19 de jun. de 2011

Nietzsche_Democracia_Decadência

Conseqüentemente, o caminho para o super-homem jaz na aristocracia. Democracia – “esta mania de contar narizes” – deve ser erradicada enquanto é tempo. O primeiro passo será a destruição do cristianismo nos homens mais altos. O êxito de Cristo foi o começo da democracia: “o primeiro cristão era, dentro dos seus instintos mais profundos, um revoltado contra tudo que era privilegiado; vivia e lutava irremitentemente por “direitos iguais” e nos tempos modernos seria enviado para a Sibéria. “Aquele que é o maior dentro vós – fazei dele vosso servo” – isto é a inversão de toda sabedoria política e de toda sanidade; realmente, quem lê o Evangelho sente uma atmosfera de romance russo; uma espécie de plágio de Dostoievski. Unicamente entre os humildes tais noções poderiam enraizar; e só em uma idade em que os imperantes haviam degenerado e cessado de imperar. “Quando Nero e Caracala subiram ao trono deu-se o paradoxo de que os mais baixos homens valiam mais que os ocupantes da curul suprema”.

Como a conquista da Europa pelo cristianismo foi o termo da antiga aristocracia, assim o derrame pela Europa dos belicosos barões teutonicos trouxe o renascimento das velhas virtudes másculas, plantando as raízes das modernas aristocracias. Esses homens não estavam sobrecarregados com ‘morais’; eram “livres de qualquer estrição social; no ingênuo da sua consciência de selvagens saiam exultantes de uma horrível congerie de matanças, incêndios, rapina, tortura, e com arrogância e alegria, como se apenas se tratasse de brincadeiras de estudantes”. Foram esses homens que abasteceram as classes dirigentes da Alemanha, Escandinávia, França, Itália e Russia.

*Manadas de louros animais de presa, raça de conquistadores e senhores com organização militar, com poder de organizar sem nenhum escrúpulo, colocando as patas terríveis sobre populações muito superiores em numero...essas manadas fundaram o Estado. Dissipa-se o sonho de que o Estado se formou por um contrato. Que tem a fazer com contratos quem pode dominar, quem é senhor por natureza, quem entra em cena com violência nos feitos e nas idéias?

Esta esplendida raça dirigente foi logo corrompida, primeiro pelo louvor das virtudes femininas; segundo, pelos ideais plebeus da reforma puritana; e terceiro, pelo inter-casamento com raças inferiores. Logo que o catolicismo começou a amadurecer na aristocracia e amoral cultura da Renascença, a Reforma esmagou-o com a revivescencia do rigor e da solenidade judaicas. “Já compreendeu alguém, quer alguém compreender o que era a Renascença? A transmutação de valores cristãos, tentativa empreendida em todos os meios, todos os instintos e todos os gênios para criar valores opostos, para criar o triunfo dos valores nobres...Vejo diante de mim uma possibilidade perfeitamente mágica no entanto da sua cor gloriosa...Cesar Borgia papa...Compreende-me?
O protestantismo e a cerveja haviam enevoado o pensamento alemão; acrescente-se agora a musica de Wagner. Como resultado, “a Prússia de hoje é uma das mais perigosas inimigas da cultura”. “A presença de um alemão retarda a minha digestão”. “Se, como diz Gibbon, nada a não ser tempo e muito tempo é necessário para que um mundo pereça; assim nada senão tempo, embora ainda mais tempo, é necessário para que uma idéia falsa seja destruída na Alemanha. Quando a Alemanha derrotou Napoleão isso foi tão desastroso para a cultura como quando Lutero derrotou a Igreja; desde esse momento a Alemanha começa a afastar seus Goethes e Schopenhauers e Beethovens para adorar “patriotas”; o Deutschland über Alles foi o fim da filosofia alemã”. Havia, entretanto, uma natural seriedade e profundidade nos alemães que esperavam redimir a Europa; tinham mais virtudes masculinas que os franceses e ingleses; tinham perseverança, paciência, industriosidade – daí sua erudição, sua ciência e sua disciplina militar; é deleitoso ver como toda a Europa se incomoda com o exercito alemão. Se o poder de organização germânica pudesse operar com os recursos potenciais da Rússia, a Alemanha atingiria o apogeu da grande política.

*Precisamos de uma inter-mistura com os eslavos e precisamos dos mais hábeis banqueiros, os judeus, para nos tornarmos os donos do mundo...Precisamos de uma incondicional união com a Rússia”. A alternativa é cerceio e estrangulação.

O mal com a Alemanha é uma certa estolidez de espírito, conseqüência da solidez de caráter; a Alemanha perde a longa tradição de cultura que fez da França o mais refinado e sutil povo da Europa. “E creio unicamente na cultura francesa e olho tudo mais que na Europa tem nome de cultura como equivoco”.

Quando uma pessoa lê Montaigne, La Rochefoucauld, Vauvenargues e Chamfort sente-se mais perto da antiguidade do que lendo qualquer outro grupo de autores de qualquer outra nação. “Voltaire é um grão senhor do espírito”; e Taine, “o primeiro dos historiadores vivos”. Ainda os novos escritores franceses, Flaubert, Bourget, Anatole, etc., estão infinitamente acima dos outros europeus, em clareza e pensamento e língua – “que clareza e delicada precisão, a destes franceses!” A nobreza do gosto, do sentimento e das maneiras da Europa é obra da França. Mas da velha França dos séculos dezesseis e dezessete; a revolução, destruindo a Aristocracia, destruiu o veiculo e o canteiro da cultura, e agora a alma da França está delgada e pálida em comparação do que já foi. Não obstante subsistem algumas finas qualidades; “ na França quase todas as questões artísticas e psicológicas são consideradas com muito cuidado e sutileza do que na Alemanha...No próprio momento em que a Alemanha se erguia como grande potencia na política, a França ganhava nova importância no mundo da cultura.

A Rússia é o animal louro da Europa. Seu povo tem um “teimoso e resignado fatalismo que lhe dá ainda hoje vantagem sobre nós ocidentais”.

A Russia possui governo forte, sem “imbecilidade parlamentar”. Força de vontade vem de longe se acumulando lá, e agora ameaça de explodir; não seria surpreendente que se tornasse a dominadora da Europa. “Um pensador que tenha em vista o futuro da Europa levará em conta, em todas as suas perspectivas, os judeus e os russos, como os mais seguros e sólidos fatores na grande peça do choque das forças”. Mas de todos os povos é o italiano o mais fino e vigoroso; o homem-planta cresce fortíssimo na Itália, como basofiou Alfieri. Existe uma atitude varonil, um orgulhoso aristocrático ainda no mais baixo italiano; “um pobre gondoleiro de Veneza faz sempre melhor figura do que um geheimrath de Berlim, e no fundo é um melhor homem”.

Os piores de todos são os ingleses; foram os corruptores do espírito francês com a ilusão democrática; “os lojistas, cristãos, vacas, mulheres, ingleses e outros democratas se entendem”. O utilitarismo e o filistinismo inglês constituem o nadir da cultura européia. Unicamente em uma terra de feroz competição comercial pode alguém conceber a vida como a mera luta pela existência. Só em uma terra onde os lojistas e armadores se multiplicaram em tal numero a ponto de submergir a aristocracia, era possível a fabricação da democracia, foi este o presente dos gregos que a Inglaterra deu ao mundo moderno. Quem salvará a Europa da Inglaterra e a Inglaterra da Democracia?  

Nietzsche_O Super-Homem

Assim como a moralidade jaz na força e não na bondade, assim o objetivo do esforço humano não devia ser a elevação de todos, mas o desenvolvimento dos mais perfeitos e fortes indivíduos. Não o gênero humano, mas o super-homem é a meta. A ultima coisa que um homem deve empreender é o melhoramento do gênero humano; o gênero humano não melhora – e nem existe, é uma abstração; o que existe é um vasto formigueiro de indivíduos. O aspecto do todo é muito mais semelhante  ao de uma enorme fabrica experimental onde em cada época alguma coisa sai bem feita enquanto a maioria falha; e o alvo de todas as experiências não é a felicidade da massa, mas o melhoramento do tipo. Melhor que as sociedades se extingam do que tipos de eleição deixem de aparecer.

A sociedade é instrumento para realce do poder e da personalidade do individuo; o grupo não é em si um fim. “Para que haveria maquinas se todos os indivíduos só servissem para as conservar?” Maquinas – ou organizações sociais – “que sejam fins em si – é esta a comédia humana”.

A principio Nietzsche falou como se as suas esperanças fossem para a produção de uma nova espécie; depois foi levado a pensar do seu super-homem como o individuo superior que se erguia precariamente do chavascal da mediocridade e devia sua existência mais a cuidadosa criação do que aos acasos da seleção natural. Porque o processo biológico é inútil aos indivíduos de exceção; a natureza mostra-se crudelíssima para com os seus mais altos produtos, e, ao contrário, protege a media, o medíocre; há na natureza uma perpetua reversão ao tipo, ao nível da massa – uma recorrente dominação do melhor pelo mais. O super-homem pode sobreviver unicamente pela seleção humana, pela previsão eugênica e por uma nobre educação.

Que absurdo, portanto, deixar que os mais altos tipos casem por amor – heróis com criadas, gênios com costureiras! Schopenhauer não tinha razão. O amor não é eugênico; quando um homem está amando não está em situação de tomar decisões que he afetem a vida inteira; não lhe é dado ao mesmo tempo  amar e ser sábio. Devíamos declarar nulos os votos de amor e  fazer do amor um impedimento legal para o casamento. O melhor só deverá casar com o melhor; e o amor deixado para a canalha. O fim do casamento não é apenas a reprodução; é também desenvolvimento.

8Tú és jovem e anseias por casamento e filhos. Mas, pergunto, és homem que ouses desejar um filho? És acaso um vitorioso, um dominador de ti próprio, um comandante dos teus sentidos, um senhor das tuas virtudes? – ou em teu desejo só fala o animal, a necessidade? Ou a solidão? Ou discórdia contigo mesmo? Eu quero que tua vitória e liberdade desejem um filho. Construirás monumento vivo sobre tua vitória e liberdade. Construirás para além de ti mesmo. Mas primeiro tens de construir-te sólido de alma e corpo. Não apenas propagar, mas propagar-se para cima! Casamento: assim eu chamo a vontade de dois para criar um que seja mais que os que o geraram.

Sem bom nascimento, impossível a nobilidade. “O intelecto apenas não nobilita: ao contrário, alguma coisa sempre falta para enobrecer o intelecto. Que falta? Sangue...[Não me refiro aqui ao “de” do Almanaque de Gotha: isto é parentesco para asnos]”. Mas dado o bom nascimento e a origem eugênica, o próximo fator na formula do super-homem é uma escola severa onde a perfeição seja exigida como matéria de curso; onde o corpo seja ensinado a sofrer em silencio e a vontade aprenda a obedecer e comandar. Não contra-senso libertário, não enfraquecimento da espinha física e moral pela indulgência e “liberdade”! Mas a escola onde se ensine a alegria do coração; os filósofos serão graduados segundo sua capacidade para rir; Aquele que escala as mais altas montanhas rir-se-á de todas as “tragédias”. E não haverá “ácido moralico” nesta educação do super-homem; um ascetismo da vontade, não condenação da carne. “Não pareis de dançar, lindas jovens! Nenhum estragador da vida vos está olhando com maus olhos ... nenhum inimigo das moças de belos tornozelos” [*Anticristo]. Mesmo o super-homem deve ter gosto pelos belos tornozelos.

Um homem desse modo nascido e criado estaria além do bem e do mal; não hesitaria em ser böse, se seus propósitos o requeressem; seria antes destemeroso do que bom. “Que é ser bom?... Ser bravo é bom”. Tudo quanto aumenta o sentimento de poder, a vontade de poder, o poder em si. Que é mau [schlecht]? Tudo que vem da fraqueza”. Tudo que vem da fraqueza”. Talvez a marca dominante do super-homem seja amor ao perigo e a luta, contanto que tenha um alto propósito: jamais sobreporá a tudo a segurança; deixará essa felicidade para o grande numero. “Zarathustra adorava os que fazem viagens longas e não gostam de viver sem perigos”. Daí toda guerra ser boa, a despeito da vulgar mesquinharia das suas causas nos tempos modernos; “uma boa guerra sana qualquer causa”. Ainda a revolução é boa; não em si, porque nada pode ser mais infortunado que o predomínio das massas; mas porque os tempos de luta desabrocham a grandeza latente de indivíduos que antes não encontravam bastante estimulo ou oportunidade; do bojo do caos emerge a estrela; do torvelino da Revolução Francesa saiu Napoleão; da violência e desordem da Renascença, brotaram poderosas individualidades – e em tal abundancia que a Europa não as pode suportar.

Energia, intelecto e orgulho – isso faz o Super-Homem. Mas precisam ser harmonizados; as paixões tornar-se-ão força unicamente quando selecionadas e unificadas por algum grande propósito, que molde o caos dos desejos no poder de uma personalidade. “Maldição para o pensador que não é jardineiro, e sim apenas o solo das suas plantas!” Esse que só segue seus impulsos, quem é? O débil; falta-lhe o poder para inibir; não é bastante forte para dizer Não; é uma discórdia, um decadente. Disciplinar-se, eis a coisa suprema. “O Homem que não deseja ser apenas um da massa, tem de cessar de ser leniente consigo mesmo”. Ser duro pra com os outros, porém ainda mais duro consigo mesmo; fazer tudo menos trair um amigo – isto é a patente final nobreza, a ultima formula do super-homem.

Unicamente vento tal homem como a meta e a recompensa do nosso esforço é que podemos amar a vida e viver em ascensão. “Precisamos ter um alvo por amor do qual sejamos todos caros uns aos outros”. Sejamos grandes, ou servos e instrumentos dos grandes; que belo quadro quando milhões de europeus se ofereceram como instrumentos para os fins de Bonaparte e por ele caíram alegremente murmurando o seu nome! Talvez dentre nós aquele que compreende possa tornar-se o profeta daquele que não podemos ser e possa preparar o caminho para o seu advento; podemos nós todos, de todas as terras e épocas, trabalhar juntos, embora separados, para este fim. Zarathustra exultará, ainda em seu sofrimento, se puder ouvir as vozes destes auxiliares ocultos, destes partidários do homem mais alto. “Vós, solitários de hoje, vós que vos conservais a parte, vós sereis um dia um povo; de vós um povo eleito emergirá – e desse povo, o SUPER-HOMEM”.           

Nietzsche_Moralidade Heróica

Para Nietzsche Zarathustra se torna um evangelho do qual seus últimos livros não passam de comentários. Se a Europa não apreciasse sua poesia talvez compreendesse sua prosas. Depois do canto do profeta, a lógica do filosofo. Um filosofo não pode descer da lógica, que quando não for um selo de prova é um instrumento de claridade.

Nieztsche estava mais só porque Zarathustra parecera estranho até para seus próprios amigos. Eruditos como Overbeck e Burkhardt, que tinham sido seus colegas em Basle e admirado o  Nascimento da Tragédia, lamentaram a perda de um brilhante filosofo, mas não puderam celebrar o nascimento de um poeta. Sua irmã [que já havia justificado suas vistas de que para um filosofo uma irmã é uma admirável substituta da esposa] deixou-o subitamente para casar-se com um daqueles anti-semitas que Nietzsche desprezava e partiu para o Paraguai com o fim de formar uma colônia comunista. Para beneficio da saúde do irmão ela insistiu em levá-lo, mas Nietzsche, que dava mais apreço a vida do espírito que a do corpo, ficou no campo de batalha; a Europa lhe era necessária “como um museu de cultura” [*Em Figgis:The Will to Freedom]. Viveu a partir daí de deu em deu; experimentou a Suiça, Genova, Nice e Turim. Gostava de escrever no meio dos pombos que revoavam em redor dos leões de S. Marcos – “esta Piazza San Marco é o meu melhor gabinete”. Mas tinha de seguir o conselho de Hamlet, quanto ao sol, que lhe fazia mal aos olhos e trancou-se em um sótão frio, trabalhando de janelas fechadas. Em vista do mau estado dos olhos não escreveu mais livros e sim aforismos.

Reuniu depois parte destes fragmentos sob os títulos Além do Bem e do Mal [1886] e Genealogia da Moral [1887]; e esperou com estes volumes destruir a velha moralidade e preparar o caminho para a moralidade do super-homem. Por um momento voltou a ser filólogo e procurou fundamentar sua nova ética com etimologias. Notou que a língua alemã continha duas palavras para mau: schlecht e böse. Schelecht era aplicado pelas classes altas para indicar as  baixas e significava ordinário, vulgar, comum. Böse era aplicado pelas classes  baixas para as altas e significava estranho, irregular,incalculável, perigoso, cruel; Napoleão era bose. A mais da gente comum teme o individuo excepcional como a uma força desintegrante; há um provérbio chinês que diz: “um grande homem é um infortúnio publico”. Gut, igualmente, tem duas significações, como oposto de schlecht e böse: usado pela aristocracia significa forte, poderoso, guerreiro, divino [gut de Gott]; e usado pelo povo significa familiar, pacifico, inofensivo, bondoso.

Temos aqui dois valores da conduta humana, dois pontos de  vista e dois critérios: uma Herren-moral e uma Heerden-moral – moral dos senhores e moral do rebanho. A primeira era aceita como padrão pela antiguidade clássica, sobretudo entre os romanos; ainda para o romano da plebe virtude era  virtus – virilidade, coragem, audácia, iniciativa, esforço. Mas da Ásia, especialmente dos judeus dos tempos da sujeição política, veio o outro padrão; sujeição gera humildade, fraqueza gera altruísmo – que é um apelo de socorro. Nesta moralidade de rebanho o amor do perigo e do poder cede o passo ao amor da segurança e paz; a força é substituída pela astúcia; a iniciativa, pela imitação; o orgulho da honra, pelo chicote da consciência; a honra é pagã, romana, feudal, aristocrática; a consciência é judaica, cristã, burguesa, democrática [*Taine: A Revolução Francesa]. Foi a eloquencia dos profetas, de Amos a Jesus, que transformou as vistas de uma classe escravizada em uma moral quase universal; o “mundo” e a “carne” viraram sinônimos de mal, e a pobreza passou a ser prova de virtude.


Esta valorização foi feita por Jesus, para quem todos os homens tinham igual valor e direitos iguais; de sua doutrina emergiram a democracia, o utilitarismo, o socialismo; o progresso passou a ser definido em termos dessas filosofias plebéias, em termos de progressiva igualificação e vulgarização, em termos de  decadência ou vida descendente. O estagio final nesta decadência é a exaltação da piedade e o auto-sacrifício, o sentimental conforto aos criminosos, “a inabilidade para uma sociedade de excretar”. A simpatia é legitima, se ativa; mas a piedade é uma paralisante luxuria mental, um desperdício de sentimento para com o forçosamente residual, o incompetente, o defeituoso, o  vicioso, o irremediavelmente criminoso. Há uma certa indelicadeza na piedade: “visitar doentes” é um orgasmo da superioridade produzido pela contemplação da miséria vizinha.

Atrás desta “moralidade” está uma secreta vontade de poder. O amor é um desejo de posse; galanteio é combate, e ligação é domínio: Don José mata Carmen para evitar que ela se torne propriedade de outro. “As criaturas não se imaginam egoístas no amor pelo fato de procurarem o bem do objeto amado em vez do próprio bem. Mas fazem isso para possuir o objeto amado...L’amour este de tous lês sentiments lê plus égoïste, et, par conséquent, lorsqu’il est blessé, lê moins généreux” [ *Benjamim Constant: O amor é de todos os sentimentos o mais egoísta, em conseqüência, o menos generoso, quando ofendido. Mas Nietzsche fala mais amavelmente do amor. “Donde se ergue a súbita paixão de um homem por uma mulher...Não da sensualidade, unicamente. Quando um homem encontra fraqueza, necessidade de ajuda e altos espíritos, tudo reunidos na mesma criatura, ele sofre uma espécie de inundação da alma, e sente-se tocado e ofendido a um tempo. Começa neste ponto o grande amor. [Humano, muito Humano]. E cita o frances Dans lê veritable amour c’est l’ame qui enveloppe lê corps]. Ainda no amor da verdade surge o desejo da posse – de possuí-la antes dos outros, virgem.

Contra esta paixão do poder, a razão e a moralidade nada valem; não passam de armas em sua mão, joguetes do seu jogo. “Sistemas filosóficos são miragens rebrilhantes”; o que vemos não é a longamente procurada verdade, mas o reflexo dos nossos próprios desejos. “Os filósofos todos posam como se suas opiniões houvessem sido descobertas por meio de uma dialética divinamente indiferente, fria, pura...ao passo que, de fato, uma proposição preconceituosa, uma idéia ou “sugestão” que reflete o seu desejo, é por eles defendida com argumentos como que emanados, não deles, mas da coisa.

São estes desejos subconscientes, estas pulsações da vontade de poder, que determinam os pensamentos. “A maior parte da nossa atividade intelectual vem-nos inconscientemente e sem que o percebamos...o pensamento consciente...é o mais fraco”. Pelo fato de ser operado direta da vontade de poder não perturbada pela consciência, “o instinto é mais inteligente que todas as qualidades de inteligência até aqui descobertas”. Na realidade, o papel da consciência tem sido por demais exaltado; “a consciência pode ser considerada como secundária, quase como indiferente e supérflua, e provavelmente destinada a ser substituída pelo perfeito automatismo”.

Nos homens fortes há muito pouca preocupação de ocultar o desejo com os disfarces da razão; o argumento deles é “Eu quero!” No vigor da alma senhoril o desejo constitui a sua própria justificação; e a consciência, a piedade ou o remorso não encontram ingresso. Mas enquanto prevalecer o ponto de vista democrático, cristão-judaico, os próprios fortes envergonhar-se-ão da sua força e da sua saúde, e procurarão “razões”. As virtudes e os valores aristocráticos estão morrendo. “A Europa se vê ameaçada de um novo Budismo”. O próprio Schopenhauer e o próprio Wagner tornaram-se budistas. “Toda a moralidade da Europa está baseada em valores só de valia para o rebanho”. Aos fortes não é mais permitido o uso da força; tem que se aproximar o mais possível do fraco. “A bondade consiste em nada fazer daquilo para o qual não estamos bastante fortes”. Não provou Kant – “esse grande chinês de Koenigsber” – que o homem não deve ser nunca usado como meio? Conseqüentemente, os instintos do forte – caçar, lutar, conquistar e governar – introverteram-se, passam a auto-laceração por falta de vasadouro; criam o ascetismo e a “má-consciência”, “todos os instintos que não encontram expansão introvertem-se – é o que quero significar com a crescente “internacionalização” do homem: temos aqui a primeira forma do que vem a ser chamado – a alma”.

A formula de decadência é que as virtudes próprias do rebanho infetam os lideres e os rebaixam a massa comum. “Sistemas de moral devem ser compelidos, antes de mais nada, a se curvarem ante as gradações de classe; sua evidencia deve permear a consciência das classes até que elas compreendam a imortalidade de dizer que “o que é bom para uma é próprio para outra”. Diferentes funções requerem diferentes qualidades; e as “más” virtudes dos fortes são tão necessárias a sociedade como as “boas” virtudes dos fracos. Severidade, violência, perigo, guerra, são valores tão valiosos como bondade e paz; os grandes indivíduos só aparecem em tempo de perigos e violências, ou de inexorável necessidade. A  melhor coisa no homem é força de vontade, poder e permanência de paixão; sem paixão vira leite, incapaz de feitos. Ganância, inveja, mesmo ódio são elementos indispensáveis no processo da luta, da seleção, da sobrevivência. O mal está para op bem como as variações para a hereditariedade, como a inovação e a experiência para os costumes; não há desenvolvimento sem uma quase criminosa violação de precedentes e da “ordem”. Se o mal não fosse bem, o mal desapareceria. Devemos ter cuidado em não ser muito bons; “o homem precisa tornar-se melhor e mais mau”.

Nietzsche consola-se de encontrar tanto mal e tanta crueldade no mundo; sente um prazer sadistico refletindo na extensão em que a “crueldade constitui a grande alegria e o deleite do homem antigo”; e crê que o nosso prazer do drama trágico, ou de qualquer coisa sublime, é um refinamento da crueldade. “O homem é o mais cruel dos animais”, diz Zarathustra. Quando assiste a tragédias, a touradas e crucificações, sente-se em arroubo de felicidade suprema. E quando inventou o inferno...ah! o inferno foi o céu na terra; permitiu-lhe suportar o sofrimento do dia contemplando a punição eterna dos seus opressores no outro mundo.

A ética ultima é biológica; devemos julgar as coisas de acordo com o seu valor para a vida; impõe-se uma “transmutação de todos os valores”. A prova real de um homem ou grupo, ou de uma espécie é energia, capacidade, poder. Devemos reconciliar-nos parcialmente com o século dezenove – tão destrutivo de todas as altas virtudes – por causa da exaltação do físico. A alma é uma função do organismo. Uma gota de sangue a mais ou a menos no cérebro faz um homem sofrer como Prometeu no Cáucaso, picado pelo abutre. A variação de alimento faz variar a mente; o arroz criou o budismo; a cerveja criou a metafisica alemã. Uma filosofia, portanto, que expresse a vida ascendente é verdadeira, e é falsa a que se faz expressão da vida descendente. O decadente diz: “A vida nada vale”; devia antes dizer: “Eu nada valho”. Por que valerá a vida a  pena de ser vivida, se todos os seus valores heróicos são votados a decadência, e a democracia, isto é, a falta de fé nos grandes homens, arruína cada vez mais os povos?  

*O gregário europeu de hoje assume ares de ser o único homem permitido; glorifica suas qualidades de espírito publico, bondade, deferência, industria, modéstia, indulgência, simpatia – em virtude das quais é ele amável e útil para o rebanho – como sendo as virtudes peculiarmente humanas. Nos casos, porém, em que o líder ou o amadrinhador não pode ser dispensado, tentativas sobre tentativas são hoje feitas para substituir chefes por grupos de homens gregários; todas as constituições representativas, por exemplo, tem esta origem. A despeito de tudo, que benção, que alivio de um peso que se vai tornando insuportável, é o aparecimento de um chefe absoluto que comande esses europeus gregários! O aparecimento de Napoleão foi a ultima prova disto; a historia da influencia de Napoleão é quase a história da mais alta felicidade que o século inteiro atingiu em seus mais valiosos indivíduos e períodos.

Nietzsche_O Canto de Zarathustra

E saltando da arte, que lhe refugira, abrigou-se na ciência – cujo ar friamente apolíneo lhe varreu da alma os ardores dionisíacos de Tribschen e Bayreuth – e na filosofia, “que oferece um asilo onde nenhuma tirania pode penetrar”. Como Spinoza, procurou acalmar as paixões, examinando-as; “precisamos”, diz ele, “uma química das emoções”. E assim no seu próximo livro, Humano, mui Humano [1878-80], se tornou psicologista e analisou com crueldade de cirurgião os mais ternos sentimentos e as mais queridas fé – dedicando-o intrepidamente, em plena reação, ao escandaloso Voltaire. Enviou a obra a Wagner, recebendo em retribuição o livreto de Parsifal. Depois nunca mais se comunicaram.

Por essa época, ainda em plena mocidade, sofreu um baque na saúde, tanto mental como física [1879], chegando a perder as esperanças – e preparou-se desafiadoramente para o fim. “Prometa-me”, disse à irmã, “que quando eu morrer só meus amigos se achegarão ao meu ataúde. Veja que nenhum sacerdote, ou quem quer que seja pronuncie falsidades a beira do meu tumulo, pois já não estarei em situação de defender-me; quero descer a terra como um honesto pagão” [*O Solitário Nietzsche, pg.65]. Mas sarou e o seu heróico funeral foi adiado. Dessa doença lhe veio o amor pela saúde e pelo sol, pela vida, pelo riso, pela dança – e pela “musica de sol” da Carmen; também lhe veio uma vontade mais enérgica, fortalecida pela luta contra a morte, um “sim” que sentia a doçura da vida ainda em seus amargores e aflições – e ainda em um penoso esforço para erguer-se a alegre aceitação spinoziana das limitações naturais e do destino humano. “Minha formula para a grandeza é Amor fati - ...não somente suportar todas as necessidades como amá-las”. Ai! Coisa muito mais fácil de dizer do que de fazer.

Os títulos do livros imediatos – Aurora [1881] e Gaia Ciência [1882] – refletem a alegria da convalescença; nota-se um tom mais amável que nas obras anteriores. Teve ele um ano calmo, a viver modestamente da pensão concedida pela universidade. O orgulhoso filosofo pode ainda enfragilecer-se a ponto de ser empolgado pelo amor. Mas Lou Salomé não retribuía tal sentimento; os olhos de Nietzsche, muito penetrantes e profundos, amedrontavam-na.Paul Rée era menos perigoso e foi o Dr Pagello para o Musset que havia em Nietzsche. Nietzsche fugiu, desesperado, compondo pelo caminho aforismos contra a mulher. Era na verdade ingênuo, entusiástico, romântico, terno até a simplicidade; sua guerra contra a ternura valia por tentativa para exorcismar a virtude que levara a uma bem amarga decepção, produzindo uma ferida que nunca se fechou.

Não podia encontrar solidão bastante: ”é difícil viver com homens, porque o silencio é difícil”. Passou da Itália para os Alpes, Sils-Maria, Engadine – sem amor por ninguém e rogando para que o Homem fosse suplantado. E naquela solitária altitude lhe veio a inspiração do seu livro Maximo.

*Sentei-me esperando – esperando por nada, gozando, além do bem e do mal, ora a luz, ora a sombra; só havia o lago, o sol, o tempo sem fim. Então, meu amigo, o um tornou-se dois – e Zarathustra passou por mim”.

Sua alma “ergueu-se e derramou-se por todas as margens”. Havia encontrado um novo mestre – Zoroastro; um novo deus – o Super-Homem; e uma nova religião – a Eterna Recorrência: precisava agora cantar – filosofia montada na poesia e esporeada pela inspiração. “Eu posso cantar um canto, e quero cantá-lo, embora esteja só em uma casa vazia e tenha de cantá-lo em mim para meus próprios ouvidos”. [Que solitude há nesta frase!]. Vede! Estou cansado da minha sabedoria, como a abelha que colheu muito mel; necessito de mãos para que ela se estendam”. Nesse tom escreveu o Assim Falava Zarathustra [1883], que terminou na “trágica hora em que Richard Wagner rendia a alma em Veneza”. Era a sua magnífica resposta a Parsifal; mas o criador de Parsifal não a pode ler.

Foi sua obra prima, e Nietzsche o sabia. “Esse livro ficará só”, escreveu mais tarde. “Nada talvez ainda foi produzido com tal superabundância de força...Se todo o espírito e toda a  bondade das grandes almas fossem reunidos, a resultante não criaria uma só das falas de Zarathustra”. Um leve exagero – mas na realidade é um dos grandes livros do século dezenove. Nietzsche, todavia, lutou para imprimi-lo; a primeira parte viu-se  retardada porque o editor tinha os prelos ocupados com uma tiragem de 500.000 livros de hinos, e também com uma torrente de folhetos anti-semitas; e o editor recusou-se a imprimir a ultima parte como se valor do ponto de vista comercial; o autor teve de pagá-la de seu bolso. Cinqüenta exemplares do livro foram vendidos; sete foram ofertados pelo autor; um dos eleitos agradeceu; ninguém o louvou. Jamais um homem se viu mais só.

Zarathustra, com trinta anos, desce da montanha para pregar as turbas, como fizera o seu protótipo persa Zoroastro; mas a multidão afasta-se dele para ver um saltimbanco que andava na corda. O saltimbanco cai e morre. Zarathustra toma-o nos ombros e leva-o; “porque do perigo que tu fizeste a tua vida, enterrar-te-ei agora com as minhas próprias mãos”. “Vive perigosamente”, prega ele. “Erige tuas cidades ao lado do Vesúvio. Manda os teus navios para os mares inexplorados. Permanece em estado de guerra”.

E lembra-se de descer. Descendo da montanha Zarathustra encontra um velho eremita que lhe fala a respeito de Deus. “mas quando Zarathustra se viu só, falou assim para o seu coração: “Será possível? Este velho santo na sua floresta ainda não soube da morte de Deus!” Mas era fato que Deus estava morto – todos os Deuses estavam mortos? 

*Porque os velhos Deuses chegaram ao fim há longo tempo. E na verdade foi um bom e alegre fim de Deus! Eles não morrem a arrastarem-se em crepúsculo, embora esta mentira seja propalada. Ao contrário, eles riram-se da morte! Isto aconteceu quando, pelo próprio Deus, a menos divina das palavras foi pronunciada:”Só existe um Deus! Tu não terás outros deuses, além de mim”. O velho Deus barbado – e deus ciumento! – esqueceu-se assim.
E então todos os deuses se riram e sacudiram-se em seus tronos, e exclamaram: “Não mostra a piedade que há Deuses, mas não Deus?”
- Quem quer que tenha ouvidos, que ouça. Assim falava Zarathusatra;

Que hilariante ateísmo! “O que poderia ser criado se houvesse Deuses!...Se houvesse Deuses, como eu poderia suportar ser não-Deus? Conseqüentemente, não há Deuses”. “Quem é mais ímpio do que eu, que me faça gozar seus ensinamentos?” “Conjuro-vos, irmãos, a permanecerdes fieis a terra e não dardes ouvidos aos que falam de esperanças supra-terrestres!

“Envenenadores são eles, saibam disso ou não”. Muitos rebeldes de um tempo retornam por fim a este doce veneno como a uma anestesia necessária a vida. Os “homens mais altos” vão a caverna de Zarathustra afim de se preparem para a predica da sua doutrina; ele deixa-os por um momento e volta e encontra-os incensando um asno que “criou o mundo a sua imagem – isto é, tão estúpido, quanto possível”. Isto não é edificante; mas  o texto diz, então:

*Aquele que na verdade pretende ser um criador em bem e mal precisa primeiro ser um destruidor e despedaçar todos os valores.
Assim, o mais alto mal é parte da mais alta bondade.
Mas isto é bondade criadora.
Vamos falar daqui por diante, nós, homens sábios, por mau que seja.
Silenciar é pior, a verdade não enunciada torna-se venenosa.
E o que quer que irrompa de nossas verdades – que irrompa. Muita casa tem de ser construída ainda.
Assim falava Zarathustra.

É irreverente? Mas Zarathustra queixa-se de que “ninguém mais sabe venerar”, e chama-se a si mesmo o mais piedoso de todos os que não crêem em Deus. Anseio por fé e lamenta “ a todos que, como eu, sofrem do desgosto de não haver nenhum Deus novo no berço no momento em que o velho Deus morre”.

E pronuncia então o nome do novo Deus.

*Mortos estão todos os Deuses; queremos agora que o super-homem viva...
Eu ensino o super-homem. O homem é alguma coisa que precisa ser ultrapassada. Que fizeste para ultrapassá-lo?...
A grandeza do homem é que ele é uma ponte e não um termino: o que pode ser amado no homem é que ele é uma transição e uma destruição.
Eu amo aos que não sabem viver exceto em perigo, porque esses vão longe.
Eu amo os grandes desprezadores porque são os grandes adoradores, porque são as flechas que anseiam por alcançar a outra margem.
Eu amo os que não procuram além das estrelas uma razão para perecerem e serem sacrificados, mas que sacrificam a si próprios na terra para que um dia a terra seja do super-homem.
É tempo para o homem de marcar o seu goal. É tempo para o homem de plantar o germe da sua mais alta esperança...
Dizei-me, irmão, se o goal falante a humanidade não é a humanidade faltando-se a si mesma...
Amor para com o homem mais remoto é mais alto do que amor para com o nosso vizinho.

Nietzsche parece prever que cada leitor se julgará o super-homem; e procura guardar-se contra isso confessando que o super-homem ainda não nasceu; podemos unicamente ser os seus precursores na terra. “nada queirais além da vossa capacidade ... Não sejais virtuosos além da vossa medida; e nada peçais a vós mesmos contrário a vossa probabilidade”. Para nós se destina a felicidade que somente o super-homem conhecerá; nossa melhor meta é o trabalho. “por longo tempo não cessei de lutar pela minha felicidade; agora luto por meu trabalho”.

Nietzsche não se contenta de haver criado Deus a sua própria imagem; precisa fazê-lo imortal. Depois do Super-Homem vem a Eterna Recorrência. Todas as coisas voltam, como os detalhes precisos e por infinito numero de vezes; ainda Nietzsche voltará e voltará a sua Alemanha de ferro e sangue e cinzas, e voltará todo o trabalho do espírito humano; da ignorância até Zarathustra.  “É uma terrível doutrina, ultima e mais corajosa forma de “Sim” e de aceitação da vida; e como não poderia ser? As possíveis combinações de realidade são limitadas e o tempo é infinito; algum dia, inevitavelmente, vida e matéria voltarão a forma que já uma vez tiveram, e nesta fatal repetição toda história se desenrederá novamente do seu curso tortuoso. A isso nos leva o determinismo. Não admira que Zarathustra receasse enunciar a sua ultima lição; receasse e tremesse e recuasse, até que uma voz nele disse: ”Que é isto, Zarathustra? Fala tua palavra e rompe-te em pedaços”.