29 de abr. de 2011

Schopenhauer_Sua Época

Por que motivo a primeira metade do século dezenove deu surto a uma série de poetas pessimistas – Byron da Inglaterra, Musser na França, Heine na Alemanha, Leopardi na Itália, Pushkin e Lermontof na Rússia; a um grupo de compositores – Schubert, Schummann, Chopin e ainda o Beethoven da ultima fase [um pessimista que procurava mostrar-se otimista];e, acima de tudo a um filosofo eminentemente pessimista – Artur Schopenhauer?  

A sua grande antologia do infortúnio, O Mundo como Vontade e Idéia, apareceu em 1818. A “Santa” Aliança ia no apogeu. Dera-se a batalha de Waterloo, a Revolução estava morta, o “Filho da Revolução” apodrecia num penedo longe nos mares. Parte da apoteose de Schopenhauer á Vontade era devida a sangrenta e magnífica aparição da Vontade feita homem que foi o pequeno corso; e parte do seu desespero vinha do patético afastamento da ilha de Santa Helena -  a Vontade finalmente derrotada e a negra Morte vencedora única de todas as guerras. Estavam restaurados os Bourbons, os barões feudais voltavam a reclamar suas terras e o pacifico idealismo de Alexandre da Rússia havia dado nascimento a uma liga para a supressão universal do progresso. A grande era fora-se. “Rendo graças a Deus, dizia Goethe, de um tal esgotamento do mundo não haver coincidido com a minha mocidade”.

A Europa inteira jazia prostrada. Milhões de homens fortes tinham perecido; milhões de acres de terras aráveis jaziam em abandono; por toda a parte do Continente a vida tinha de recomeçar do começo e penosamente restaurar as reservas de civilização e riquezas destruídas pela guerra. Na sua viagem através da França e da Austrália em 1804 Schopenhauer espantou-se com a desordem e imundície das cidades, com a desoladora pobreza dos homens do campo, com o desassossego e miséria das aldeias. A passagem dos exércitos napoleônicos e anti-napoleonicos deixaram cicatrizes profundas em todas as nações. Moscou reduzira-se a cinzas. Na Inglaterra, a orgulhosa vencedora da luta, os campônios estavam arruinados pela queda do preço do trigo, e os operários industriais sofriam todos os horrores do nascente e ainda incerto regime fabril. A desmoralização agravava o desemprego. “Ouvi meu pai dizer”, escreveu Carlyle, “que nos anos em que a aveia foi a dez chellins o ‘stone’[sete quilos]os trabalhadores retiravam-se separadamente para a beira de um riacho onde bebiam em vez de jantar, procurando assim esconder a miséria aos olhos uns dos outros” [*Froude, Life and Letters of Thomas Carlyle].

Sim, a Revolução estava morta e com a morte da Revolução a vida parecia ausente da alma da Europa. Aquele novo céu chamado Utopia, cujo clarão alumiara a queda dos deuses, apequenara-se num difuso porvir onde só os olhos muito jovens viam alguma luz; os velhos tinham seguido por muito tempo o clarão enganador e agora o consideravam uma ironia as esperanças do homem. Unicamente os moços podem viver no futuro – aos velhos só deleita o passado; mas todos os homens da época eram compelidos a viver no presente -  um presente que não passava de dolorosa ruinaria. Quantos milhares de heróis e crentes não lutaram na Revolução! Em todos os paises, quantos corações moços não se voltaram para a jovem republica e viveram da sua luz e da sua esperança – até o momento quem Beethoven rasgou a dedicatória da Sinfonia Heróica, feita ao homem que deixara de ser Filho da Revolução para tornar-se o Sogro da reação? E estava ali agora o fim de tudo – Waterloo, Santa Helena, Viena; e no trono da França prostrada um Bourbon que nada havia aprendido e que nada esquecera. Era aquele o fim da geração mais cheia de esperança e que mais se esforçara de quantas o mundo vira! Que comedia era aquela tragédia – para os que sorriam com os olhos ainda em lagrimas!

Nesses dias de desilusão e dor as classes pobres ainda tinham o consolo da esperança religiosa; mas larga parte das classes superiores havia perdido a fé e olhava para o mundo em ruínas sem nenhuma antevisão de outra vida em que os horrores desta se dissolvessem em beleza e justiça. E na verdade era difícil crer que o trágico planeta que os homens conheceram em 1818 fosse mantido pela mão de um Deus inteligente e bom. Mefistófeles vencera e todos os Faustos desesperavam. Voltaire semeara o torvelinho; Schopenhauer estava maduro para a colheita dos frutos.

Raramente o problema do mal apareceu tão vivido e insistente aos olhos da filosofia e da religião. Cada tumulo de soldado, de Boulogne a Moscou as Pirâmides, era uma interrogação muda as estrelas indiferentes. Por que, Senhor, e por quanto tempo? Seria aquela universal calamidade, a vingança de um Deus justo contra a Era da Razão e da falta de fé? Sugestão ao intelecto penitente para inclinar-se diante das antigas virtudes, fé, esperança e caridade? Assim pensou Schelegel, e assim pensaram Novalis, Chateubriand, Musset, Southey, Wordworth e Gogol; como filhos pródigos, todos se voltaram para a velha fé. Outros, porém, se mostraram mais duros; o caos da Europa refletia o caos do universo; não havia nenhuma ordem divina, nem esperança celestial; Deus, se Deus existira, era cego, e o Mal espalhava-se sobre toda a face da terra. Foram vozes deste grito, Byron, Heine, Lermontof, Leopardi – e o nosso Schopenhauer.    

Nota Sobre Hegel

Não faz muito tempo era costume dos historiadores da filosofia dar aos imediatos sucessores de Kant – Fichte, Schelling e Hegel – tanto honra e espaço como a seus predecessores da filosofia moderna, desde bacon e Descartes até Voltaire e Hume. Hoje é nossa perspectiva um pouco diversa e saboreamos, talvez, vivamente as invectivas de Schopenhauer contra seus rivais triunfantes em concursos para cargos profissionais. Lendo Kant, diz, Schopenhauer, “o publico foi compelido a ver que aquilo que é obscuro nem sempre é destituído de significação”. Fichte e Schelling prevaleceram-se dessa obscuridade e teceram pomposas teias de aranha metafísicas. “Mas o cumulo da audácia de arquitetar puros disparates, de aglomerar emaranhamentos de palavras extravagantes e sem sentido, viu-se afinal em Hegel e tornou-se o instrumento da mais deslavada e geral mistificação de que já houve notícia, com um resultado que parecerá fantástico para a posteridade e constituirá como que o monumento da estupidez germânica” [*Caird, Hegel, na coleção Blackwood Philosophical Classics, pág. 7-8. A narração biográfica acompanha fielmente a dessa obra]. Não é interessante?

George Wihelm Friedrich Hegel nasceu em Sttutgart em 1770. Seu pai era um funcionário inferior no ministério das finanças do estado de Würtemberg – e o próprio Hegel cresceu  com os hábitos pacientes e metódicos daqueles empregados civis cuja modesta eficiência deu a Alemanha as cidades melhor administradas do mundo inteiro. O jovem era um infatigável estudante: fazia analises completas de todos os livros notáveis que lia, e copiava longos trechos. A verdadeira cultura, disse ele, deve principiar com o abstrair-se resolutamente de si próprio, como no sistema pitagorico de educação, no qual se exigia do aluno, durante os primeiros cinco anos, que se conservasse calado.

Seus estudos de cultura grega o entusiasmaram pela cultura grega, entusiasmo que persistiu ainda quando quase todos os mais se desvaneceram. “Ao nome da Grécia”, escreveu ele, “o alemão culto acha-se como em casa. Para os europeus a religião veio de outra fonte – do Oriente...;mas o que se vê aqui, o que se acha presente – ciência e arte, tudo o que satisfaz a vida e a eleva e adorna – trazemos, direta ou indiretamente, da Grécia”. Durante algum tempo Hegel preferiu a religião dos gregos ao cristianismo;e antecipou-se a Strauss e Renan escrevendo uma Vida de Jesus, na qual não se falava em milagres e Jesus era considerado como filho de Maria e de José. Mais tarde destruiu esse livro.

Na política também mostrou revolta de que dificilmente se suspeitaria lendo-se sua ulterior apologia do statu quo. Quando cursava a universidade de Tübingen, ele e Schelling defendiam calorosamente a Revolução Francesa e foram certa manhã, muito cedo, plantar uma Arvores da Liberdade na praça do mercado. “Com o banho da revolução”, escreveu Hegel, “a França libertou-se de muitas instituições que o espírito de seus homens já deixara para trás como seus sapatinhos de criança, e que por essa razão pesava sobre eles, como ainda pesa sobre outros, como plumagens sem vida”. Foi nesses dias esperançosos, “quando ser moço era coisa celestial”, que ele se enamorou, com Fichte, de uma espécie de socialismo aristocrático e se entregou com característico vigor a corrente romântica em que a Europa mergulhara.

Recebeu o grau em Tübingen, em 1793, obtendo um certificado que o dizia dotado de capacidade e caráter, bem preparado em teologia e filologia, mas sem aptidão para a filosofia. Era pobre, nesse tempo, e precisou ganhar a vida a lecionar em Berne e em Francfort. Foram os seus anos de crisálida;  enquanto a Europa se dilacerava em facções nacionalistas, Hegel ganhava forças e se desenvolvia. Então [1799] morreu-lhe o pai, e herdando quantia correspondente a cerca de 1.500 dólares, considerou-se rico e renunciou ao ensino. Escreveu a seu amigo Schelling para que o aconselhasse sobre onde morar e pediu-lhe um emprego que lhe pudesse proporcionar alimentação frugal, livros em abundancia e “ein gutes Bier”. Schelling recomendou-lhe Iena que era uma cidade universitária sob a jurisdição do Duque de Weimar. Em Iena, Schiller lecionava história, Tieck, Novalis e os Schlegels pregavam o romatismo; e Fichte e Schelling preparavam suas filosofias. Hegel lá chegou em 1801; em 1803 tornou-se professor da universidade.

Ainda se achava em Iena, em 1806, quando a vitória de Napoleão sobre os prussianos espalhou a confusão e o terror na pequena cidade universitária. Soldados franceses invadiram a casa de Hegel, o qual, como bom filosofo, deu aos calcanhares, levando consigo o manuscrito de seu primeiro livro importante. A Fenomenologia do Espírito. Ficou tão sem recursos durante algum tempo, que Goethe, autorizou Knebel a lhe emprestar alguns dólares para tirá-lo da miséria. Hegel escreveu quase amargamente a Knebel: ”Adotei como estrela guieira a frase bíblica, cuja verdade a experiência me fez reconhecer: - Procurai antes de tudo alimento e vestuário, que a isso se vos acrescentará o reino do Céu”.

Por espaço de algum tempo editou um jornal em Bamberg; depois em 1812, tornou-se diretor do ginásio de Nuremberg. Foi aí, talvez, que a necessidade de estoicismo para seu trabalho de dirigente lhe esfriou os ardores românticos, e o transformou, como a Napoleão e Goethe, em clássico retardatário numa era romântica. E foi ai que escreveu aquela sua Lógica [1812-1816],que seduziu a Alemanha pela ininteligibilidade e o fez obter a catedra de Filosofia em Heidelberg. Em Heidelberg compôs a imensa Enciclopédia das Ciências Filosóficas [1817], cujo mérito o fez ser promovido, em 1818, a professor da universidade de Berlim. Desde então até o fim da vida imperou no mundo filosófico tão indiscutivelmente como Goethe no da literatura e Beethoven no da musica. A data de seu nascimento era imediata a do nascimento de Goethe e a Alemanha, orgulhando-se de ambos criou em honra de ambos um duplo feriado anual.
Um francês pediu certa vez a Hegel que resumisse sua filosofia em uma sentença; e ele não se saiu tão bem da prova como o frade que respondeu singelamente, quando lhe pediram que definisse o cristianismo durante o tempo em que se pudesse equilibrar num só pé: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Hegel preferiu responder em dez volumes; escritos e publicados, quando o mundo inteiro falava sobre sua obra, Hegel lastimou-se dizendo: ”Só um homem me compreende e esse mesmo não me compreende” [*Rigorosos Críticos, como se poderia esperar, contestam a autenticidade desta referencia].

A maioria dos seus trabalhos, assim como a dos de Aristóteles, consiste em notas de suas preleções; pior ainda, em notas tomadas pelos estudantes. Só a Lógica e a Fenomenologia foram de seu punho e são obras primas de obscuridade resultante do abstrato de matéria e da concisão de estilo, de uma extravagante terminologia original e de uma minudenciosa modificação de tudo o que expõe, numa riqueza gótica de clausulas restritivas. Hegel definiu sua obra como “uma tentativa para ensinar a filosofia a falar em alemão” [*Wallace, Prolegomenos a Lógica de Hegel, pág.16]. E conseguiu-o...

A Lógica é uma análise – não dos métodos de raciocinar, mas dos conceitos empregados no raciocínio. Estes, para Hegel, são as categorias que Kant denominou – Ser, Qualidade, Quantidade, Relação, etc. A primeira empreita da filosofia é dissecar estas noções básicas que tão a miúdo ocorrem em todos os nossos pensamentos. A mais esquiva de todas é a Relação; cada idéia é um grupo de relações; só podemos pensar em alguma coisa relacionando-a com alguma outra e percebendo-lhe as similitudes e diferenças. Uma idéia sem relações de qualquer espécie é uma idéia vazia; é isto o que significa ao dizer-se que “Puro Ser e Nada são a mesma coisa”; o Ser absolutamente destituído de relações em qualidades não existe, nem tem qualquer significado. Esta proposição conduz a uma infinita série de sutilezas, que por sua vez geram outras; e isto se mostrou ser ao mesmo tempo obstáculo e atrativo para o estudo das idéias de Hegel. 

De todas as relações a mais universal é a de contraste ou oposição. Cada condição do pensamento ou das coisas – cada idéia e situação no mundo – leva irresistivelmente a sua contrária e une-se em seguida com esta para formar um todo mais elevado ou mais complexo. Este “movimento dialético” apresenta-se em tudo o que Hegel escreveu. É esta, aliás, uma velha idéia, pressentida por Empédocles no “áureo meio” de Aristóteles, que escreveu “ser uno o conhecimento dos contrários”. A verdade [como um elétron] é uma unidade orgânica de elementos contrários. A verdade do conservantismo e do radicalismo é o liberalismo – espírito aberto e mão cauta – mão aberta e espírito cauto; a formação de grandes correntes de opiniões implica uma decrescente oscilação entre dois extremos – e em todas as questões debativeis veritas in médio stat. O movimento evolutivo é um continuo desenvolvimento de contrários, que se fundem e conciliam. Schelling tinha razão – existe uma subjacente “identidade dos contrários”; e Fichte também a tinha – a tese, a antítese e a síntese constituem a formula e o segredo de todo o desenvolvimento e de toda a realidade.

Pois não só as idéias que evoluem e se aperfeiçoam de acordo com este “movimento dialético”, e sim as coisas também; toda condição social política encerra uma contradição que a evolução deve transformar em unidade conciliadora. Desta forma, nosso presente sistema social origina, sem duvida, uma contradição auto-destruidora; o individualismo incentivador, necessário em um período de adolescência econômica e de recursos inexplorados, suscita, mais tarde, o aspirar pela cooperação da comunidade; e o futuro não mostrará a realidade presente nem o ideal visado, e sim uma síntese em que alguma coisa do primeiro e alguma coisa do segundo, reunidas, criarão um tipo mais elevado de vida. E esse estagio mais alto se desdobrará em uma fecunda contradição, fazendo subir a mais elevados níveis de organização, complexidade e unidade. O evolver das idéias é o mesmo que o das cosias; existe em cada caso uma progressão dialética da unidade através da diversidade para a diversidade  na unidade. O pensamento e o ser seguem as mesmas leis -  e a lógica e a metafísica constituem uma unidade.

O espírito é o órgão indispensável para a percepção deste processo dialético e desta unidade na variedade. A função do espírito, e a tarefa da filosofia, é descobrir a unidade que jaz potencialmente na variedade; a tarefa da ética é unificar o caráter e a conduta; e, a da política, unificar os indivíduos em um estado. O trabalho da religião é atingir e sentir aquele Absoluto em que todos os contrários se resolvem em unidade, na grande totalização de seres, na qual a matéria e o espírito, o sujeito e o objeto, o bem e o mal, se tornam uma unidade. Deus é o sistema de relações em que todas as coisas se movem e tem seu ser e significação. No homem o Absoluto eleva-se até a consciência de si mesmo e torna-se a Idéia Absoluta -  que existe, embora realizando-se como parte do Absoluto, transcendendo as limitações e finalidades individuais, e apreendendo, sob o conflito universal, a oculta harmonia das coisas. “A razão é a substancia do universo...;a finalidade do mundo é absolutamente racional” [*Hegel, Filosofia da Historia, ed. De Bohn, págs., 9,13].

Não se creia que o conflito e o mal sejam meras coisas negativas imaginárias; são bem reais; mas são, na perspectiva da sabedoria, estágios para a perfectibilidade e para o bem. Aquele conflito é a lei do desenvolvimento; o caráter forma-se nas tempestades e asperezas da vida; e um homem só atinge sua plena estatura moral por efeito de compulsões, responsabilidades, e sofrimentos. A própria dor tem sua razão de ser: é indicio de vida e estimulo para a reconstrução. A paixão tem também o seu lugar na razão das coisas: “nada de grande do mundo foi realizado sem paixão” [*Filosofia da Historia, pág.26]; e até a ambição egoísta de um Napoleão contribui inconscientemente para o desenvolvimento das nações.

A vida não foi feita para a felicidade e sim para as realizações. “A história do mundo não é o teatro da felicidade; os períodos felizes são suas paginas em branco, por serem períodos de harmonia” [*idem, pág.27]; e esta inglória ventura é indigna de um homem. Cria-se a historia somente nos períodos em que as contradições da realidade se dissipam pelo desenvolvimento, assim como as hesitações e desasos da mocidade se mudam na eficiência e na ordem da idade adulta.

A historia é um movimento dialético, quase uma série de revoluções em que povo após povo, gênio após gênio, se tornam o instrumento do Absoluto. Os grandes homens são menos os progenitores do que as parteiras do futuro, o que eles criam é concebido pelo ventre materno do Zeitgeist, o Espírito da Época. O gênio limita-se a colocar nova pedra no pular, a exemplo de outros; “feliz é o que tem a sorte de chegar por ultimo, pois ao colocar sua pedra fica rematada a abobada”. “Tais indivíduos não tinham consciência da Idéia geral que estavam a desenvolver; mas das exigências de seu tempo, intuíam o que para este constituía sua maturidade. Sua verdade era a verdadeira Verdade de sua época, de seu mundo; era, por assim dizer, a espécie da ordem imediata que já se achava  formada nas entranhas do tempo” [*Filosofia da Historia, pág.31].

Semelhante filosofia da historia parece conduzir a conclusões revolucionárias. O processo dialético muda o principio cardial da vida; nenhuma condição é permanente: em cada fase das coisas existe uma contradição que só o “conflito dos contrários” pode resolver.  Por isso, a mais profunda lei política é a liberdade – o caminho aberto para as mutações; a história é o crescente aumento da liberdade, e o estado é, ou deveria ser, a liberdade organizada.

Por outro lado, a doutrina de que “o real é racional” tem um tom conservador: a toda condição, embora destinada a desaparecer, assiste um divino direito, por ser fase necessária da evolução; de certo modo é brutalmente verdade que “tudo o que é, é racional”. E assim como a unidade é o alvo do desenvolvimento, a ordem é o primeiro requisito da liberdade.

Se Hegel propendia, em seus últimos anos, mais ao que sua filosofia subentendia de conservador do que de radical, foi parcialmente porque o Espírito da Época [para usar sua própria frase histórica] estava cansado de muitas mudanças. Após a revolução de 1830 ele escreveu: ”Afinal, depois de quarenta anos de guerra e de imenso caos, um velho coração pode rejubilar por ver o fim de tudo e o inicio de um período de tranqüila ventura” [*Em Caird, pág.93]. Não era muito lógico que o filosofo apologista da luta como dialética do desenvolvimento se tornasse o preconizador do estado de ventura; mas aos sessenta anos o homem tem o direito de desejar a paz. Não obstante, as contradições das idéias de Hegel eram muito grandes para que houvesse paz; por isso, na geração seguinte seus continuadores cindiram a fatalidade dialética em “Direita e Esquerda Hegeliana”. Weisse, e Fichte, mais jovem, acharam na teoria da racionalidade do real uma expressão filosófica da doutrina da Providencia e a justificação de uma política de absoluta obediência. Feuerbach, Moleschott, Bauer e Marx voltaram ao ceticismo e “criticismo mais elevado” da mocidade de Hegel e desenvolveram a filosofia da historia em uma teoria de lutas de classes, levado pela necessidade hegeliana ao “socialismo inevitável”. O absoluto que determinava a historia por meio do Zeitgeist, foi substituído por Marx pelos movimentos coletivos e forças econômicas que, a seu ver, são as causas básicas de toda mudança radical, quer no mundo das coisas, quer na vida das idéias. Dos ovos de Hegel, professor imperial, saíram os pintos do socialismo.

O velho filosofo acusou os radicais de sonhadores, e cuidadosamente ocultou seus primeiros ensaios. Aliou-se ao governo prussiano, bendisse-o como a ultima expressão do Absoluto e recozeu-se ao sol de suas mercês acadêmicas. Seus inimigos cognominaram-no o “filosofo oficial”. Hegel começou a considerar o sistema hegeliano como parte das leis naturais do mundo, esquecido de que sua própria dialética lhe condenava as idéias a transitoriedade e ao declínio. “Nunca filosofia alguma assumiu tom assim elevado e nunca suas regias regalias foram tão plenamente reconhecidas e asseguradas, como em 1830”, em Berlim [*Paulsen, Emanuel Kant, pág.385].

Mas Hegel envelheceu rapidamente nesses ditosos anos. Tornou-se distraído; certa vez entrou na sala de aulas calçado com uma botina apenas, tendo deixado a outra, sem que desse por isso, na lama da estrada. Quando a epidemia do cólera chegou a Berlim em 1831, seu corpo enfraquecido foi um dos primeiros a sucumbir. Após um só dia de doença passou súbita e tranqüilamente, enquanto dormia. Assim como no espaço de um ano ocorreram os nascimentos de Napoleão, Beethoven e Hegel, também no lapso de 1827 a 1832 a Alemanha perdeu Goethe, Hegel e Beethoven. Foi esse o fim de uma época – os últimos arrancos do maior século da Alemanha.
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G.R