21 de abr. de 2011

Kant_O Próprio

Kant nasceu em Koenigsberg, na Prússia, em 1724. Salvo, durante breve tempo de magistério numa aldeia vizinha, aquele calado e modesto professor, tão amigo de fazer preleções sobre a geografia e a etnologia de terras remotas, nunca abandonou sua cidade natal. Descendia de uma família pobre que deixara a Escócia cerca de cem anos antes do nascimento de Emanuel. Sua mãe era pietista, isto é, adepta de uma seita religiosa que, a exemplo dos metodistas da Inglaterra, insistia sobre a estrita, plena e rigorosa observância da pratica e da crença religiosa. Viu-se nosso filosofo tão imerso, da manhã a noite, num ambiente religioso, que reagiu, afastando-se da igreja no decurso de toda a sua vida adulta; por outro lado, assumiu até o fim a sombria figura do puritano alemão, sentindo crescentemente, a proporção que envelhecia, o grande desejo de preservar para si e o mundo pelo menos os princípios essenciais da fé que a mãe fundamente lhe inculcara.

Mas um jovem contemporâneo de Frederico e de Voltaire não se poderia imunizar contra a corrente de ceticismo da época. Kant foi profundamente influenciado pelos próprios homens a quem mais tarde pretendera refutar e mais, talvez, por Hume, seu inimigo predileto, do que por qualquer outro; veremos adiante o notável fenômeno de um filosofo a romper com o conservantismo de sua maturidade e a reverter, quase que em sua ultima obra, já perto de setenta anos, a um liberalismo viril que lhe acarretaria o martírio, se a idade e o renome o não protegessem. Até em meio de sua obra de restauração religiosa ouvimos, com surpreendedora freqüência, o tom de outro Kant a que, por engano, poderíamos tomar por Voltaire.

Schopenhauer julgava “não ser o menor dos méritos de Frederico o Grande ter permitido durante o seu reinado que Kant evoluísse se atrevesse a publicar sua Critica da Razão Pura. Sob qualquer outro governo, dificilmente ousaria fazê-lo um professor estipendiado” [e, portanto, um empregado publico]. “Kant foi obrigado a prometer aos sucessores do grande rei que não escreveria mais” [*O Mundo como Vontade e como Idéia, Londres, 1883, vol.II, pág. 133]. Como homenagem pela liberdade que gozara, Kant dedicou a Critica a Zedlitz, o esclarecido e progressista Ministro da Educação de Frederico.

Em 1755 Kant iniciou seu trabalho de livre docente da Universidade de Koenigsberg. Durante quinze anos deixaram-no a exercer esse cargo inferior; malogrou-se por duas vezes sua candidatura a professor efetivo. Afinal, em 1770, foi nomeado catedrático de lógica e metafísica. Após muitos anos de tirocínio escreveu um compendio de pedagogia, de que costumava dizer que continha muitos preceitos excelentes, dos quais ele nunca aplicara algum. Mesmo assim, lecionava, talvez melhor do que escrevia; e duas gerações de estudantes aprenderam a amá-lo. Uma das sua regras era dedicar-se de preferência aos alunos de capacidade média; aos obtusos, dizia ele, ninguém poderia valer; e, quanto aos geniais, tirar-se-iam a si mesmos de apuros.

Ninguém esperava que ele assombrasse o mundo com um novo sistema metafísico; assombrar alguém parecia o ultimo dos crimes que aquele tímido professor pudesse cometer. Ele mesmo não tinha tal esperança; na idade de quarenta anos escrevera: “Tenho a sorte de ser um adorador da metafísica; mas a minha amada poucos favores tem-me concedido até agora”. Naquele tempo falara sobre “o abismo sem fundo da metafísica”, comparando-a com “um oceano sem praias nem fanais”, juncado dos destroços de muitos naufrágios filosóficos [*Em Paulsen, Emanuel Kant, Nova-York, 1910, pág.82]. Chegou mesmo a atacar os metafísicos, que se instalaram nas altas torres da especulação “açoitadas, comumente, por grandes vendavais” [*Idem, pág.56]. Kant não previu que seria ele o desencadeador da maior de todas as tempestades metafísicas. 

No decurso desses anos plácidos seu interesse se voltava mais para a física do que para a metafísica. Escreveu sobre planetas, terremotos, fogo, ventos, éter, vulcões, geografia, etnologia e centenas de outras coisas que geralmente não se confundem com as metafísicas. Sua Teoria sobre os Céus [1755] sugeria a hipótese muito parecida a da nebulosa de Laplace e tentava uma explicação mecânica de todos os movimentos e evoluções siderais.

Todos os planetas, no pensar de Kant, foram ou serão habitados; e os mais distantes do sol, tendo evoluído mais tempo, possuem provavelmente espécies mais elevadas de organismos inteligentes do que as aparecidas em nosso planeta. Sua Antropologia [coleta organizada em 1798, de preleções feitas durante toda a sua vida] sugeria a possibilidade da origem animal do homem.

Dizia Kant que, se a criança humana recém-nascida, nas primitivas eras em que o homem se achava grandemente a mercê dos animais selvagens, vagisse tão alto, ao vir ao mundo, como o faz agora, seria fatalmente devorada; que é muito provável, por isso, fosse o homem a principio muito diferente daquilo em que se tornou no estado civilizado. E acrescenta sutilmente: “Não sabemos como a natureza operou essa evolução nem quais as causas que a auxiliaram. Esta observação leva-nos muito longe. Sugere-nos a idéia de que ao presente período histórico, por motivo de alguma grande revolução física, poderá suceder-nos um terceiro, em que algum orangotango ou chimpanzé se desenvolvam órgãos que sirvam para andar, tatear e falar, em uma estatura articulada de ser humano, com um órgão central para a inteligência e a progredir gradualmente ao influxo educativo das instituições sociais”. Seria esta uma amostra da cautelosa maneira indireta do Kant recalcados dos ulteriores tempos manifestar sua opinião sobre o modo como verdadeiramente descendera o homem de um animal? [*Assim o sugere Wallace: Kant, Filadélfia, 1882, pg.115].

Vemos assim o lento evoluir daquele homenzinho simples, que mal teria cinco pés de altura, modesto, retraído e mesmo assim encerrando em sua cabeça, ou tendo a gerar-se nela a revolução de mais remoto alcance da filosofia moderna. A vida de Kant, diz um de seus biógrafos, foi como o mais regular dos verbos regulares. “levantar-se, tomar café, escrever, lecionar, jantar, passear”, diz Heine, “cada qual destas coisas tinha seu tempo marcado. E quando, com seu sobretudo cinzento, ele aparecia de bengala a porta de sua casa, e caminhava para a pequena alameda de tílias que ainda se chama O Passeio do Filosofo, os vizinhos sabiam serem exatamente três e meia da tarde. Dava esse passeio, em todas as estações; e se o tempo embruscava e nuvens escuras prenunciassem chuva, viam Lampe, seu velho criado, dirigir-se apressadamente para o lugar em ele estava, a sobraçar, como um símbolo da Prudência, um grande guarda-chuva”.

Por ter compleição muito fraca, tomava grandes cuidados com a saúde, achando mais seguro fazê-lo sem o auxilio de médicos; por isso viveu até os oitenta anos. Aos setenta escreveu um ensaio “Sobre o Poder do Espírito para Dominar a Doença com a Força da Vontade”.  Um de seus preceitos favoritos era respirar unicamente pelo nariz, máxime quando estivesse ao tempo; por isso, no outono, no inverno e na primavera não conversava com pessoa alguma durante seus passeios diários; antes o silencio do que um resfriado. Empregava a filosofia até para suspender as meias com cadarços que lhe entravam pelos bolsos das calças, onde tinha a ponta presa em caixinha de molas [*Introdução a Critica da Razão Prática, de Kant, Londres, 1909, pág.XIII].

Kant pesava tudo com cuidado antes de agir e por isso se conservou celibatário. Duas vezes pensou em pedir a mão a uma dama; mas em um dos casos refletiu tanto tempo, que a dama se casou com outro pretendente mais animoso -  e no segundo aquela a quem queria se mudou de Koeningsberg antes que o filosofo se resolvesse a pedi-la. Talvez pressentisse, como Nietzsche, que o matrimonio lhe estorvaria a diligente procura da verdade; ”um homem casado”, costumava dizer Talleyrand, “fará tudo pelo dinheiro”. E Kant havia escrito aos vinte e dois anos, com todo o belo entusiasmo da mocidade onipotente: “Já tracei a linha que pretendo seguir. Vou encetar minha carreira e nada me impedirá de continuá-la” [*Wallace, pág.100].

E assim foi que perseverou, na pobreza e na obscuridade, a esboçar, a escrever e a reescrever sua magnum opus, por espaço de quase quinze anos, terminando-a somente em 1781, quando contava já cinqüenta e sete anos. Jamais homem algum amadureceu mais lentamente; e jamais, também, livro algum assombrou e revolucionou tanto o mundo da filosofia.    

Emanuel Kant_e o Idealismo Alemão

Caminhos para chegar a Kant
Jamais um sistema filosófico dominou tanto uma época, como o de Emanuel Kant dominou o pensamento do século dezenove. Depois de quase sessenta anos de silencioso e solitário desenvolvimento, o misterioso escocês de Koeningsberg despertou o mundo de seu “sono dogmático”, em 1781, com a celebre Critica da Razão Pura; e desde então até hoje a “filosofia critica” dominadoramente no poleiro especulativo da Europa. Surgiu a filosofia de Schopenhauer para vencer, passageira, na vaga romântica que se quebrou em 1848; após 1859, a teoria da evolução varreu tudo o que a antecedera; e o veemente iconoclasticismo de Nietzsche ocupou o centro do palco filosófico quando o século chegou ao fim. Mas essas manifestações foram secundárias; sob elas fluía a impetuosa e duradoura corrente do kantismo, cada vez mais caudalosa e profunda; seus teoremas essências até hoje são os axiomas de toda a maturidade filosófica. Nietzsche pressupõe Kant verdadeiro e passa avante [*A vontade de Poder, vol II, 1ªparte]; Schopenhauer declara ser a Critica “a obra mais importante da literatura alemã” e considera criança o homem que ainda não compreende Kant [*O Mundo como Vontade e como Idéia, Londres, 1883, vol II, pág 30]. Spencer não o compreende e, talvez precisamente por isso, faltou-lhe um pouco para atingir a sua plena estatura filosófica. Pode aplicar-se a Spencer a frase de Hegel sobre Spinoza: Para ser filosofo, cumpre ter sido primeiro kantiano.

Por isso, tornemo-nos incontinenti kantianos. Mas não é coisa que se consiga de pronto, pois, em filosofia como em política, a linha reta é a distancia maior entre dois pontos. Kant é a ultima pessoa do mundo que podemos conhecer lendo Kant. Nosso filosofo parece e, ao mesmo tempo, não se parece com Jeová, pois fala dentre nuvens – mas sem as clarear com relâmpagos. Desdenha exemplos e concretizações, pois, segundo se justificou, tornariam o livro muito longo. [*Critica da Razão Pura, Londres, 1881, vol.II, pág XXVII. Todas as referencias subseqüentes são de tópicos do segundo volume]. [Mesmo resumido assim, tem cerca de 800 paginas]. Só esperava que o lessem os filósofos e esses não precisam explicações. Sem embargo quando Kant deu o manuscrito da Critica a seu amigo Herz, homem versado em especulações, Herz o leu apenas até o meio e devolveu-o dizendo que ficaria louco se continuasse a leitura. Como nos avirmos com um tal filosofo?

Aproximemo-nos dele com desvios e precauções, começando de distancia segura e respeitosa; partamos de vários pontos da ampla circunferência e sem seguida nos dirijamos cautelosos para o centro sutil onde o mais difícil dos filósofos guarda seu segredo  - e seu tesouro.

1_ DE VOLTAIRE A KANT
Aqui o caminho é da razão pura sem a fé religiosa, para a fé religiosa sem a razão pura. Voltaire significa o Racionalismo, a Enciclopédia, o Século da Razão. O ardente entusiasmo de Bacon incutiu em toda a Europa [exceto Rousseau] a confiança no poder da ciência e da lógica para resolver todos os problemas a patentear “a infinita perfectibilidade” do homem. Condorcet, na prisão, escreveu seu Quadro Histórico do Progresso do Espírito Humano [1793], que exprimia a sublime confiança do século dezoito na ciência e na razão, e não reclamava para descobrir a Utopia outra chave além da educação universal. Mesmo os conservadores alemães tinham seu Aufklãrung – o racionalista Cristian Wolff e o promissor Lessing. E os exaltados parisienses da Revolução dramatizaram esta apoteose da inteligência adorando a “Deusa da Razão” – personificada numa encantadora mulher publica.

Em Spinoza, esta fé na razão gerou grandiosa estrutura de geometria e lógica: o universo era um sistema matemático e poderia ser descrito, a priori, por pura dedução de axiomas admitidos. Em Hobbes o racionalismo de Bacon tornou-se ateísmo e materialismo intransigentes. Afirma-se novamente nada existir exceto “os átomos e o vácuo”. De Spinoza a Diderot os destroços da fé iam ficando na esteira da razão mais e mais triunfante; desapareciam, de um em um, os velhos dogmas; ruía por terra a catedral gótica da crença medieval, com seus deliciosos detalhes e grotescos; o antigo Deus foi despenhado do trono juntamente com os Bourbons, o Céu cristão se converteu em nosso céu visível e o inferno passou a simples figura de retórica. Helvécio e Holbach puseram tão em moda o ateísmo nos salões franceses, que o próprio clero o tolerava; e La Mettrie, patrocinado pelo rei da Prússia, foi propagá-lo na Alemanha. Quando, em 1784, Lessing escandalizou Jacobi declarando-se adepto de Spinoza, foi isto o sinal de ter a fé atingido seu nadir e de haver triunfado a Razão.

David Huma, que desempenhou tão importante papel na campanha do Racionalismo contra a crença no sobrenatural, disse que quando a razão é contra um homem este logo se volta contra ela. Mas a fé e a esperança religiosas, proclamadas do alto dos cem mil campanários da Europa, achavam-se tão fundamente enraizadas nas instituições sociais  e nos homens, que não lhes seria possível submeterem-se de pronto ao veredictum hostil da razão; era inevitável que essa fé e essa esperança, assim condenadas, pusessem em duvida a competência do juiz, e reclamassem, além do exame da religião, o exame da razão também. Que era essa inteligência que se propunha destruir com um silogismo as crenças de milhares de anos e de milhões de homens? Seria ele infalível? OU não passava de um órgão humano semelhante aos mais, com estreitos limites assinalados a sua função e poder? Chegara o tempo de julgar o julgador, de examinar o inexorável Tribunal Revolucionário que condenara tão prontamente a morte todas as antigas esperanças. Chegara o tempo da critica da razão.

2_ DE LOCKE A KANT
As obras de Locke, Berkeley e Hume, prepararam o caminho para tal exame; mesmo assim seus resultados foram aparentemente hostis a religião.
John Locke [1632-1704], propusera aplicarem-se a psicologia as provas e métodos indutivos de Bacon, em seu Ensaio sobre o Entendimento Humano [1689], pela primeira vez no pensamento moderno a razão se voltará sobre si mesma, com a filosofia a analisar o instrumento em que tanto confiara. Esse movimento introspectivo da filosofia desenvolveu-se paralelamente com o romance introspectivo a moda de Richardson e Rousseau; o sentimento e a emoção da Clarissa Harlowe e de La Nowvelle Heloise encontraram seu correspondente na exaltação filosofica do instinto e do sentimento sobre a inteligência e a razão.

Como surge o conhecimento? Temos nós, como muitos supõem, idéias inatas, como, por exemplo, as do bem, do mal e de Deus -  idéias inerentes ao espírito desde nosso nascimento, anteriores a qualquer experiência? Receando que a crença em Deus desaparecesse, por ainda não ter sido este visto por algum telescópio, teólogos ansiosos entenderam que a fé e a moral se robusteceriam se mostrassem que suas idéias centrais e básicas são inatas em todas as almas normais. Mas Locke, embora bom cristão, pronto a argumentar com eloqüência em prol da Racionalidade do Cristianismo, não admitia tais suposições; proclamou tranqüilamente que todo o conhecimento provem da experiência, mediante nossos sentidos – que “nada existe no espírito que já não existisse primeiro nos sentidos”. O espírito é ao nascer uma pagina em branco, uma tabula rasa; e a experiência dos sentidos nela se inscreve de mil modos, até que a sensação gere a memória, e a memória gere as idéias. Tudo isto parecia conduzir a surpreendedora conclusão de que, desde que só as coisas materiais podem impressionar os sentidos, nada conhecemos a exceção da matéria. Se as sensações são a substancia do pensamento, a matéria é o material do espírito. Assim argumentava Locke.

Absolutamente não, correu a dizer o bispo George Berkeley [1684-1753]; esta analise lockiana do conhecimento prova antes que a matéria não existe a não ser como modalidade do espírito. Era, sem duvida, uma idéia brilhante refutar o materialismo com o simples expediente de mostrar que não conhecemos a coisa chamada matéria; em toda a Europa só uma imaginação galica podia ter conhecido este passe metafísico: Mas vede como é claro, disse o bispo: Locke não nos afirmou que modo o conhecimento deriva da sensação? Conseqüentemente, tudo o que conhecemos de alguma coisa são apenas as sensações que a mesma nos causa e as idéias derivadas dessas sensações. Uma “coisa” é unicamente um feixe de percepções, isto é, sensações classificadas e interpretadas.

Protestareis dizendo que vosso almoço é muito mais substancioso que um feixe de percepções, e que o martelo com que aprendeis carpintaria a custa de um polegar macetado tem materialidade da mais indiscutível espécie. Mas vosso almoço não passa, a principio de um conjunto de sensações da vista, do olfato e do tato; sem seguida, do paladar; e depois, do bem-estar e calor internos. Analogamente, o martelo é um feixe de sensações de cor, tamanho, forma, peso, tato, etc; sua realidade não está em sua materialidade, e sim nas sensações que vem do vosso polegar. Se não tivesse sentidos, o martelo para vós não existiria; poderia bater eternamente em vosso polegar insensível, sem merecer-vos a mínima atenção. Ele é somente um conjunto de sensações ou de lembranças; é um estado de vosso espírito. Toda a matéria, quanto nos é possível conhecê-la, não passa de um estado de espírito, e a única realidade que diretamente conhecemos é o espírito. E assim se refuta o materialismo.

Mas o astuto bispo irlandês não contara com o ceticismo escocês. David Hume [1711-1776] com a idade de vinte e seis anos escandalizara toda a cristandade com seu grandemente herético Tratado sobre a Natureza Humana – uma das obras clássicas e maravilhosas da filosofia moderna. Conhecemos o espírito, responde Hume, do mesmo modo como conhecemos a matéria: pela percepção, embora neste caso seja interna. Nunca percebemos alguma entidade semelhante a “espírito”, e, sim, meramente, idéias destacadas, lembranças, sentimentos, etc. O espírito não é uma substancia, um órgão que tenha idéias; é apenas um nome abstrato para séries de idéias; as percepções, as lembranças e os sentimentos é que são o espírito; não existe alma alguma observável atrás do processo do pensamento. Parecia haver Hume destruído tão completamente o espírito como Berkeley destruíra a matéria. Nada ficou: e a filosofia encontrou-se entre as ruínas que ela própria criara. Não admira que chistosamente alguém aconselhasse com as seguintes palavras a cessação da controvérsia: “No matter never mind”.

Mas Hume não se contentou com destruir a religião ortodoxa desfazendo o conceito de alma: propunha-se também destruir a ciência desfazendo o conceito de lei. Tanto a ciência como a filosofia, desde Bruno e Galileu, levavam em grande conta as leis naturais, a “necessidade” de seguir-se o efeito à causa; Spinoza baseou sua profunda metafísica nesta orgulhosa concepção. Mas, notem, disse Hume, que nunca percebemos causa ou leis, só percebemos acontecimentos e seqüências e deles inferimos a causalidade e a necessidade; uma lei não é um decreto eterno e necessário a que estejam sujeitos os fatos, mas simplesmente um resumo mental e taquigrafo de nossa experiência caleidoscopica; nada nos garante que as seqüências até agora observadas reapareçam inalteradas nos acontecimentos futuros. “Lei” é um “costume” observado na seqüência dos fatos; mas não há “necessidade” neste costume.

Só as formulas matemáticas tem este caráter necessário – somente elas são inerente e imutavelmente verdadeiras – e meramente por serem formulas tautológicas – o predicado já se acha contido no sujeito; 3x3=9 é uma verdade eterna e necessária unicamente por que 3x3 e o 9 são uma e a mesma coisa diferentemente expressa; o predicado nada ajunta ao sujeito. A ciência, por isso, deve cingir-se estritamente as matemáticas e a experiência direta; não pode fiar-se em deduções inverificadas de “leis”. “Se, com este raciocínio, percorrêssemos as bibliotecas”, escreve o nosso extraordinário cético, “quantos desastre! Tomando, por exemplo, qualquer volume da metafísica escolástica, perguntaríamos: - Contem este livro algum raciocínio abstrato relativo ás quantidades ou números? – Não. Contem algum raciocínio experimental referente a fatos e coisas existentes? – Não. – Ao fogo, então, pois unicamente pode encerrar sofismas e ilusões” [*Citado em Royce: O Espírito da Filosofia Moderna, Boston, 1892, pág.98].

Imagine-se como não doeriam estas palavras nos ouvidos dos ortodoxos. A tradição epistemológica – indagações sobre a natureza, origem e valor dos conhecimentos – deixava de servir de amparo à religião; a espada com que o bispo Bekerley matara o dragão do materialismo voltava-se contra o espírito imaterial e a alma imortal, e nessa refrega a própria ciência sofria graves danos. Não é de maravilhar que quando Emanuel Kant leu, em 1775, uma tradução alemã das obras de David Hume, se sentisse abalado e despertasse, como o disse, de seu “sono dogmático” em que aceitara sem discussão os fundamentos da religião e da ciência. Tanto a ciência como a fé estariam derrotadas pelo cético? Que fazer para salvá-las?

3_DE ROUSSEAU A KANT
Ao argumento do Racionalismo, de que a razão tende ao materialismo, Berkeley tentou responder que não existe a matéria. Mas isto conduzira Hume a réplica de que com a mesma argumentação também se provava a não existência do espírito. Ainda era possível outra resposta: - não ser a razão a ultima prova. Existem algumas conclusões teóricas contra as quais todo o nosso ser se revolta; não temos o direito de presumir que estas exigências de nossa natureza possam ser asfixiadas pelas regras de uma lógica que não é, afinal de contas, senão a recente criação de uma parte frágil e enganosa de nosso ser. Quantas vezes os instintos e sentimentos atiram de lado os pequeninos silogismo que desejariam fazer-nos proceder como figuras geométricas e amar com precisão matemática!

Não há duvida de que, as vezes – principalmente nas novas complexidades e artificialidades da vida urbana – a razão é o melhor guia;mas nas grandes crises da vida e nos grandes problemas da conduta e da crença, confiamos mais em nossos sentimentos do que em nossos diagramas. Se a razão estiver contra a religião, tanto pior para a razão!

Tal foi o argumento de Jean-Jacques Rousseau [1712-1778],que na França, quase que só, combateu o materialismo e o ateísmo dos racionalistas. Que destino, para uma natureza delicada e nervosa, ver-se lançada em meio ao robusto racionalismo e ao quase brutal hedonismo [*Doutrina de que nosso procedimento é ditado pela procura do prazer] dos enciclopedistas!

Rousseau tivera mocidade doentia, impelida a meditação e introversão pela debilidade física e pela atitude hostil dos pais e professores; refugira aos aguilhões da realidade acolhendo-se a um ardente mundo de sonhos, onde as vitórias que lhe eram negadas pela vida e pelo amor poderiam obter-se pela meditação. Suas Confissões revelam um inconciliável complexo da mais requintada sentimentalidade com um embotado senso de decência e honra; e de permeio a tudo isto uma inabalável convicção de sua superioridade moral [*Confronte-se com Confissões, livro X, vol.II. pág.184].

Em 1749 a Academia de Dijon ofereceu um premio ao melhor ensaio sobre a questão: “O progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou purificar a Moral?” O ensaio de Rousseau ganhou o premio. A cultura é mais um mal que um bem, alegou ele – com toda a veemência e sinceridade daquele que, vendo a cultura fora de seu alcance, se propõe provar seu desvalor. Considerem-se as tremendas desordens produzidas na Europa pela imprensa. Onde quer que a filosofia progrida, decai o equilíbrio moral da nação. “Mesmo entre os próprios filósofos há o brocardo de que quando os homens são doutos não há mais homens honestos”. “Aventuro-me a declarar que a reflexão é contraria a natureza e que um homem que pensa” [um ‘intelectual’ diríamos hoje] “é um animal degenerado”. Melhor seria desistir de nosso ultra-rápido desenvolvimento da inteligência e apenas educar o coração e os sentimentos. A instrução não torna o homem bom – apenas o torna mais hábil -  e quase sempre para o mal. O instinto e o sentimento são mais dignos de confiança do que a razão.

Em todo o seu celebre romance A Nova Heloisa [1761], Rousseau patenteou a superioridade do sentimento sobre a inteligência; o sentimento tornou-se moda para as damas da aristocracia; durante um século a França encharcou-se de lagrimas – a principio literárias e, depois, verdadeiras; e o grande movimento intelectual da Europa no século XVIII deu voga a literatura romântico-sentimental de 1789-1848.

Essa corrente acarretou forte revivescencia do sentimento religioso; os êxtases do Gênio do Cristianimos [1802] de Chateaubriand foram simples eco da “Profissão de Fé do Vigário Saboiano” que Rousseau incluiu em seu ensaio sobre a Educação  - Emilio [1762], de idéias acordes com a época. O argumento da “Profissão” era simplesmente este: embora a razão possa pronunciar-se contra a crença em Deus e na imortalidade, o sentimento predomina grandemente a favor dessa crença; por que não confiarmos no instinto, neste ponto, de preferência a entregar-se ao desespero de um árido ceticismo?

Quando Kant lia Emilio privou-se do seu passeio cotidiano sob as tílias, para terminar prontamente a leitura. Era-lhe grande acontecimento em sua vida encontrar outro homem que procurasse, as apalpadelas, sair das trevas do ateísmo e que audazmente afirmasse a supremacia do sentimento sobre a razão abstrata naquele terreno supra-sensível. Ali estava, finalmente, a segunda metade da refutação da irreligiosidade; agora seriam, afinal, destroçados todos os zombadores e céticos. Reunir os fios da argumentação, unir as idéias de Berkeley e de Hume aos sentimentos de Rousseau, salvar a religião das garras da razão e, ao mesmo tempo, livrar a ciência do ceticismo – foi essa a missão de Emanuel Kant.

Mas quem era Emanuel Kant?