O primeiro grande mérito que singulariza Aristóteles é que, quase sem precursores, quase completamente por sua aturada reflexão, criou uma ciência nova – a LÓGICA. Renan [1]Historia do Povo de Israel, vol, V, pág.38, refere-se a “má educação do espírito que não se pautou, direta ou indiretamente, pela disciplina grega”; mas a verdade é que a inteligência grega era indisciplinada e caótica até as inflexíveis formulas de Aristóteles fornecerem um meio pronto de por em prova e corrigir o raciocínio. O próprio Platão [se é possível semelhante suposição a um seu adorador] era espírito insubmisso e desregrado, subvertido muitas vezes nas brumas do mito e deixando a beleza velar, com excessiva opulência, a face da verdade. O mesmo Aristóteles, conforme veremos, violou flagrantemente seus próprios cânones, mas então ele era o produto de seu passado e, não, do futuro que seu pensamento iria criar.
A decadência política e econômica da Grécia acarretou o depauperamento do espírito e caráter helênicos, depois de Aristóteles; mas quando uma nova raça, após um milênio de trevas bárbaras, teve outra vez lazeres e capacidade para especulações filosóficas, foi o “Organon’ da Lógica traduzido por Boecio [470-525 E.C] que se converteu em molde para o pensamento medieval, em mãe legitima daquele filosofar escolatisco que, embora tornado estéril pelos dogmas constritores, ensinou e compeliu a inteligência da jovem Europa a raciocinar e subtilizar idéias, edificou a terminologia da ciência moderna e assentou as bases da maturidade de espírito que ia expandir-se e derrocar o próprio sistema e os próprios métodos que lhe deram origem e fortaleza.
Lógica significa, simplesmente, a arte e o método de pensar com acerto. È a lógica ou método de todas as ciências, disciplinas e artes; a própria musica a admite. Ela é uma ciência, porque em considerável extensão o processo de pensar exatamente pode ser reduzido a leis semelhante as da física e geometria e ensinado a todo espírito normal; é uma arte porque com a pratica dá, por fim, ao pensamento aquela inconsciente e viva perícia que faz os dedos do pianista tirar, em esforço, harmonias do teclado. Nada é tão enfadonho como a lógica e, nada, tão importante.
Neste nova ciência encontram-se vestígios da terrível insistência de Sócrates sobre as definições e do habito de Platão de apurar cada conceito. O pequeno tratado de Aristóteles sobre Definições mostra quanto sua lógica se abeberou nesta fonte. “Se quiserdes discutir comigo – disse Voltaire – define primeiro vossos termos”. Quantas controvérsias se reduziriam a um parágrafo,s e os antagonistas se atrevessem a defini-los! O alfa e o Omega da lógica, sua própria alma, é que todos os termos importantes de uma exposição sejam submetidos a exame e definição mais rigorosa. É difícil e fatigante para o espírito; mas, feito isso, tem-se meio caminho andado.
Como procederemos para definir um objeto ou um termo? Aristóteles responde que toda a boa definição se compõe de duas partes, mantem-se sobre dois sólidos pés: primeiro, inclui o objeto em questão em uma classe ou grupo cujos caracteres gerais são também os seus – assim, o homem é, antes de tudo, um animal. Em segundo lugar, indica por que o objeto difere de todos os outros membros de sua classe – por isso, o homem, no sistema de Aristóteles, é um animal racional; sua diferença especifica que o extrema de todos os outros animais é ser racional [disto se originou interessante lenda].
Aristóteles mergulha um objeto no oceano de sua classe e em seguida retira-o embebido de sua significação genérica, com os característicos de sua família ou de seu grupo; quanto a sua individualidade e diferença, sobressaem mais claras com as justaposição a outros objetos que tanto se lhe assemelham e tanto dele diferem.
Deixando a retaguarda da lógica, avencemos até o grande campo de batalha em que Aristóteles cruza armas com Platão sobre a temerosa questão dos ‘universais’; foi a primeira escaramuça de uma guerra que se prolongou até nossos dias, e fez em toda a Europa medieval soar o estrepido dos ‘realistas’ e dos ‘nominalistas’. [1]Foi referindo-se a este debate que Friedrich Schelegel disse: “Cada homem nasce platônico ou aristotélico” (em Benn, I, 291). Um universal, para Aristóteles, é qualquer nome comum, qualquer nome capaz de aplicação universal a todos os componentes de sua classe: assim animal, homem, livro, arvore, são universais. Mas estes universais são noções subjetivas e, não, realidades objetivas tangíveis; são nomima [nomes] e não res [coisas]; tudo o que existe fora de nós é um mundo de objetos individuais e específicos, e não coisas genéricas e universais; existem homens, arvores e animais; mas o homem em geral, ou o homem universal, não existe a não ser no pensamento; é uma abstração mental cômoda e não uma presença exterior ou realidade.
Ora, Aristóteles compreendeu ter Platão sustentado que os universais tem existência objetiva; e de fato Platão afirmou que o universal é incomparavelmente mais duradouro e importante e substancial que o individual – sendo, este ultimo, leve ruga num mar perenemente revolto; os homens vêm e vão-se, mas o homem perdura eternamente. Aristóteles era um espírito pratico; espírito rijo, como diria William James; e vê a raiz do inesgotável misticismo e dos disparates escolásticos naquele “realismo” platônico; e ataca-o com todo o vigor de uma primeira polemica. Do mesmo modo que Bruto não amava menos a César do que a Roma, também Aristóteles diz: Amicus Platô, sed magis amica veritas – “Amemos a Platão, porém amemos mais a verdade”.
Algum comentador hostil poderia observar que Aristóteles [assim como Nietzsche] critica tão vivamente a Platão por ter consciência do muito que lhe tomou de empréstimo; nenhum homem é herói para os seus devedores. Mas Aristóteles assumiu uma atitude salutar; ele é quase um realista no sentido moderno; cingiu-se ao objetivo presente, ao passo que Platão se absorvia num subjetivo futuro.
Existia, na exigência socrático-platonica de definições, uma tendência para trocar as coisas e os fatos pelas teorias e idéias, os particulares pelas generalidades, a ciência pelo escolasticismo: “Platão, por fim, tornou-se tão dedicado as generalidades, que estas começaram a determinar os seus particulares, e tão dedicado as idéias que estas começaram a definir ou a selecionar seus fatos. Aristóteles prega o retorno as coisas, a ‘imarcescivel face da natureza’ e a realidade; tinha ele forte preferência pelo concreto particular, pelo individuo de carne e osso. Platão amava tanto o geral e o universal que na Republica destruiu o individuo para criar o estado perfeito.
Também a ironia da historia faz-nos comumente ver o jovem guerreiro adquirir muitas das qualidades do velho senhor a quem acomete. Temos sempre em nós grande provisão daquilo que condenamos: como só as coisas similares podem ser contrastadas com proveito, somente as pessoas similares se hostilizam; as mais encarniçadas guerras foram incitadas por mínimas divergências de intuitos ou crenças. Os cavaleiros cruzados encontraram em Saladino um gentil-homem com quem podiam contender amistosamente; mas quando os cristãos da Europa se dividiram em campos contrários, não houve mais quartel para o mais cortes adversário.
Se Aristóteles é tão implacável com Platão, é por nele haver muita coisa de Platão; também continua a amar as abstrações e as generalidades, traindo freqüentemente essa tendência com alguma teoria especiosamente brilhante e demonstrando um esforço continuo para dominar sua paixão pelas especulações transcendentais.
Há disto um traço bem acentuado na mais característica e original das contribuições filosóficas de Aristóteles – a doutrina do silogismo. Um silogismo é uma trindade de proposições das quais a terceira [a conclusão] emana da verdade admitida nas outras duas [as premissas ‘maior’ e ‘menor’]. Exemplo: O homem é um animal racional; Sócrates é um homem; logo, Sócrates é um animal racional. O leitor matemático verá imediatamente que a estrutura do silogismo se assemelha a proposição: duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si. Se A é B, e C é A, conclui-se que C é B. Como no caso matemático obtêm-se a conclusão cancelando-se nas premissas seu termo comum A, assim em nosso silogismo alcança-se a conclusão cancelando-se em ambas as premissas seu termo comum ‘homem’ e combinando o que resta. A dificuldade, como os lógicos o indicaram desde os tempos de Pirro até os de Stuart Mill, está na circunstancia de que a premissa maior do silogismo admite precisamente como verdadeiro o ponto que necessita ser provado; pois se Sócrates não for racional [ninguém põe em duvida que ele seja um homem] não é universalmente verdade que o homem seja um anima racional.
Aristóteles replicaria que quando um individuo possui grande numero de qualidades características de uma classe [Sócrates é um homem] forte presunção se estabelece de que esse individuo tem as outras qualidades características dessa classe [racionalidade]. Mas aparentemente o silogismo não é tanto um mecanismo para a descoberta da verdade como o é para a clareza da exposição da idéia.
Tudo isto, bem como outros muitos pontos do “Organon”, tem seu valor. “Aristóteles descobriu e formulou todos os cânones da congruência teórica e todos os artifícios das discussões dialéticas com uma habilidade e argúcia que nunca se poderá louvar em excesso; e seu labor, nessa direção, contribuiu mais do que o de qualquer outro escritor isolado para o estimulo intelectual dos outros séculos”. [1]Benn, I, 307. Mas a nenhum homem que haja até agora existido a lógica não afinou grandemente o raciocínio; um manual que ensine a racionar corretamente é tão educativo como um tratado de etiqueta; pode este ser-nos útil, porém dificilmente nos conferirá nobreza. Nem mesmo o mais arrojado filosofo decantaria arroubadamente sua utilidade. Com relação a lógica, todos se portam como Virgilio mandou Dante proceder ante os que foram condenados por sua neutralidade incolor: Non ragionam dilor, ma guarda e passa [1] – Inferno, III, 60 – “Não reflitamos sobre eles; olha e passa”.