5 de mar. de 2011

A Obra de Aristóteles

Não era difícil ao professor do reis dos reis encontrar discípulos, mesmo em cidade tão hostil com Atenas. Quando, coma idade de cinqüenta e três anos, Aristóteles criou o Liceu, tantos estudantes afluíram, que se fez mister organizar regras complicadas para manter a ordem. Os próprios estudantes estabeleciam essas regras, elegendo, de dez em dez dias, um dos seus colegas para dirigir a escola. Não se pense, porém, que lá reinasse disciplina rígida; ao contrario – as cenas cujas descrições chegaram até nós são de estudantes a tomar em comum as refeições com o mestre e a aprender com ele enquanto passeavam ao longo do campo atlético, do qual o Liceu tomou o nome. [1]O passeio chamava-se Peripatos; daqui proveio mais tarde o nome Escola Peripatetica. O campo atlético fazia parte do terreno do templo de Apolo. Liceu – o protetor dos rebanhos contra os lobos [lycos].

A nova escola não era simples imitação da platônica. Na Academia cuidava-se precipuamente de matemática e da filosofia especulativa e política, e o ensino do Liceu tendia mais para a biologia e ciências naturais. A dar-se fé a Plínio [2] His.Nat.VIII, 16; em Lewes, Aristóteles, um capitulo da Historia da Ciência, Londres, 1864, pág.15, Alexandre deu ordem a seus caçadores, guarda-caças, jardineiros e pescadores para que fornecessem a Aristóteles todos os espécimes zoológicos e botânicos que ele desejasse; narram-nos outros escritores antigos que certa ocasião tinha ele mil homens ao seu serviço, espalhados pela Grécia e Ásia, a reunirem-se exemplares da flora e fauna de todos os paises. Com esse farto abastecimento, estava em condições de criar o primeiro grande jardim zoológico do mundo. Seria fácil compreender a influencia dessa coleção sobre sua ciência e filosofia.  

Onde conseguiu Aristóteles fundos para custear tais trabalhos? Ele próprio, a esse tempo, já era homem de vultuosos rendimentos e, casando-se, aquinhoara da fortuna de um dos mais poderosos soberanos gregos. Ateneu [sem duvida com algum exagero] relata-nos que Alexandre deu a Aristóteles, para materiais e pesquisas físicas e biológicas, a quantia de 800 talentos, equivalente a cerca de quatro milhões de dólares [3]Grant, Aristóteles, Edimburgo, 1877, pág.18.

Pensam alguns que, por sugestão de Aristóteles, Alexandre enviou dispendiosa expedição a explorar as nascentes do Nilo, com o fim de descobrir as causas de suas inundações periódicas. [4] A expedição relatou que as inundações eram devidas a fusão da neve nas montanhas da Abissínia.

Obras, como o digesto de 158 constituições políticas, organizadas por Aristóteles, sugerem um grande corpo de auxiliares e secretários. Em suma – temos aqui pela primeira vez na historia européia o exemplo do erário publico custear trabalhos científicos em grande escala. Que tesouros de conhecimentos não auferiríamos se as nações modernas financiassem as investigações nessa escala relativamente considerável!

E faríamos injustiça a Aristóteles não mencionando as limitações quase fatais de aparelhagem coexistentes com esses recursos e essas facilidades sem exemplo. Ele era forçado ‘a calcular o tempo sem o relógio; a comparar graus sem o termômetro; a observar o céu sem o telescópio; e o estado do tempo sem o barômetro... De todos os nossos instrumentos matemáticos, óticos e físicos, só dispunha da régua e do compasso, e de imperfeitissimos substitutos de alguns outros. Analise química, as pesagens e medidas exatas e a perfeita aplicação da matemática a física eram desconhecidas. A atração da matéria, a lei da gravitação, os fenômenos elétricos, as condições das combinações químicas, a pressão do ar e seus efeitos, a natureza da luz, do calor, da combustão, etc., todos os fatos, em suma, em que se baseiam as teorias físicas da ciência moderna estavam totalmente ou quase totalmente por se descobrir”.

Veja-se aqui como as invenções influem no mundo: por falta de um telescópio, a astronomia de Aristóteles é um tecido de historias infantis, e a mingua de um microscópio sua biologia erra em constantes extravios. Foi, em verdade no terreno das invenções industriais e técnicas que a Grécia se mostrou muito abaixo do nível geral de seu progresso sem precedentes. O desdém dos gregos pelos trabalhos manuais resultava de que apenas escravos indiferentes se mantinham em contato com os processos da produção, e é esse estimulante contato com os maquinismos que revela defeitos e prefigura possibilidades; a invenção não seria possível aqueles que nela não tinham nenhum interesse. A barateza dos escravos retardava o desenvolvimento das invenções; os músculos eram menos caros que as maquinas.

E, dessa forma, enquanto o comercio grego conquistava o Mar Mediterrâneo e a filosofia grega conquistava o espírito mediterrâneo irradiando-se pelas outras nações, a industria grega permanecia quase egeia dos tempos em que os gregos invasores a aprenderam em Canossa, em Tirinto e Micenas, mil anos antes. Sem duvida temos aqui a razão por que Aristóteles tão raramente recorre a experiência: aparelhos para experiências ainda não existiam; e o melhor que tinha a fazer era dedicar-se a uma universal e continua observação. Não obstante, o grande volume de dados por ele e seus auxiliares coligidos tornou-se o alicerce do progresso da ciência, o livro do saber para dois mil anos – verdadeira maravilha do trabalho humano.

Contam-se por centenas de obras escritas de Aristóteles. Alguns escritores antigos atribuem-lhe a autoria de quatrocentos volumes e, outros, de um milheiro. Resta-nos apenas parte, que mesmo assim constitui uma biblioteca, fazendo-nos conceber o escopo e a grandeza do conjunto. Vem, primeiramente, as obras sobre lógica: “Categorias”, “Tópicos”, “Analise a priori” e “a posteriori”, “Proposições”, e “Refutação dos Sofistas”; estes trabalhos foram depois reunidos e editados pelos peripateticos sob o titulo geral de “Organon” de Aristóteles, isto é, o órgão ou o instrumento para o correto pensar. Em segundo, vem os livros científicos: “A Física”, “Sobre o Céu”, “Crescimento e Decadência”, “Metereologia”, “Historia Natural”, “Sobre a Alma”, “As partes dos Animais”, “Os movimentos dos Animais”, e “A geração dos Animais”. Em terceiro, estão as obras de estética: “Retórica” e “Poesia”. E em quarto, as obras mais estritamente filosóficas: “Política” e “Metafísica”. [1]Esta, ao que se sabe, é a ordem cronológica [Zeller, I, 156, e segs] Nossa discussão seguirá esta ordem, exceto no caso da Metafísica.

Temos aqui, evidentemente, a Enciclopédia Britânica da Grécia; todos os problemas sobre coisas existentes abaixo e em torno do solo encontram ai o seu lugar~; não admira, pois, que haja mais erros e absurdos em Aristóteles do que em qualquer outro filosofo que tenha escrito livros. Vê-se aqui uma síntese de conhecimentos e teorias como  não houve igual até os tempos de Spencer, e nenhuma de tanta grandiosidade. Esta foi, realmente, mais que a efetuada pelas vitórias brutais e efêmeras de Alexandre, a conquista do mundo. Se filosofia significar a procura da unidade, Aristóteles merece o grande nome que vinte séculos lhe deram – Ille Philosophus: O Filosofo.  

É natural que falte a poesia em espírito de tal pendor cientifico. Não podemos esperar de Aristóteles o mesmo brilho literário que esplende nas paginas do filosofo-dramaturgo Platão. Em vez de proporcionar-nos alta literatura que em mitos e imagens encerra [e obscurece] uma filosofia, Aristóteles dá-nos ciência, técnica, abstrata, condensada. Se o procurarmos como leitura amena enganamo-nos. Em vez de expandir-se em vôos literários, como faz Platão, ele cria a terminologia da ciência e da filosofia; mal poderemos falar hoje sobre qualquer ciência sem usar termos inventados por Aristóteles; esses termos jazem como fosseis no substractum de nossa linguagem: faculdade, meio, máxima [que é, em Aristóteles, a maior das premissas de um silogismo], categoria, energia, atualidade, motivo, fim, principio, forma -  esta moeda corrente do pensamento filosófico foi cunhada por seu espírito. E talvez esta passagem do dialogo ameno para o preciso tratado cientifico fosse um passo necessário ao desenvolvimento da filosofia; e a ciência, que é a base e a espinha dorsal da filosofia, não poderia desenvolver-se antes do evolver de seus métodos exatos e próprios, de aplicação e expressão. Aristóteles escreveu também diálogos literários, que em seu tempo eram lidos em tão alto conceito como os de Platão: mas perderam-se, assim como se perderam os tratados científicos de Platão. Provavelmente o tempo preservou da destruição a melhor parte de cada um desses dois homens.

Afinal, é possível que obras atribuídas a Aristóteles não sejam suas e, sim, de discípulos e continuadores que embalsamaram em suas notas a desataviada essência das preleções do mestre. É de  crer-se que em sua vida Aristóteles não escreveu obras técnicas, a exceção das sobre lógica e retórica e que a forma atual de seus tratados de lógica possa atribuir-se a publicação feita mais tarde. Quanto a Metafísica e a Política, parece que as notas por ele deixadas foram reunidas sem revisão ou alteração pelos encarregados desse trabalho. Até a igualdade de estilo que assinala as obras aristotélicas e serve de argumento aos que defendem a sua autoria direta, pode, afinal de contas, não passar de uniformidade adotada em todos os trabalhos da Escola Peripatetica. A este respeito deflagram controvérsias de ardor quase épico, como no caso de Homero; mas ao atarefado leitor não interessará aprofundá-las, nem tem um modesto estudioso da filosofia competência para tentar solve-las. [1] Confronte-se com Zeller, II, 204, nota e Shule, Historia dos Livros de Aristóteles. Podemos, entretanto, estar certos de que Aristóteles é o autor espiritual de todos os livros que tragam seu nome. Mesmo que em alguns possa ser alheia a mão que os escreveu, a verdade é terem nascido da sua cabeça e do seu coração. [2]O leitor que desejar conhecer diretamente o filosofo, achará na Meteorologia um interessante exemplo da obra cientifica de Aristóteles; e haurirá muitos conhecimentos práticos na Retórica; e achará o melhor de Aristóteles nos livros I e II da Ética e nos I e IV da Política. A melhor tradução da Ética é a de Welldon; da Política, a de Jowett. O Aristóteles, de Sir Alexandre Grant,é um livro singelo; o Aristóteles de Zeller (vols, III e IV de sua obra Os Filósofos Gregos) é clássico, mas seco; Os Pensadores Gregos (Vol.IV) de Gomperz, é magistral, mas difícil.            

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