVI, proclama teses que podem ser consideradas, em todos os termos, como integristas.
O NEOFUNDAMENTALISMO ISLÂMICO_
Conceitos embaralhados – Os recentes fatos envolvendo atos de terrorismo, manifestações extremadas e discursos inflamados levaram, sobretudo pela força e pela imprecisão conceitual de grande parte da mídia, manipulada, como se sabe, por interesses duvidosos, a um embaralhamento dos conceitos. Confundem-se árabe com muçulmano, muçulmano com terrorista, terrorista com fanático, fanático com fundamentalista, fundamentalista com integrista, e por ai vai... Necessário se torna precisar os conceitos. Exatamente para que se evite o preconceito, gerador de ódios e conflitos que não se sustentam em uma análise racional.
ð Os maiores paises muçulmanos não são árabes: Indonésia, Paquistão, Bangladesh, Turquia e Irã.
ð Terrorismo é qualquer ato violento que extrapola a convivência política.
ð Fanático é todo individuo desprovido de abertura mental para o que lhe é diferente.
ð Fundamentalismo, antes de tudo, é um fenômeno protestante.
ð Já o integrismo é uma manifestação desenvolvida no interior do catolicismo.
Sem pretender, é claro, esgotar assuntos tão polêmicos quanto explosivos, façamos um exercício de compreensão, numa breve perspectiva histórica.
O RADICALISMO ISLÂMICO_ Os termos ‘maometano’, ‘muçulmano’, ‘islamita’, todos eles, referem-se ao processo de formação de uma nova religião surgida no século VII, fundada pelo profeta MAOMÉ, fato que já explica o primeiro termo. Muçulmano deriva do persa ‘mussulmán’, palavra que identifica o crente do ‘Islã’. O termo árabe ‘islam’ significa submeter-se à vontade de Alá, o único Deus, criador, provedor e restaurador do Universo. A vontade de Alá, a que todos os homens devem submeter-se, está gravada nas sagradas escrituras, no ‘Corão’ que o próprio Alá revelou ao seu mensageiro, Maomé.
Assim, o Islã reúne todos os crentes. Porém, há que se levar em conta que existe uma multiplicidade enorme de povos, culturas e costumes, pois a expansão árabe, iniciada nos primeiros tempos, criou um enorme arco que vai do extremo Ocidente ao extremo Oriente, do estreito de Gibraltar até a Indonésia e a Malásia. Mesmo a religião possui nuanças locais. Islã, portanto, é uma referencia genérica demais para uma realidade multifacetada que muitos teimam em uniformizar para melhor estigmatizá-la. Tomemos dois exemplos mais radicais:
ð o wahabismo saudita; e o
ð xiismo iraniano.
O WAHABISMO SAUDITA _ O wahabismo foi fundado por Abdel Wahhab [1703-1791]. Cresceu e se consolidou em disputa com outras correntes islâmicas, e não contra o Ocidente. Aliás, é seu aliado por força de ligação com a família Saud, a que domina a Arábia desde a Primeira Grande Guerra.
O seu apego à literalidade das escrituras islâmicas é tal que rejeita tudo ou qualquer coisa que não seja definida como islâmica. Chegou a destruir o túmulo do Profeta para que não se transformasse em objeto de adoração. Olivier Roy assim o define:
“ A obsessão dessa tendência neofundamentalista é a de traçar um divisor de águas e a verdadeira religião [din] e a heresia [kufr], que perpassa o próprio interior da comunidade muçulmana. Portanto, denuncia qualquer compromisso religioso ou cultural assumido para com a cultura global dominante, que atualmente é a Ocidental. Tudo leva a um código entre o que é lícito e o que é ilícito, inclusive em detalhes, tais como a forma de aparar a barba [os talibans afegãos] ou de escovar os dentes. A fatwa [decreto religioso que determina o caráter lítico das ações de qualquer pessoa – do uso do cartão de crédito à doação de um órgão] passa a ser a principal atividade dos ‘ulemás’ e de lideranças religiosas autoproclamadas [6].
Esse autor ressalta mais adiante o papel importante exercido pelos sauditas na expansão do moderno neofundamentalismo. O objetivo era o de frear o nacionalismo árabe, o xiismo iraniano e do comunismo. No plano religioso, favorecem um sunismo doutrinário extremamente conservador e, ao invés de propagar o ‘wahabismo’, satisfizeram-se em ‘wahabizar’ o ensino das outras escolas, tais como as ‘madrassas’ do Paquistão e diversos institutos islâmicos na Arábia Saudita e no golfo Pérsico.
Existem traços de semelhança nesse neofundamentalismo com o protestantismo, notadamente nos ataques que desferem sobre a cultura dominante e na defesa de um código extremamente rígido de comportamento. Em um caso como no outro, encontram publico cativo entre desenraizados de toda espécie, gente que perdeu sua identidade cultural de origem.
Outro traço comum é o de um possível renascimento pessoal, uma espécie de ‘born again’, com a agravante de tornar as pessoas profundamente fanatizadas e capazes de ações que delas não se podia esperar em situações anteriores.
O neofundamentalismo não implica necessariamente pratica terrorista, apesar de em muitos casos isso acontecer. Em suma, o ‘wahabismo’ saudita alastrou-se, incluindo até as grandes comunidades islâmicas das principais cidades européias, o que as deixa em permanente sobressalto.
O XIISMO IRANIANO_ A queda do xá Mohamed Reza Pahlevi, em 1979, acendeu um rastilho de pólvora em todo o mundo islâmico. Desde o inicio do século, diversas facções se alternaram na luta pelo poder na antiga Pérsia, renomeada em 1935, com o nome de Irã. O governante de então, muito provavelmente sob influencia do ascendente arianismo nazista, julgou, erroneamente, que os persas constituíam-se em um grupo ariano puro. Além de um terço da população possuir diferentes origens, os persas derivam de migrações sucessivas ao longo dos séculos, desde a Antigüidade, o que mão foi levado em consideração pela mística criada por Reza Khan.
As concessões feitas a companhias estrangeiras de petróleo, desde o início do século, como foi o caso da “Anglo Iranian Oil Co.”, produziram reações tanto de religiosos, que sempre revelaram a sua aversão à influencia ocidental, quanto de grupos nacionalistas, defensores das riquezas nacionais.
A tentativa do primeiro-ministro Mohamed Mossadegh, em 1953, de nacionalizar os poços petrolíferos favoreceu o golpe de Estado que levou ao poder Reza Pahlevi. Apoiado pela CIA [Central Intelligency Agency], o serviço secreto americano, o novo xá inaugurou um dos períodos mais sombrios da história iraniana. Pelas décadas seguintes, o país estava completamente aberto aos interesses ocidentais,com uma estrutura repressiva sanguinária, em que se destacou a cruel policia política, a temida “Savak”. Alguns analistas chegaram a cifras de dezenas de milhares de pessoas eliminadas sob tortura. O Irã foi o primeiro pais onde se implantou um regime ditatorial, nos moldes da ‘ideologia de segurança nacional’, formulada pelos estrategistas militares americanos do Pentágono e caracterizada, essencialmente, pelo anticomunismo feroz, originado da “Doutrina Truman”.
O país se tornaria o “gendarme pró-americano” na região do golfo Pérsico, desbaratando cifras bilionárias na modernização industrial e na corrida militarista, incluindo a tecnologia nuclear. No curto período de 1973 a 1975, o Irã comprou, somente dos Estados Unidos, cerca de 10 bilhões de dólares em armas, tornando-se um dos maiores arsenais militares do mundo.
Apesar de sua longa duração ou em razão dela, o regime de Reza Pahlevi conseguiu condensar um ódio generalizado. Nacionalistas e religiosos se unem contra o processo de ocidentalização, em que modismos e hábitos de consumo americanos eram introduzidos e assimilados, provocando o afastamento, sobretudo entre as pessoas mais jovens, dos valores tradicionais herdados. Em 1978, insuflados por grupos de diversas correntes, mas sobretudo pelo líder religioso aiatolá Khomeini, exilado em Bagdá e depois em Paris, estouram diversos focos de rebelião popular, que se espalham por todo o país. As forças armadas os reprimem com extrema violência, o que só fez aumentar a insurreição. Incapaz de conter a onda de protestos, o xá Reza Pahlevi abandona o governo, em uma fuga patética, e se exila no exterior, em janeiro de 1979.
O grau de emocionalidade foi tão acentuado que os sacerdotes xiitas, os aiatolás, liderados por Khomeini, logo afastaram as outras forças políticas, inaugurando um anacrônico modelo teocrático fundamentalista. A identificação, feita por eles, dos valores ocidentais como demoníacos produziu um enorme efeito no mundo islâmico, disseminando um fanatismo que muitos entendem como de resistência cultural, sobretudo na multiplicidade dos países árabes, para os quais o Irã tornou-se uma referencia quase obrigatória.
O sociólogo palestino Zahi Azar, em seu artigo “Globalização e Resistências Culturais no Mundo Árabe Contemporâneo”,apresenta-nos alguns pontos interessantes para entendermos a emergência do fenômeno fundamentalista. Um deles é o fato de os países islamizados terem vivido por cinco séculos sob domínio otomano. Esse isolacionismo tão longo não produziu, obviamente, o necessário diálogo com a modernidade, ou seja:
“O diálogo entre as culturas árabes e a modernidade supõe refletir sobre aspectos que nunca foram pensados na história das idéias da sociedade árabe-muçulmana. Com efeito, quando o Renascimento emergiu na Europa, o mundo árabe parece que entrou em um período de estagnação intelectual, com a dominação dos otomanos, adiando a reflexão sobre problemas essenciais, tais como o progresso cientifico e ideológico. Foi justamente com os pensadores da Nahada[renascimento árabe do fim do século XIX e inicio do século XX] que esses problemas passaram a ser relativamente tratados. No entanto, o ‘impensado’ através de 500 anos de dominação otomana engendrou um ‘vazio’ de referencia para todos os pesquisadores do século XX, que procuram na religião do século XIII ou do século XIV respostas aos problemas atuais, o que, em si mesmo, é uma alienação ao diálogo natural engajado com a modernidade[7]”.
A ocidentalização dessas sociedades sempre foi proposta pelas elites e pelos respectivos Estados sem ter nenhuma vinculação orgânica com as camadas populares, provocando, por conseqüência, reações e resistências. Prossegue ele:
“ A passagem do ‘internacional’ ao ‘global’ foi efetuada em um curto lapso de tempo, sem que se levassem em consideração nem o ritmo de evolução das sociedades do ‘Terceiro Mundo’, nem as relações entre Estado e sociedade. O mito triunfalista ocultou o outro lado do fenômeno.[...] O mercado mundial se encastelou entre duas lógicas: o da ‘lobalização’ e a da ‘ desmassificação’ generalizada, o que leva à procura de segmentos transnacionais”, isto é, grandes conjuntos de indivíduos que compartilham, independentemente de suas fronteiras nacionais, os mesmos sistemas de valores, de prioridades, de gosto, de normas, enfim, de ‘mentalidades socioculturais’ semelhantes. Globalização e localização são as duas faces de um mesmo fenômeno, pois desde os anos 80 a dinâmica da globalização deslanchou um outro movimento antagônico: o revanchismo das culturas singulares” [8].
No mais, Zahi Azar nos dá uma lúcida interpretação do fenômeno fundamentalista iniciado no Irã, em 1979. Diz ele:
“ Se tomarmos a revolução iraniana como data de referência para a reemergência do fenômeno fundamentalista no mundo árabe, essa tendência é confirmada com o florescimento de mais de uma centena de movimentos fundamentalistas dominantes nos últimos quinze anos. Esse grande movimento popular não pode ser interpretado, em sua diversidade, como sendo dirigido unicamente contra a ‘modernidade’, vetor da globalização, mas visando também a desacreditar os poderes estabelecidos, depois de seu fracasso em impulsionar a nação para um desenvolvimento qualitativo religioso e material. Para julgar esses poderes, o fundamentalismo religioso faz referencia à idade de ouro do islamismo. Esse mito, que pode ser qualificado de irracional, dinamiza a vida social, fazendo com que as pessoas se convençam de que fracassaram todas as tentativas que visavam a mudar e fazer progredir a sociedade, não restando outra solução senão o retorno ao islamismo [9]”.
A maneira extremada como isso se dá reflete-se no extremo rigor do cumprimento literal dos preceitos religiosos, entendido aqui o ALCORÃO como o texto referencial básico. Toda a vida social passa a ser regida por ele, desde os detalhes comportamentais, de convívio social, até as normas de conduta, de vestuário e de alimentação, chegando à glorificação do martírio em favor da fé.
Embora a propriedade seja considerada sagrada, ela pode ser violada em casos de consumo de bebidas alcoólicas. A liberdade das pessoas tem o limite fixado nos textos sagrados. O ‘chador’ [vestimenta que deve levar-se apertada com as mãos e os dentes] e o ‘hejab’ [espécie de lenço protetor do corpo e que aumenta o isolamento] são de uso obrigatório para as mulheres. A exaltação dos feitos guerreiros produz um culto de veneração do livro dos mártires e torna os cemitérios locais sagrados, onde se organizam procissões e abundam as fontes d água colorida, imitando o sangue derramado pelos combatentes da fé. Os atos de auto-imolação são comuns em datas especiais, quando milhares de pessoas derramam o próprio sangue batendo-se com pesadas correntes. Essas manifestações produzem efeitos psicológicos profundos, levando muitas pessoas ao êxtase religioso, além de muitos se disporem até ao sacrifício de suas vidas.
O fundamentalismo espalhou-se por todo o mundo islâmico, produzindo manifestações fanáticas em muitos países, alimentando atividades terroristas, desde os grupos “Hamas” e “Hezbollan”, entre os palestinos, a facções sanguinárias na Argélia, Líbano, Iraque, Síria, chegando mesmo a influenciar posições extremistas no Afeganistão, no Paquistão e na Índia. É, portanto, um dos fenômenos mais radicais e perigosos do mundo, confrontando o triunfalismo dos apologistas de uma globalização natural e serena. É mais um dos desvios da História que teimavam em não acabar.
Como se pode ver, nesta síntese que os limites do ensaio nos impõem, apesar disso, é possível perceber que o mundo é muito mais complexo do que imagina o professor Samuel P. Huntigton...
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Notas:
[1]Huntigton, S.P. O choque de civilizações e A recomposição da ordem mundial. Tradução de M. H.C.Côrtes. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997;
[2]ÓZ,A. Contra o fanatismo. Tradução de Denise Cabral.Rio de Janeiro,: Ediouro, 2004 – p.14-15;
[3] GRAIEB, Carlos. A paz não virá: entrevista com Edward Said. Veja, São Paulo, a.35, n. 1808, jun.2003. Disponível em:http://veja.abril.com.br/250603/entrevista.html>.Acesso em:26 out.2007.
[4] O que é um cristão fundamentalista? The Baptist link. Disponível em:
[5]Antoine C. O integrismo brasileiro. Tradução de João Guilherme Linke. Rio de Janeiro>Cvilização Brasileira, 1980. p.11;
[6]Roy, Olivier. Wahabismo: o islã ao pé da letra. Trradução de Wanda Caldeira Brant. Lê Monde Diplomatique, São Paulo, abr. 2002. Disponível em:http://diplo.uol.com.br/2002-04,a285. Acesso em:26 out. 2007.
[7]FAUNDEZ, Antonio[Org]Educação, desenvolvimento e cultura: contradições teóricas e práticas. São Paulo: Cortez, 1994 p.218;
[8]AZAR, Zahi.”Globalização e resistências culturais no mundo árabe contemporâneo”. In.: Educação, desenvolvimento e cultura:contradições teóricas e práticas. Op.cit. p.215-nota 8.;
[9]Idem. P.222-223. nota 8.
[10] Texto produzido por: Gilberto de Abreu, professor do Sistema COC de Educação, doutorando em Educação pela Unicamp e autor de diversos livros de poemas, contos, romances e ensaios didáticos, como Globalização para quem?, Editado pela Temas E Idéias, do Rio de Janeiro; e Dimitri Oliveira Abreu, advogado e professor, especialista em Direito Ambiental pela Universidade de Franca.