23 de set. de 2009

FILOSOFIA [Will Durant]


Existe um atrativo na filosofia, e mesmo nas miragens da metafísica, que sentem todos os que as versam, até que as brutais necessidades da existência material os arrebatem das altitudes do pensamento, lançando-os na feira da competência econômica e na sede de ganho. A maioria dentre nós conheceu alguns áureos dias, no junho de nossa existência, quando a filosofia nos era de fato como Platão a chama: “ o querido passa-tempo“, quando o amor de uma verdade timidamente esquiva se figurava incomparavelmente mais glorioso do que o anseio dos prazeres materiais e as fezes do mundo em que vivemos. E sempre perdura em nós um resíduo desse temporão desejo da sabedoria. “ A vida tem uma significação e o meu dia a dia é procurá-la”, já disse Browning. Tantas de nossas existenciais são destituídas de significação, não passam de vacilações e inutilidades auto-destuidoras; lutamos com o caos em torno e do interior de nós, mas acreditamos, todo esse tempo, na existência de algo vital e significativo em nós, que descobriríamos se pudéssemos decifrar nossas próprias almas. Queremos compreender; “ a vida significa para nós transformar constantemente em luz e flamas tudo o que somos ou o que nos depara” [ Nietzsche, A Gaia Ciência, pref];semelhamo-nos a Mitya em os Irmãos Karamazov _ Um daqueles que não querem milhões e, sim, respostas as suas perguntas”;desejamos aprender o valor e a perspectiva das coisas transitórias, e deste modo livramos do maelstrom das vicissitudes diárias. Queremos o saber que as pequenos coisas são pequenas, e as grandes são grandes _ e isso antes que seja muito tarde; queremos ver as coisas agora como elas nos aparecerão sempre _ “ à luz da eternidade “. Queremos aprender a gargalhar em face do inevitável e, sorrir, mesmo no limiar da morte. Queremos ser tudo e coordenar nossas energias criticando e harmonizando nossos desejos, pois energia coordenada é a ultima palavra em ética e em política e talvez na lógica e na metafísica também. “ Ser filosofo”,escreveu Thoreau,” não consiste meramente em ter sutis pensamentos, nem no fundar uma escola, mas em amar a sabedoria tanto quanto a própria existência, e acomodar esta aos ditames daquela, numa vida simples, independente, magnânima e confiante”. Poderemos estar seguros de que se descobrirmos a sabedoria, toas as mais coisas se reunirão dentro de nós. “ Procura primeiro as boas coisas do espírito”, exorta-nos Bacon, “ que o resto será suprido ou não sentiremos sua falta” [ De Aumentis Scientarium, VIII, 2]. A verdade não nos tornará ricos, mas nos libertará.
Algum leitor maldoso nos deterá nesse ponto informando-nos que a filosofia é tão inútil como o jogo de xadrez, tão obscura como a ignorância, e de conteúdo estacionário. “ Nada existe de absurdo”,disse Cícero, “ que não se possa encontrar nos livros dos filósofos”. Não há duvida de que alguns filósofos tiveram toda a espécie de sabedoria, a exceção de senso comum, e de que muitos surtos filosóficos foram devidos ao poder ascensional do ar rarefeito. Resolvamos, nesta nossa viagem, apenas abicar nos portos onde haja luz, arredando-nos das correntes lamacentas da metafísica e dos “ mares multissonos” das disputas teológicas. Mas é a filosofia estacionária? Todas as ciências parecem progredir, ao passo que se figura estar ela sempre a perder terreno. Mas dá-se isso unicamente porque a filosofia aceita a árdua e aventurosa tarefa de debater problemas ainda não abertos aos métodos científicos – problemas como o do bem e do mal, do belo e do feio, da ordem e da liberdade, da vida e da morte;apenas um campo de instigações fornece conhecimentos susceptíveis de formulação exata, passa a chamar-se ciência. Cada ciência começa como filosofia e termina como arte; surge como hipótese e remata em realizações. A filosofia é a interpretação hipotética do desconhecido ( como na metafísica ) ou do inexatamente conhecido ( como na ética ou na filosofia política ); é a trincheira da frente no cerco da verdade. A ciência é o terreno conquistado; e atrás deste ficam aquelas seguras regiões onde o conhecimento e a arte constroem nosso mundo imperfeito e maravilhoso. A filosofia parece estacionar, perplexa; mas é unicamente porque abandona os frutos da vitória às ciências, suas irmãs, e passa avante, divinamente descontente, para o incerto e inexplorado.
Devemos empregar linguagem mais técnica? Ciência é descrição analítica e filosofia interpretação sintética. A ciência quer verter o todo em partes, o organismo em órgãos, o obscuro em claro. Não cogita valores e possibilidades ideais das coisas, nem de sua significação total e final;contenta-se de mostra-las em sua atuação no presente e focaliza resolutamente a atenção na natureza e no processo das coisas tais como são. O cientista é tão imparcial como a natureza na poesia de Turgueneff:tanto se interessa pela perna de uma pulga como pela angustia criadora de um gênio. Mas o filosofo não se satisfaz com descrever o fato;quer apreender sua relação com a realidade das coisas em geral e por esse meio alcançar sua significação e valia; combina os fatos em sínteses interpretativas; experimenta entrosar, melhor do que antes, as peças do grande relógio do universo, as quais o cientista investigador já examinou separadamente. A ciência nos ensina como curar e como matar; reduz o varejo o coeficiente da mortalidade e depois mata por atacado na guerra; mas só a sabedoria – desejos coordenados à luz de toda a existência – pode dizer-nos quando se deve curar ou matar. Observar os processos e construir meios é ciência; criticar e coordenar os fins é filosofia; e como nestes dias nossos meios e instrumentos multiplicaram até além de nossa interpretação as sínteses, os ideais e os fins, nossa vida se encheu de estrepito e agitação sem significação alguma. Pois um fato nada é, exceto m sua relação com o desejo; ele não é completo a não ser em relação a uma finalidade e a um todo. A ciência sem filosofia, os fatos sem a perspectiva e a compreensão dos valores, não nos podem salvar da ruína e do desespero. A ciência dá-nos o conhecimento, mas somente a filosofia pode conferir a sabedoria.
Considerada mais detidamente em sua significação, a filosofia abrange cinco domínios: a lógica, a estética, a ética, a política e a metafísica.
 A lógica é o estudo do método ideal de pensar e investigar: observação e introspecção, dedução e indução, hipótese e experimentação, analise e síntese – tais são as formulas da atividade humana que a lógica procura compreender e orientar;é um estudo enfadonho para a maioria dentre nós, e no entanto os grandes acontecimentos da historia do pensamento são os aperfeiçoamentos conseguidos pelos homens em seus métodos de pensar e pesquisar.
 A Estética é o estudo da forma ideal ou da beleza;é a filosofia da arte.
 A Ética é o estudo do procedimento ideal; o mais alto conhecimento, disse Sócrates, é o do bem e do mal, o da sabedoria no viver.
 A Política é o estudo da organização social ideal( e não, como se poderia supor, a arte e a ciência de obter e conservar cargos publicos); a monarquia, a aristocracia, a democracia, o socialismo, o anarquismo, o feminismo – são estas as dramatis personae da filosofia política.
 E, por fim, a Metafísica ( que encontra tantos embaraços por não ser, como as outras formas da filosofia, uma tentativa para coordenar o real a luz do ideal) é o estudo da “ ultima realidade” de todas as coisas: natureza real e final da “matéria” ( ontologia), do “ espírito “ (psicologia filosófica) e da correlação do “ espírito “ e da “ matéria “ nos processos da percepção e do conhecimento ( epistemologia).

São estas as partes da filosofia; mas assim desmembradas perdem sua beleza e interesse. Nós aqui buscaremos, não com sua carranca abstrata e formalista, mas entrajada na forma viva do Gênio; não estudaremos meramente filosofia e sim, filósofos; passaremos nosso tempo em companhia dos santos e mártires do pensamento, deixando seu radioso espírito envolver-nos até que talvez, de certo modo, participemos daquilo que Leonardo denominou “ o mais nobre prazer, a alegria de compreender”. Cada um desses filósofos terá para nós sua lição, se deles nos aproximarmos convenientemente. “ Conhece”, inquire Emerson, “ o segredo do verdadeiro estudioso? Cada homem tem algo que eu possa aprender com ele; e sob este ponto de vista serei seu discípulo”. Pois bem! Assumiremos esta nobre atitude perante os espíritos culminantes da historia, sem ofensa para nosso orgulho! E sentir-no-emos lisonjeados com a outra reflexão de Emerson, de que, quando ouvirmos as palavras de um Gênio, vem-nos uma reminiscência sobrenatural de termos concebido, nós próprios, vagamente em nossa remota adolescência, aquele mesmo pensamento a que o Gênio agora se refere, sem que, todavia, tivéssemos tido a arte ou a coragem de revesti-lo de forma e expressão. E em verdade os grandes homens falam conosco unicamente quanto temos ouvidos e alma para ouvi-los; unicamente quando existem em nós pelo menos as raízes daquilo que floresce. Tivemos também a experiência que eles tiveram, mas não extraímos dessa experiência o seu segredo e sutil significação: não fomos sensíveis aos sons harmônicos da realidade que zoaram junto a nós. O gênio ouve esses sons quase imperceptíveis, como a musica das esferas; o gênio sabe que Pitágoras quis dizer ao afirmar que a filosofia é a mais bela das musicas.
Ouçamos, por conseqüência, esses homens dispostos a perdoar seus passageiros erros e ávidos de aprender as lições que ansiosamente eles desejam ensinar. “ Sê ponderado “, disse Sócrates, já velho, a Criton, “ e não te preocupes com que sejam bons ou maus os mestres de filosofia, e, sim, pensa unicamente na própria filosofia. Esforça-te por examiná-la bem e sinceramente. Se for má, procura arredar dela todos os homens, mas se for o que acredito que ela é, segue-a, então, e serve-a e regozija-te”.
G.R



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