5 de abr. de 2010

O FAMOSO CÃO DE ATENAS


Diógenes era conhecido no século IV antes de Cristo como o ‘Cão de Atenas’. Embora a imagem de um homem-cão possa excitar a nossa fantasia, há uma filosofia razoável por trás disso. Por exemplo, você sabia que Diógenes foi o mais famoso filósofo grego da escola grega do Cinismo?

O nome ‘Diógenes’ tende a evocar principalmente a imagem de uma figura encapuzada, com uma lamparina, em vão tentando encontrar um homem honesto. Ele de fato gostava do papel de censor da moral ateniense e, dada a degeneração que ocorria em seu tempo, sua cruzada contra a corrupção ocupou a maior parte do seu pensamento e de sua energia ao longo de seus 89 anos.

A história de como Diógenes tenha se tornado tão cínico parece em parte uma novela. Primeiro que tudo, ele nasceu na cidade de Sinope, de pais pobres mas desonestos. Seu pai, que era cambista, era tão mal-afamado que os cidadãos de sua cidade natal o expulsaram juntamente com sua esposa e seu filho. Os três foram morar em Atenas, onde Diógenes passou ao elevado discipulado socrático e ascético de Antístenes. Ora, Antístenes, pela simplicidade de sua vida e seus ensinamentos, tinha grande influencia entre as classes mais pobres. Mas, no seu lado negro, ele tinha um temperamento terrível e cometia atos de violência física contra seus discípulos quando estes o desagradavam. Evidentemente, Diógenes ofendeu seu mestre em mais de uma ocasião e sofreu considerável brutalidade durante seus anos de discipulado.

Talvez tenha sido a falta de autocontrole de Antístenes que tenha dado ao termo ‘cínico’ sua aceitação popular, hoje em dia, como símbolo de mau humor e desprezo do ponto de vista dos outros. Segundo essa definição corrente, um cínico é uma pessoa que acredita que o comportamento humano é motivado, consciente ou inconscientemente, totalmente pelo interesse pessoal e satisfação egocêntrica. Mas se essa fosse toda a história, por que teria o CINISMO se mantido tão atraente para a imaginação humana? Pretendemos explicar isso mais adiante.

Um começo assim tão duro teria amargurado um homem de menos caráter do que Diógenes. Mas ele não era um homem comum!Como um supremo defensor da vida simples, ele s livrou de tudo o que considerava posse ‘desnecessária’. Isso incluiu o luxo de uma esposa e culminou com o abandono de sua cuia de mendicância. Mas Diógenes manteve seu caráter bem amadurecido, bafejando os outros com seu esquisito humor.

Como patrono dos cultos de retorno à natureza, Diógenes tinha uma singular solução para o problema de habitação. Ele se mudou para um grande tonel de vinho vazio que ficava no terreno do templo de Cibele e que tinha uma esplêndida localização na Ágora de e Atenas. Ali ele viveu,dia e noite, por muitos anos, observando tranqüilamente o movimento da Ágora. Em qualquer dia bonito, podia-se encontrá-lo tomando banho de Sol complacentemente, diante de seu enorme tonel, mastigando a sua frugal ração ou discorrendo com amigos e discípulos sobre o seu tema favorito: a insensatez dos gregos.

O desapego dinâmico praticado pelo nosso famoso CÍNICO impressionou tanto a Alexandre o Grande que este rei fez uma visita especial ao tonel. Mas foi recebido por Diógenes com mal disfarçada indiferença. Respondendo a uma bondosa oferta de Alexandre de fazer alguma coisa por ele, Diógenes replicou:” há uma coisa, sim, meu príncipe. Vossa Majestade pode se afastar um pouco para o lado, pois está entre eu e o Sol, e eu estou com frio’. Durante algum tempo, Diógenes e Alexandre o Grande mantiveram uma estranha correspondência. Certa vez Alexandre enviou-lhe uma cesta com velhos ossos, com uma nota dizendo: ‘estes ossos são apropriados para um cão’. Diógenes devolveu os ossos com uma outra nota:’estes ossos não são apropriados para um Príncipe enviar’.

Obviamente, nosso famoso CÍNICO foi cognominado o “Cão de Atenas” porque, como ele próprio o expressou, latia aos calcanhares dos ricos, rosnava e mostrava os dentes aos políticos, fungava ante filósofos pretensiosos, e recebia com gratidão elaboradamente pretendida os restos de comida que lhe eram atirados. Além disso, sua moradia parecia um canil!

Alexandre não foi a única personalidade importante que foi alvo da virtuosa ira de Diógenes, que criou também aversão a Platão, seu patrício e aristocrata rico de grande finura. Pelos padrões do Cinismo, todos os nobres sofriam de vaidade. Assim, na primeira oportunidade, Diógenes deliberadamente pisou num manto novo de veludo de Platão, numa poça de lama, dizendo maliciosamente: “assim eu piso o orgulho de Platão”. Mas, sem sinal de aborrecimento, Platão retrucou com um sorriso amável e a tranqüila resposta: “pois é, Diógenes, e como você está orgulhoso de ter feito isso”.

Dia após dia o velho Cínico sentava-se do lado de fora do seu tonel, sua austera fisionomia franzida numa reprovação simbólica, vociferando suas repreensões, quer as pessoas as escutassem ou não. Em muitas ocasiões, quando lhe perguntaram por que ele falava sozinho, Diógenes respondeu brincando que não resistia à tentação de conversar com uma pessoa inteligente. Mas em certa memorável ocasião, um solilóquio evidentemente não foi o bastante para satisfazê-lo. Seguindo o impulso de sua musa predileta, Diógenes começou a fazer um discurso de grande profundeza. Continuou a falar por algum tempo, mas acabou percebendo que ninguém tinha parado para escutar suas palavras, de modo que sua fragrância intelectual estava sendo desperdiçada no vazio do ar.

Ajustando-se àquela emergência, Diógenes suspendeu sua dissertação e começou a cantar uma melodia popular de maneira desafinada. Deu alguns passos de dança grotescos, saltitando como um passaro desajeitado. Uma grande multidão logo se formou em frente ao seu tonel. Diógenes, então, parou de cantar e, em altos brados, xingou os espectadores de tolos que não tinham faro para fragrâncias espirituais e que só tinham ouvidos e olhos para dissonâncias inúteis e atos bobos. Depois, deu as costas para a multidão e voltou à sua solidão.

Numa outra ocasião, um admirador deu a Diógenes um frasco com óleo aromático que os aristocratas usavam para ungir a cabeça, mas, contrariando o costume, Diógenes sentou-se no chão e ungiu seus pés. E como a vida particular de Diógenes era pública, devido à maneira como ele vivia, um transeunte perguntou: “por que, Mestre dos Cães, você fere o costume e passa o óleo nos pés, em lugar da cabeça?” O velho CÍNICO retrucou rindo marotamente: “Se eu ponho o óleo no topo da minha cabeça, o perfume se evolta para cima e se perde no ar; e se eu o ponho nos pés, ele se eleva para minhas narinas e deleita minha alma”.

Depois de ter concedido suas atenções às necessidades dos atenienses durante muito anos, Diógenes resolveu viajar para lugares distantes e quis o destino que seu navio fosse capturado por piratas e ele fosse vendido no mercado de escravos de Creta. Consta que, enquanto aguardava o leilão, perguntaram-lhe qual era sua profissão e ele respondeu: “não tenho profissão além de dirigir homens. Gostaria de ser comprado por alguém que quisesse, não um escravo, e sim um mestre”. Graças a isto, a vida doméstica de Diógenes mudou. Ele foi comprado por um cidadão sábio que o nomeou tutor de seus filhos, de modo que o grande Cínico ficou em Corinto pelo resto de sua longa vida. Não obstante, sua reputação como o “Cão de Atenas” persistiu, assim como sua fragrância intelectual. Os Coríntios passaram a amar tanto aquele velho excêntrico que, quando ele morreu, erigiram m sua memória uma bela coluna de mármore com a figura de um cão agachado.

Agora que já consideramos as idiossincrasias do nosso “Cão Cínico, desfrutando seu forte humor, que foi que realmente fez a fama de Diógenes durar mais de 2.000 anos? Que há nos seus ensinamentos que intriga os filósofos de hoje?

Os antigos Cínicos acreditavam que o estudo das várias artes e ciências acadêmicas fazia os homens ficarem tão fascinado com esses objetivos intelectuais que eles ignoravam os problemas vitais de seu próprio caráter. Dissertando sobre este assunto, Diógenes disse: “eu sempre me admirei dos gramáticos que, pesquisando os infortúnios de Ulisses, esquecem os seus; dos músicos que, enquanto afinam seus instrumentos, tem sentimentos dissonantes em sua alma; dos matemáticos que, contemplando o Sol e a Luz, negligenciam o que está a seus pés; dos oradores que, proficientes em falar de coisas justas, esquecem de agir em conformidade com elas; e de pessoas gananciosas que gastam publicamente um dinheiro que na verdade amam acima de tudo”.

A alusão aos matemáticos que negligenciavam o que está a seus pés foi uma referência a um incidente na vida do filósofo Tales, o qual é bem conhecido. Certa noite, Tales ficou tão absorto em contemplar a Lua que caiu numa vala cheia de lama. Ele adorava contar essa história, para lembrar aos seus discípulos que “homens sábios têm de manter um olho na terra, mesmo quando o outro está focalizado em assuntos celestiais.”

Há muito que se dizer em favor da atitude do Cinismo quanto às falácias da educação, naquela época como hoje em dia. Em geral, a educação continua a mascarar o problema supremo da vida, que é o auto-aprimoramento. Só podemos aprender aquilo que já sabemos ‘interiormente’. Portanto, o fracasso em desenvolver a vida interior faz a educação formal resultar em nada.

Embora a vida de Diógenes pareça exaltar a pobreza, sua doutrina não era tanto de ênfase na privação extrema como de libertação da fixação de acumular bens, que,então como agora, domina a média das pessoas. Ele compreendeu e perpetuou o conceito socrático de que a felicidade tem de ser conquistada pela obediência à lei natural. Por outro lado, os antigos Cínicos de fato demonstravam pouca paciência com as boas maneiras sociais, eram muitas vezes acusados de serem incultos e, em alguns casos, eram realmente incivilizados. Cínicos posteriores mudaram esse extremismo.

Não obstante, qualquer extremismo injustificado tende a ofuscar o tema principal, que era o de evitar a aceitação das boas maneiras sociais como substituto para a integridade pessoal. O exemplo horrível dos Cínicos era o patife elegantemente culto e educado, que era aceito por seus modos mas na realidade não tinha nenhuma das virtudes fundamentais como apoio para seu polido exterior. Para os antigos Cínicos, esse tipo de sofisticação velava as fraquezas da vida moral e intelectual do homem, enquanto a tradição impunha limitações insensatas e muitas vezes destrutivas à perspectiva humana.

Por outro lado, Diógenes teria estado justificado em discordar de Epicteto, cuja definição doutrinária de Cinismo era “a ginástica da retidão pessoal”. Diógenes sabia que o Cinismo não é basicamente uma doutrina de condenação negativa. Trata-se antes de uma doutrina que objetiva ajudar o indivíduo a extirpar as más motivações de seu próprio interior. A primeira filosofia dos Cínicos teve raízes nas doutrinas de Sócrates, mas acrescentou um passo de enorme importância no pensamento humano: o auto-reconhecimento de que somos uma unidade moral no nosso sistema social, de modo que a preservação ou destruição desse sistema torna-se nossa responsabilidade pessoal.

A doutrina da responsabilidade pessoal, proposta pelos Cínicos, teve um efeito de longo alcance. Ela ainda é a base do melhor e mais honesto pensamento da nossa época. Essa doutrina requer que cada pessoa reconheça a si mesma como a causa de sua própria felicidade e seu infortúnio e que aceite a si mesma como um fator participante e dinâmico na preservação ou destruição da trama de seu sistema social. Estudantes sinceros sabem que o autodomínio e a responsabilidade social são os fatores irritantes da psique, e Diógenes era um irritador por excelência. No entanto, o velho Cínico era no íntimo um homem paciente e bondoso que nunca deixava de ajudar àqueles que recorriam a ele com seus problemas. Ele era um psicólogo popular o suficiente para saber que uma livre confissão fazia bem à alma. E achava também que escutar era um esplêndido meio de aprender.

Embora Diógenes muitas vezes criticasse os dogmas religiosos dos pagãos, ele era profundamente espiritual, acreditando nos deuses e em sua Musa pessoal, aquilo que muitas vezes chamamos de Mestre Interior. Achava ainda que os deuses tinham um senso de humor altamente desenvolvido, pois só um humor do mais alto nível podia ter criado o ser humano como uma caricatura da natureza divina. Diógenes ensinava que as divindades tinham também concedido a suas criaturas algo de seu divino humor, a fim de que os homens pudessem comprazer uns com os outros com um gosto pelo absurdo verdadeiramente jovial.

Mas o velho Cínico não passou sem uma ocasional queixa pessoal. Certa vez ele sofreu uma forte dor no ombro e queixou-se tanto desse incômodo que um estranho, ouvindo-o e não sentindo nenhuma compaixão sugeriu: “seria uma boa idéia que você morresse e assim se livrasse do seu sofrimento”. Diógenes replicou indignado: “não. A finalidade da existência é pôr a vida em ordem, de modo que não é correto que eu morra de alguma dor, e sim que, tendo superado a dor, eu morra como recompensa.

Entre os pagãos esclarecidos, a morte não era encarada como um desastre e sim como algo a ser desejado na plenitude do tempo. Os Cínicos compartilhavam com outras seitas gregas uma participação comum na tradição órfica – a imortalidade da alma, a metempsicose ou renascimento, e a perfeição final da natureza humana pela periódica reincorporação no estado físico. A força de sua crença superava todo medo da morte, que era encarada como uma aventura num novo estado de ser.

Como se pode ver, o uso atual do termo ‘cínico’ perverteu uma idéia básica. É um equivoco popular que o CINISMO é realmente uma doutrina de condenação negativa dos outros, ou a ‘ginástica da retidão pessoal’. Pelo contrário, o verdadeiro CINISMO nos ensina a extirparmos nossas más motivações do nosso próprio interior, de modo a alcançarmos a iluminação; portanto, o cínico radical de nosso século não é um iluminado, e sm desiludido. A desilusão persegue também aqueles que perdem a fé nas integridades subconscientes que sustentam o mundo e, com esta atitude, essas pessoas corrompem a si mesmas e também à sociedade.

Diógenes ensinava que o mundo é na verdade bom e que os deuses dirigiam suas criaturas com sabedoria, compreensão, paciência e humor. Eram os seres humanos que falhavam subjetivamente aos deuses, vivendo suas próprias realidades individuais de um modo indigno de sua divina origem e seu heróico destino. Não se contentando em fazer azedas observações sobre a insensatez dos gregos, a ridicularização que Diógenes fazia era sempre acompanhada de remédios construtivos. Ele procurava fortalecer a consciência social, estimular em pessoas reflexivas um impulso superior para o seu próprio aprimoramento. Por outro lado, o cínico moderno não tem essa base filosófica e se satisfaz em criticar e condenar. Hoje em dia, aqueles que estão mais insatisfeitos são os que menos tem a oferecer em remédios, para não falar em formas de bondade ou tolerância.

Concluindo, os antigos Cínicos eram um grupo reacionário que pouco tinha em comum com o espírito de rebelião de hoje. Quatro séculos antes do Mestre Jesus, os Cínicos representaram uma reação extremada à extravagância e à dissipação de muito atenienses cujo estilo de vida era uma grande ofensa às classes mais pobres. Diógenes tornou-se o espírito propulsor e o principal porta-voz das massas descontentes. Seu remédio para a maré enchente da corrupção ateniense era o retorno à vida simples e à autodisciplina. Ele não era socialista no sentido em que entendemos esse termo hoje em dia; sua depreciação de toda a teoria da riqueza vinha de profundas convicções religiosas e filosóficas. Diógenes defendia e praticava a evolução individual do caráter, ao invés de revolução de massa contra os deuses, a igreja, ou o estado.

Para ousarmos viver nossas próprias maiores convicções diante de idéias que não são mais apropriadas – quer se trate de ciência, religião ou filosofia – é preciso um fino discernimento, além de coragem para lançar idéias na agitação de um mercado. Diógenes tinha essa coragem e esta é mais uma razão para ele ter sobrevivido até o nosso século. Como extremista, ele viveu uma vida de cachorro. Mas devemos lembrar que ele era também iluminado por uma filosofia de caráter divino. Embora representasse a superação de costumes e idéias obsoletos, Diógenes – como Anúbis, o deus de cabeça de cão – representou também o processo de ressurreição do futuro Alvorecer.

Os filósofos podem reconhecer alguns conceitos básicos e, assim, o verdadeiro CINISMO continua a acrescentar sua fragrância à Rosa.

[Texto de Burnam Schaa]