19 de jul. de 2010

O Homem _ quem ele é? Uma Visão Antropológica Filosófica

O Homem _ quem ele é? _ Uma Visão Antropológica Filosófica

“O interrogar-se sobre o homem, sobre a sua posição presente e futura no mundo, faz parte dos problemas centrais da filosofia. Na conjuntura da passagem mundial da humanidade pelo capitalismo, pelo socialismo e pelo processo de radicais mudanças técnico-científicas, essa questão ganha atualidade. À sua solução são dirigidos também esforços dos representantes da filosofia, da sociologia e da cultura, de maneira sempre mais intensa”.

Praticamente todos estão portanto de acordo em reconhecer a importância ‘capital de um estudo profundo do homem’.

Mas como realizá-lo? De onde começar? Que aspecto examinar? Qual o método a ser seguido, o da ciência experimental ou o da psicanálise, o da sociologia ou o da metafísica? Em outras palavras, para alcançar uma resposta conclusiva à interrogação “Quem é o Homem?” que tipo de antropologia se deve elaborar: a cientifica, a fenomenológica ou a filosófica?

A tentativa de abordar o estudo do homem prevê por seu próprio turno um numero considerável de ciências, pseudociências e especulações as mais variadas.

Variando pela abordagem, estas tentativas são cognominadas de acordo com seu enfoque. As ‘logias’ que conhecemos confirmam este fato.

Entretanto, ressaltaremos o homem como tema central – ele e suas relações, e mais ainda, discorreremos respeitando a sua Totalidade. Tal categoria representa, segundo o conceito aristotélico, um todo completo nas suas partes e perfeito na sua ordem. Plenitude.

Max Scheler afirma: “Num certo sentido, todos os problemas fundamentais da filosofia podem reconduzir-se à questão seguinte: que é o homem e que lugar e posição metafísica ele ocupa dentro da totalidade do ser, do mundo, de Deus”. Daí a importância da antropologia filosófica.

Representa efetivamente uma ciência fundamental acerca da essência e da estrutura de eidos [*eidos – um dos termos que Platão usava significando a idéia, Aristóteles a forma, usado na filosofia contemporânea por B.Husserl para indicar a ‘essência’]do homem; da sua relação com os reinos da natureza [minerais, plantas e animais] e com o princípio de todas as coisas; da sua origem essencial metafísica e ao seu inicio físico, psíquico e espiritual no mundo; das forças e potencias que agem sobre ele e aquelas sobre as quais ele age; das direções e das leis fundamentais do seu desenvolvimento biológico, psíquico, espiritual e social, consideradas nas suas possibilidades e realidades essenciais.

Historicamente, até dois séculos atrás, o estudo do homem era chamado ‘De Anima’. Era ao mesmo tempo ‘experimental e metafísico’, diríamos mais o segundo.

Foi Wolff o primeiro a distinguir os dois tipos de pesquisa, e as chamava respectivamente: Psychologia empírica [Frankfurt,1732] e Psychologia rationalis [Frankfurt, 1734].

Essa distinção depois assumiu caráter definitivo.

Hoje tende-se a substituir o termo ‘psicologia’ por ‘antropologia’, que é mais apto a indicar o conteúdo da pesquisa filosófica: ela diz respeito a todo homem e não só à sua alma.

O termo ‘antropologia’ afirmou-se por mérito de Kant, que intitulou uma de suas obras ‘Anthropologie in Pragmatischer Hinsicht [1798]’. Nela se define essa ciência como:”Uma doutrina do conhecimento do homem ordenada sistematicamente”.

Hoje ele é adotado para denominar três disciplinas bem diferentes:
a) O estudo do homem do ponto de vista físico-somático: antropologia física.
b) O estudo do homem do ponto de vista da sua origem histórica: antropologia etmológica ou cultural.
c) O estudo do homem do ponto de vista dos seus princípios últimos: antropologia filosófica.

Embora o termo antropologia tenha sido cunhado em tempos mais recentes, o homem tem sido objeto de estudo m todos os períodos da historia.

O homem foi estudado pela filosofia grega, assim como pela cristã, pela filosofia moderna como pela contemporânea. Não foi, porém, estudado sempre do mesmo modo, do mesmo ponto de vista, do mesmo ângulo.

*Na filosofia clássica o homem foi estudado a partir de uma perspectiva cosmocêntrica; na filosofia cristã, de uma perspectiva teocêntrica; na filosofia moderna e contemporânea, de uma perspectiva antropocêntrica.

É lógico que destas diversas perspectivas se obtiveram imagens do homem profundamente diferentes.

As antropologias mais significativas elaboradas numa perspectiva cosmocêntrica são as de Platão, Aristóteles e Plotino.

Para Platão o homem é essencialmente alma: alma espiritual, incorruptível, e portanto certamente imortal; a imortalidade da alma para Platão não constitui verdadeiramente um problema: o único problema para ele é libertar a alma da prisão do corpo.
A visão cosmocêntrica possui o Cosmo como centro, tendo portanto o homem uma importância relativa.

Nesta visão, a preocupação destaca-se pela origem, funcionamento e manifestações da natureza, do Cosmo e de Deus. É a fase a que se atribuem aos mitos as explicações e desígnios e é também chamada de mítica. A busca da ‘substancia primordial’ pelos filosóficos pré-socráticos é um marco deste período cosmocêntrico.

A visão teocêntrica mais característica do período medieval tem Deus como centro da visão e da origem do homem. Com o cristianismo abre-se para o homem [e portanto também para a reflexão antropológica] uma nova perspectiva. O fundo sobre o qual se desenvolve a vida humana não é mais o da natureza, do cosmo, como para os gregos, mais sim aquele da história da salvação, ou seja, a história das relações entre Deus e a Humanidade. Por conseguinte, a reflexão antropológica dos autores cristãos tem como ponto de referencia constante o próprio Deus: é uma reflexão evidentemente teocêntrica.

Com o inicio da época moderna a pesquisa antropológica abandona a impostação cosmocêntrica dos filósofos gregos e a teocêntrica dos autores cristãos e se dirige para a impostação antropocêntrica: o homem constitui o ponto de partida de onde se origina e em torno ao qual fica constantemente polarizada a pesquisa filosófica. A investigação critica, que em Descartes é o necessário ponto de partida de todo reto filosofar, tem por objeto o homem. Na Ethica, Spinoza não se propõe outro objetivo que estabelecer cientificamente qual seja o escopo da vida humana e os meios para o conseguir. Hume [em Treatrise on Human Nature] pretende oferecer um quadro definitivo do homem como indivíduo; Comte e Marx pretendem apresentar um quadro completo do homem como ser social; Freud estuda o homem como um complexo de instintos, etc... Enfim, o homem como centro das buscas do pensador moderno.

Existem modelos, métodos e enfoques para o estudo do homem que quando conhecidos pelo estudante rosacruz ampliam seu horizonte, contribuindo com subsídios à questão do homem em suas relações materiais e espirituais.

Propomo-nos trazer à tona um enfoque que o enxerga como um ser espiritual, como uma alma vivente, conforme a Ontologia Rosacruz, mas que sobretudo avalia-o inserido num contexto, numa manifestação material enquanto ser-no-mundo. Daí a necessidade da ética como mediadora das relações da sociedade humana e do conhecimento das classificações feitas pela ciência da antropologia filosófica como elemento vital desta compreensão.

É desta maneira que nos ocuparemos nos próximos artigos desta seção, a fim de que, conhecedor dessas ‘facetas’, o estudante possa efetivamente adequar o seu conhecimento místico-filosófico à realidade e expressão de seu ser na vida, na terra e na sociedade humana.

Deve-se observar que embora todos partam de uma perspectiva antropocêntrica, os filósofos modernos, de um primeiro estágio moderno, continuam inspirados em Platão, elaborando antropologia de cunho metafísico. Temos como exemplo as antropologias de Descartes, Spinoza, Pascal, Malebranche, Vico e Leibnitz.

Um novo modo de estudar o homem toma lugar quando um pensador de renome resolve provar a absurdidade da metafísica. Nada menos que Emmanuel Kant, autor da Critica da Razão Pura, procurou provar que o saber humano é limitado e a mente humana não pode adquirir um saber absoluto, nem do mundo nem do homem nem de Deus; a mente pode adquirir somente um conhecimento de caráter prático, moral. Daí seu imperativo categórico fundamentado, etc.

A critica kantiana à metafísica, os progressos da ciência, o emergir da consciência histórica e outros fatores já no século XIX, e depois mais decididamente ainda no século XX, deram uma reviravolta decisiva na investigação antropológica: abandona-se o terreno metafísico no qual, como se viu, os filósofos haviam trabalhado até Kant, para se colocarem em outros terrenos – os da história, da ciência, da cultura, da fenomenologia, da psicanálise, da religião, etc...

A proposta da Antropologia Filosófica é abarcar o quadro completo da situação do homem e responder a Questão: “Quem é o homem enquanto tal?”

Isto, sabendo que a realidade humana traz problemas que a razão de per si não consegue resolver. Desmascara deste modo a auto-suficiência do saber cientifico e aborda a questão acima não com o rigor parcial das especialidades cientificas, mas sobretudo buscando a resposta total, completa, exaustiva, última, uma resposta em condições de esclarecer plenamente o que seja o homem tomado globalmente, em seu todo, o que ele seja efetivamente além e sob as aparências, o que seja em si mesmo afora as diferenças causadas pelo ambiente, pela idade, pela educação, etc...

O homem nos interessa na sua totalidade, não por esse ou aquele de seus aspectos. As ciências especializadas [antropologia, lingüística, medicina, psicologia, sociologia, economia, ciências políticas], malgrado os seus esforços, tendem a limitar a totalidade do individuo, considerando-o do ponto de vista de uma função ou d um impulso particular. O nosso conhecimento do homem resulta de uma função ou de um impulso particular. O nosso conhecimento do homem resulta fragmentado: muito freqüentemente tomamos uma parte pelo todo. É esse erro que nos propomos evitar.

Isto posto, consideramos apresentada a legitimidade da Antropologia Filosófica. Nosso método será lento, porém de uma exploração, a mais ampla possível, do fenômeno humano, tomando para exame as suas principais manifestações que citaremos a seguir.

Depois, seguindo certo indícios que nos serão sugeridos por essas mesmas manifestações, procederemos à decifração do sentido profundo, último e completo do homem.

O Homem é a expressão do Homo Somaticus; Homo Vivens; Homo Sapiens; Homo Volens; Homo Loquens; Homo Socialis; Homo Culturalis; Homo Faber; Homo Ludens; Homo Religiosus.
_
[Estudode Hélio de Moraes e Marques]

O Homem _ quem ele é? [Parte II] Homo Somáticus

HOMO SOMATICUS
A principio cabe esclarecer qual método usaremos para abordar o tema. Embora rara nos dias de hoje, a expressão ‘Homo Somaticus’ não o era nos tempos d São Paulo e Filão Alexandrino que, como outros do mesmo período, separam no homem dois elementos:
* um psíquico, ligado à alma;
* e, outro somático, ligado ao corpo.

A expressão Homo Somaticus é um termo usado para identificar a dimensão corpórea do homem.

O corpo humano tem sido objeto de reflexão filosófica em quase toda parte da história do pensamento. Encontra-se em Platão, Aristóteles, Filão, Santo Agostinho, São Tomás, Descartes, Spinoza, Leibnitz, Schopenhauer, Nietzsche, Bérgson, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Marcel e outros.

O fato de muitos pensadores antigos e até modernos não considerarem o corpo em si mesmo mas apenas e exclusivamente em relação com a alma, coloca-o numa posição de pouca importância nas suas reflexões antropológicas, razão pela qual vêmo-lo sempre no fim de seus postulados.

Não é exclusividade dos platônicos [Platão, Plotino, Descartes, Leibnitz] que, identificando o homem com sua alma, estudam antes de tudo e sobretudo esta última, mas também os aristotélicos [Aristóteles, Tomás, Locke], que vêem no corpo uma parte essencial do homem. Justifica-se pela forma como avaliam a questão: tantos os platônicos como os aristotélicos, em antropologia, se valem do método metafísico, o qual exige que se estude antes as causas e depois os efeitos, antes as coisas mais perfeitas e depois aquelas menos perfeitas. E, dado que ambos sustentam que a alma é mais perfeita que o corpo e que exerce sobre ele uma atividade causal, logicamente concentram suas atenções sobretudo na alma.

Cabe lembrar que a exceção são os existencialistas, que centram suas atenções no homem com seus atributos enquanto ser-no-mundo e sua existência concreta – a partir da qual está condenado a ser livre, construtor do próprio destino e arquiteto da sua vida, submetido embora a limitações concretas e existenciais.

Daí a famosa frase do contemporâneo francês existencialista, Jean-Paul Sartre:”O inferno é o outro.”

Avaliando qual o melhor método para nossa abordagem, destacamos dois: um é focar o corpo como realidade física. Estudá-lo pelo método experimental chamado de ‘cientifico’. Na época moderna, a partir de Descartes até Pavlov e Watson, vigorou o costume, também entre os filósofos, de aplicar o método experimental ao estudo da dimensão da corporeidade.

O problema é que desse modo reduziu-se o corpo a uma coisa, a uma maquina, com leis mecânicas perfeitamente calculáveis.

E sabemos que o corpo não pode ser reduzido a uma coisa.

Essa característica de Descartes e outros se deu porque foram induzidos a depositar fé cega no método cientifico, que só reconhece como verdadeiro e real aquilo que é experimental – os objetos físicos e as coisas materiais.

Outro método é o Fenomenológico.

A quebra desse paradigma se deu quando, no inicio do nosso século, homens como Bérgson, James, Dilthy, Husserl e Scheler provocaram uma forte reação a essas pretensões da ciência de monopolizar toda a esfera do saber, e mostraram que existem outros modos de conhecimento tão precisos como os da ciência.

A separação entre método cientifico e método experiencial para o estudo do corpo originou duas considerações diferentes do fenômeno da corporeidade: a cientifica – o corpo – coisa, objeto, o corpo como se manifesta aos outros, aquilo que os alemães chamam ‘körper’; e a consideração fenomenológica, que estuda o próprio corpo, como é sentido, experimentado, vivido, aquilo que os alemães chamam leib.

A chave para compreender o método é atentar para que, embora posa se efetuar dupla investigação pelo corpo, nos ateremos não à cientifica, mas à fenomenológica, sem, é claro, ignorar de todo a primeira.

Para nós, estudantes, pode-se dizer que ‘leib’ é a sensação ou percepção do nosso próprio eu. É a consciência dos próprios pensamentos internos.

Assim,percebe-se dois aspectos: de um lado a realidade física com uma estrutura ‘coisal’ objetiva, e de outro o vivido imediato da consciência, sem distância ou objetivação, uma estrutura próxima da subjetividade, constantemente operante no seu relacionamento com o mundo.

Por isso, antes de procedermos à análise filosófica da corporeidade humana, escutemos a ciência para que ela nos diga o que é esse complexo físico tão importante que é o corpo humano e que se distingue dos animais.

PROPRIEDADES DO CORPO HUMANO
Uma propriedade surpreendente é o mecanismo, a perfeição do aparelho circulatório, dos tecidos, mãos, sistemas nervosos, aparelho reprodutor, etc...

O homem é capaz de manejar seu corpo, adestrá-lo e torná-lo apto a realizar movimentos de uma perfeição admirável. Basta ver o que os instrumentistas os prestidigitadores fazem com as mãos, os dançarinos e os bailarinos com os pés, os artistas com os dedos, etc.

O homem não só é senhor do seu corpo, como também, graças a ele, torna-se senhor do mundo.

O homem no exercício de suas atividades consegue superar qualquer outro animal. Alguns estudiosos definem o homem como o ser não especializado. Enquanto no reino animal cada um é especialista em uma determinada função orgânica [da visão, audição, objeto, movimento, etc], o homem é uniformemente dotado nestes ponto, tornando-o em muitos casos até carente de certos instintos.

Entretanto, o elemento fisiológico que o distingue e o possibilita superar todas as várias especializações dos animais é o cérebro. O cérebro aparece como fator de equilíbrio biológico. A compensação da carência com a formação do cérebro aparece como uma hipercompensação de uma inferioridade biológica constitucional. O homem torna-se então um ser especializado no cérebro.

Um outro aspecto que caracteriza o corpo humano e o distingue nitidamente de todos os corpos dos animais é a sua posição vertical. Esta posição e o porte ereto são atos livres e conscientes do homem, já que a criança deve aprender a andar [e com quanto esforço!].

FUNÇÃO DE CORPOREIDADE EM GERAL
A dimensão somática pode ser aprendida estudando suas principais funções. A somaticidade é componente fundamental do existir, do viver, do conhecer, do desejar, do fazer, do ter, etc...É através dela e de sua consciência que ‘realizamos’ o mundo tal qual é.

Ou seja, o corpo é essencial ao homem. Sem ele, o homem:

_ não pode se alimentar
_ não pode se reproduzir
_ não pode aprender
_ não pode se comunicar

É mediante o corpo que o homem é um ser social.

É mediante o corpo que o homem é um ser-no-mundo.

“Entre au monde à travers um corps”

Entre essas funções, algumas são essenciais para a compreensão da natureza especifica do ser humano. As funções de ‘mundanização’, de individuação, de autocompreensão, de posse, são as mais importantes e por isso as destacaremos especialmente.

FUNÇÃO MUNDANIZANTE
É uma das principais porque a somaticidade tem a condição de ‘mundanizar’ o homem, isto é, de o fazer um ser-no-mundo.

É por obra do corpo que o homem faz parte do mundo; ele se reconhece constituído dos mesmos elementos do mundo, sujeito às mesmas sortes e às mesmas leis por causa do seu corpo.

Esta verdade, que não foi ignorada pela filosofia clássica [mesmo que Platão e Aristóteles tenham-na interpretado d maneira oposta], adquiriu uma nova clareza e profundidade graças aos estudos dos existencialistas [Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty]. Eles mostraram que a somaticidade nos situa no mundo das coisas e nos faz participantes de suas restrições espaciais.

Como qualquer outro corpo, o nosso também se insere em uma situação espacial bem definida e deve ocupar sempre uma determinada porção do espaço.

A somaticidade faz do homem um ser-no-mundo: ela lhe designa uma determinada posição no espaço e o condiciona a ter relações ônticas apenas com as realidades que lhe são espacialmente próximas. Apenas estas entram junto com nosso corpo a fazer parte de nossa vida.” otivado por uma necessidade original, o meu corpo é ponto de referencia em relação ao qual cada coisa toma seu lugar e torna-se situada; eis-me, pois, transformando em centro de um imenso circulo – o meu ‘ambiente’: cada raio seu define, para mim,, uma perspectiva, e a sua circunferência é o meu ‘horizonte’. No interior deste circulo uma coisa qualquer não se transforma em objeto [objetum] para mim senão quando se encontra lá, defronte ao meu corpo; a uma distancia variável. O meu corpo é o centro e o foco de todo o universo espacial; o ambiente geométrico do meu ambiente vital; graças ao meu corpo localizado, atraio para mim todos os pontos do espaço; os concentro, os recapitulo, os interiorizo. Em compensação, adquirindo impulso desta posição me projeto em direção a todos os pontos do meu horizonte. Graças a este ritmo o universo inteiro reside em mim, enquanto eu habito todo o universo.”
Também a dimensão das coisas é relacionada com nosso corpo [quando éramos crianças a cadeira era mais alta...]. Assim também o movimento das coisas tem como ponto de referencia o nosso corpo.

FUNÇÃO EPISTEMOLÓGICA
Foi demonstrado que a somaticidade é, antes de tudo, instrumento necessário para uma autoconsciência. Não é de fato verdadeiro que na auto-consciência podemos nos desfazer do corpo, como afirmava Descartes. Realmente a autoconsciência se cristaliza na cinestesia: o sistema fundamental que possuímos do nosso ser, o qual se qualifica sistematicamente mediante as condições e disposições somáticas - me sinto bem ou mal, confortável ou não, sereno ou preocupado, etc. O quanto é importante a somaticidade como fator de autoconsciência se vê quando estamos indecisos se alguma coisa está acontecendo ao nosso redor ou se trata de situações puramente imaginárias, sonhadas ou reais. Então apalpamos o nosso corpo: esta é a verificação do nosso ser. Se encontramos a cabeça, as mãos, os pés, onde e como devem ser, damos um suspiro de alivio e voltamos a ficar tranqüilos.

Outra coisa que foi bem evidenciada pelos fenomenólogos contemporâneos é o caráter fortemente somático que tem o nosso conhecimento do mundo [e não raramente também de Deus]. O mundo é sistematicamente retalhado sobre categorias somáticas.

Para se fazer uma idéia de quão forte é a incidência da somaticidade na nossa concepção das coisas, basta que demos uma olhada num dicionário de qualquer língua e leiamos os artigos dedicados aos termos principais de nossa anatomia: descobriremos que esses termos são transferidos sistematicamente à denominação das coisas. Fala-se do pé da mesa, da cabeça do prego, do coração da alcachofra, etc. Isto mostra que nós lemos, pensamos e exprimimos o mundo não só mediante as categorias da razão, mas também mediante o nosso corpo vivido, tomado como princípio e forma de organização concreta. A nossa linguagem torna-se então algo de fenomenológica, empírica e óbvia.

FUNÇÃO ECONÔMICA OU DE POSSE
Com o exercício da função de posse, nós temos a impressão de que ocorre uma dilatação do nosso corpo, da nossa dimensão somática. Por esse motivo nós consideramos as coisas como possíveis prolongamentos do nosso corpo: “ Quando uma pessoa aprende a guiar um automóvel, de início tem a impressão de estar sempre sentada com o seu pequeno corpo em uma grande máquina que não conhece. Mas, depois aprende a identificar-se com essa máquina, adquire o sentido da massa externa do seu veículo. Funde-se com seu carro em uma unicidade de movimento. O veículo torna-se seu corpo. Se logo depois sofrer um acidente, não dirá: ”O outro bateu no meu carro com o seu”, mas sim: “O outro me bateu”. E freqüentemente sentirá isso como uma ofensa pessoal. O carro, como se vê,não é considerado apenas como instrumento de locomoção, mas sim como parte do próprio EU. O motorista não é apenas o patrão de seu carro; este realmente reage sobre ele, quase como se fosse o seu corpo, e lhe confere a sua marca. Uma análoga dilatação da autoconsciência está no trabalho numa fábrica, no escritório, no hospital, na leitura dos jornais ou sentado defronte ao televisor. O material ao redor do qual alguém trabalha é também o meio no qual ele se expõe. A sua existência se desenrola no jogo combinado entre ele e o seu ambiente. Torna-se, por isso, sempre mais difícil distinguir entre si o ambiente que lhe foi edificado pelos homens; de fato, os seus instrumentos não são apenas os meios dos quais se servem de maneira soberana; eles são, juntos, parte de sua figura, assim como ele é parte da deles. A relação que existe entre o homem e a máquina, se entendermos aqui a ‘máquina’ no sentido lato de obra humana, não é a relação entre sujeito e objeto, mas antes uma nova figura que une o homem e a máquina.”

FUNÇÃO ASCÉTICA
Filósofos, moralistas, escritores de coisas espirituais, tem sempre instituído alguma relação entre perfeição moral e espiritual, de uma parte, e uso do próprio corpo, de outra. Mas o fizeram de duas maneiras opostas. Alguns [Platão, Plotino, Agostinho], julgam que o corpo, com suas paixões, os seus instintos, as suas misérias e fraquezas, constitui um peso ou um laço para a alma e a impede na sua ascensão e, portanto, sugeriam àqueles que aspiravam a um grau elevado de vida moral e espiritual a mais completa separação do corpo. Outros [Aristóteles, Tomás, Rosmini], ao contrário, creram que o corpo, enquanto constitutivo essencial do homem, seja diretamente envolvido na sua perfeição: ela depende m grande parte dos hábitos somáticos que uma pessoa consegue atingir.

Para nós, este não é ainda o momento de discutir o valor das perspectivas antropológicas opostas em que se inspiram as ditas teorias. A experiência cotidiana nos diz que o exercício de uma virtude, como a prática de um vicio, é em larga medida devido aos hábitos que conseguimos adquirir com o nosso corpo. Por exemplo, os vícios do fumo e da bebida dependem essencialmente de hábito somático. Outro tanto vale também para a pratica da castidade, que para alguns parece tão árdua e mesmo impossível: também esta é uma questão de hábito somático. Quem controla por muito tempo os instintos do próprio corpo o habitua a ser continente. E como no corpo do não fumante se estabelece uma aversão ao fumo, assim no corpo do continente se forma uma repugnância pelo prazer carnal.

Não há, pois, nenhuma dúvida que o corpo tenha uma função capital a desenvolver também em relação ao ascetismo e à vida espiritual.

IMPLICAÇÕES ONTO-ANTROPOLÓGICAS
Entendemos por implicações onto-antropológicas da análise fenomenológica de uma dada dimensão do homem as implicações relativas ao ser do homem que estão contidas em tal análise.

Após uma análise da somaticidade podemos tirar algumas conclusões.

A somaticidade é um componente essencial do ser humano. Sem deixar de dar à alma o seu devido valor, a afirmação de Merleau-Ponty sintetiza esta primeira conclusão: “Eu sou o meu corpo.” Graças à minha somaticidade, eu estou situado em uma determinada posição, estou fechado dentro de certos confins, sou diferente dos outros seres: sou eu mesmo e não outras coisas; tenho a minha personalidade.

Todavia, eu sou infinitamente mais do que me consente ser o meu corpo. Há dentro de mim alguma coisa que me faz superar os confins que não são prescritos pelo corpo. Enquanto fisicamente sou pequeníssimo, intencionalmente posso tornar-me todas as coisas. Eu supero incessantemente o meu corpo: estou sempre além de mim mesmo e, não obstante a pequenez da minha configuração corpórea, consigo fazer minha a imensidão do universo.

A somaticidade, não obstante o seu intrínseco recolhimento, não impede o homem de possuir uma abertura radical, uma abertura que não olha somente para a frente, mas também para o alto: a somaticidade é transcendida tanto na direção horizontal quanto na vertical.

Embora essencial ao homem e embora revelativo do mistério profundo que o homem faz de si mesmo [o corpo é a epifania desse mistério], o corpo não é o homem. Eis as razões principais:

- Mesmo perdendo uma parte de meu corpo, sinto-me ainda substancialmente o mesmo;

- o corpo sem vida, ainda que permanecendo por algum tempo substancialmente o de antes, não é mais o homem;

- a autoconsciência distingue nitidamente o nosso ser do nosso corpo [Descartes];

- Nas nossas atividades há um aspecto físico e um aspecto psíquico [por exemplo, quando movo um braço, há o movimento do braço e a consciência de tal movimento; o que não se dá no caso dos fantoches e dos robôs, etc.].

Mas a finitude, a contigência, a corrupção, não parecem ser a última palavra da somaticidade humana. A somaticidade em si mesma parece inexoravelmente bloqueada entre certos confins e exposta à corrupção. Mas, ao mesmo tempo, a somaticidade humana leva consigo alguns sinais que constrastam com essas limitações. É uma somaticidade cheia de consciência, aberta no ser, estendida para a felicidade mais completa. É uma somaticidade que transcende a própria natureza da somaticidade e se transforma em epifania do espírito.

A somaticidade humana é efetivamente ‘fenômeno’, ou seja, manifestação de alguma coisa que a ultrapassa; é símbolo de uma realidade mais profunda, que a permeabiliza e transforma totalmente, à qual nós rosacruzes damos o nome de alma. É dessa realidade intima e profunda, que ela ao mesmo tempo esconde e revela que a somaticidade manifesta as condições e o estado definitivos. É no próprio corpo que lemos a bondade, a malicia, o prazer, a serenidade, a astúcia,a preguiça, a luxuria, a avareza, etc., de um homem.

Por isso, por mais necessário e esclarecedor que seja o estudo da corporeidade para a determinação do ser humano, esse estudo não pode ser suficiente: com efeito, ele não apenas não basta para revelar-nos o sr total do homem, mas não nos faz nem conhecer a verdadeira natureza da somaticidade humana. Ela poderá ser revelada apenas através do estudo daquela realidade íntima, de que o corpo é a epifania, ou seja, a alma.

GLOSSÁRIO

SER: O que existe – aquilo que é real; o ser excede o parecer. Na filosofia rosacruz poderíamos equipará-lo ao Cósmico.

SER-NO-MUNDO: Utiliza-se a expressão s.n.m. quando se deseja colocar o homem inserido num contexto que é o mundo – existir no mundo.

FENOMENOLOGIA: Filosofia de E. Husserl que se caracteriza principalmente pelo método que busca ‘as coisas mesmas’, objetivando reencontrar nos dados originários da experiência.

PARADIGMA: Conceito retomado por Thomas Khun em seu livro “A Estrutura das revoluções Cientificas”, que significa modo, modelo, padrão.

ESTRUTURA COISAL: Constituição de algo material; objetal; manifesto.

DIMENSÃO SOMÁTICA: Dimensão relativa ao corpo do homem enquanto expressão material.

ÔNTICO: Pertencente ou relativo ao ente.

ENTE: Coisa; substancia; objeto; aquilo que existe manifesto, expresso, visível.

ONTOLOGIA: Parte da filosofia que trata da natureza do ser, do ser enquanto ser, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um do seres.

O Homem _ quem ele é? [Parte III] Homo Vivens

HOMO VIVENS – [A VIDA HUMANA]
Uma das propriedades fundamentais do ser humano é a vida. O homem é homo vivens: ele é humano enquanto é vivo. Enquanto o fenômeno da vida é um dado certo, a sua verdadeira natureza e a sua origem são coisas muito complexas e misteriosas.

A vida abrange uma forma vastíssima de seres [dos moluscos às plantas, aos animais, aos homens] e se apresenta com propriedades marcantemente diversas nos grupos em separado. Nossa tarefa é procurar descobrir aquele denominador comum que se realiza em todos os seres viventes.

Tal estudo é importante para nós como estudantes do misticismo porque de sua consideração depende o próprio modo de ver as coisas no plano filosófico, ético, místico e político. Conceber a vida de modo mecanicista ou vitalista significa iniciar a própria existência segundo regras éticas e espirituais diametralmente opostas. Por isso, o estudo da vida dificilmente pode ser conduzido de modo frio, fragmentado, desapaixonado, pois muito alta é a aposto em jogo.

Conforme afirmamos no artigo anterior, se para o estudo da somaticidade do homem não se consegue abordá-lo na sua plenitude pelo método experimental, sendo necessário o método fenomenológico, o que dizer do estudo da vida?

A distinção entre um e outro é que enquanto um [o cientifico ou metodológico] procura provar suas teses pelo encantamento lógico de suas experiências, desvendando suas causas e leis subjacentes, o outro [o experiencial] está associado à vivência, à característica de expressão de um fenômeno; é a visão fenomenológica. O primeiro método teve seu apogeu no final do século XIX, durante o postivismo europeu. O segundo tem nos pensamentos d Merleau-Ponty Martin Heiddger a representatividade de seu conteúdo, pois afirmam que a vida não pode ser fragmentada ou muito analisada, porque constitui-se de ‘algo’ muito mais sutil e que uma abordagem cientifica pode colher apenas alguns aspectos superficiais.

Para abordar a vida em toda sua plenitude e originalidade, é preciso vivê-la, senti-la, percebê-la.

Os vitalistas sustentam sua tese com os seguintes argumentos:

ð Não se pode reduzir um organismo à sua máquina, ou seja, os fenômenos de autoconstrução, de autoconservação, de auto-regulação, de auto-reparação, são típicos de organismos vivos.

Como estudantes do misticismo, sabemos que tais propriedades existem pela presença da inteligência cósmica em nossas células, bem como em todo universo.

ð A máquina só funciona talvez perfeitamente sob condições ideais. O organismo vivente, por sua vez, trás ‘em potência’ a improvisação e a utilização das circunstancias; é uma tentativa em todos os sentidos.

As máquinas são invenções do homem como imitação dos organismos vivos, dos quais não estão nunca em condições de atingir a perfeição.

A máquina é posterior ao organismo em todos os sentidos, histórico e ontológico, e, por isso, o organismo nunca poderá ser reduzido a uma máquina.

O vitalimso não morreu, na verdade há um continuo rejuvenescimento de sua fundamentação, a despeito das mais recentes descobertas científicas.

A ciência não sepultou realmente o vitalismo, pois ele voltou a florescer depois do positivismo com Bérgson, Dilthey, Heidderger, reconquistando seu prestígio com Teilhard de Chardin, Gadamer e outros.

A eficiência da física e o triunfo da matemática contribuíram para que filósofos como Descartes, Gassendi e cientistas da época sustentassem ser possível dar uma interpretação mecanicista da vida, aplicando à biologia modelos tirados da mecânica clássica e da física em geral.

Os mecanicistas sustentam sua tese atacando os vitalistas com os seguintes argumentos:

ð O vitalismo não tem provas a seu favor, mas somente suposições e preconceitos; investiga forças desconhecidas que nenhuma demonstração ou verificação cientifica pode documentar.
ð O vitalismo é vitima do antromorfismo.

Trata-se de abandonar a idéia de que seja privilegiada a esfera dos viventes, à qual pertencemos. Positivamente, trata-se de afirmar e adotar de modo sempre amplo o grande principio da indiferença da natureza.

Dizem os mecanicistas que o vitalismo é uma máscara que serve de cobertura a certas concepções metafísicas, éticas e religiosas das coisas, de certos valores morais, etc.

Na verdade,vitalismo e mecanicismos não são incompatíveis, eles se completam, sendo portanto legítimo concluir que o estudioso tem a possibilidade de ser mecanicista quando assume o ponto de vista cientifico, e vitalista quando ultrapassa o ponto de vista cientifico e busca uma explicação exaustiva do fenômeno da vida.

INFORMAÇÕES CIENTIFICAS
Do ponto de vista cientifico, a vida é uma particular organização da matéria. A biologia molecular demonstrou que a substancia vivente se distingue da não-vivente graças a um modo diferente e muito mais complexo de estruturação: a substancia não-vivente ou inorgânica é constituída de moléculas extremamente simples, por exemplo, a molécula de água é formada de um só átomo de oxigênio e de dois de hidrogênio; a substancia vivente, ou orgânica, por sua vez, é constituída de moléculas extremamente organizadas e complexas.

As moléculas da substancia vivente são formadas em noventa e nove por cento pela associação dos átomos pertencentes a quatro elementos: carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio. O resultado da sua associação é representado pelos constituintes orgânicos, que são denominados carboidratos, gorduras, proteínas, ácidos nucléicos, os quais são os constituintes fundamentais da célula. Cada um desses complexos desenvolve, no harmonioso equilíbrio do ciclo vital, uma tarefa bem especifica. Os carboidratos e as gorduras são as fontes principais de energia das células. A reunião ou síntese d moléculas de substancias realiza-se graças ao estímulo e ao comando de um tipo de proteínas: as enzimas. Trata-se de moléculas químicas muito complexas, que cada célula produz segundo as substancias que deve desagregar ou sintetizar. A enzima pode ser considerada como um verdadeiro e próprio laboratório químico, que toma certas substancias e as elabora segundo certo programa; o seu poder de ação é extraordinário.

No que tange aos ácidos nucléicos, a eles cabe a tarefa de conservar e de transmitir o código genético. O ácido que exerce essa função chama-se DNA [ácido desoxirribonucléico]. As moléculas desse ácido fundamental para a vida concentram-se em número relevante em todas as células de todos os seres vivos.

Mas nestes últimos anos a biologia nuclear deu passos gigantescos não somente na direção de um maior conhecimento da célula, mas também no de uma sua parcial reconstrução.

Outra descoberta importante é a realizada por alguns estudiosos da Rockfeller University, de Nova Iorque: a criação em laboratório da enzima ribonuclease, que é a enzima preposta à cisão do ácido ribonucléico que, como sabemos, é a molécula química que serve de mensageiro para transformar o código genético que atua quando uma célula se reproduz. O edifício químico da enzima ‘ribonuclease’ é composto de uma cadeia de cento e vinte e quatro aminoácidos. Trata-se da menor enzima conhecida. A maior tem uma cadeia de dez mil peças.

Essas descobertas geniais não devem, porém, criar a ilusão de que estamos próximos de desencadear o mistério da criação da vida em síntese. O que fica bem claro é que a célula é um objeto muito complicado e que será decerto extremamente difícil para nós sintetizá-lo de ponta a ponta.

QUE É A VIDA DE UM PONTO DE VISTA NÃO-CIENTIFICO E, MAIS ESPECIFICAMENTE, DO PONTO DE VISTA FILOSÓFICO?
Se colocarmos a questão assim, de modo geral, quase que provavelmente o homem comum responderá: a vida é amor, a vida é luta, a vida é dor, a vida é esperança, ou qualquer coisa semelhante.

Ora, a vida do homem é, indubitavelmente, tudo isso e muitas outras coisas ainda, e apenas tomando em conta essas múltiplas expressões da vida é possível alcançar uma determinação de sua verdadeira natureza e, por conseguinte, a elaboração de uma antropologia filosófica que coadune com nossos princípios místicos e contemple a questão da vida de modo muito mais amplo.

Todavia, a vida não é um fenômeno peculiar ao homem, mas um fenômeno que se manifesta em muitíssimas outras coisas. E aquilo que nós queremos conhecer antes de tudo é a natureza da vida entendida como propriedade comum a todos os seres animados e não como qualidade própria do homem. Nós nos perguntamos: o que é esta propriedade singular e extraordinária pela qual dizemos que uma planta é viva, enquanto que uma viga, um pedra, dizemos serem mortas? É possível desenvolver uma fenomenologia da vida?

A fenomenologia, já sabemos, não é a especulação abstrata, mas uma observação concreta: é um exame de casos particulares com o fito de tornar-lhes o sentido profundo e universal. Por isso, fazer fenomenologia da vida significa escolher determinado grupo de seres viventes e observar as propriedades das suas manifestações vitais.

Para uma primeira aproximação, podemos pôr em confronto um ser seguramente não vivente com um ser seguramente vivente, por exemplo, um bloco de mármore e um cão.

O bloco de mármore é parado, inerte, sem reação, sem mudanças, não cresce nem diminui se não é exposto a influxos externos, não se estraga, não se desfaz. Por sua vez, o cão move-se, ingere outras substancias, assimila-as, desenvolve-se, gera outros cães e se multiplica, reage à luz, aos rumores, ao contato com outros corpos, late, zanga-se, morde...adoece e morre. Essa fenomenologia, bastante sumária, nos diz que o vivente e o não-vivente têm propriedades essencialmente diferentes, de cujo confronto podemos derivar uma certa idéia da vida.

A vida caracteriza-se como:

Poder de crescer e desenvolver-se, tomando certa quantidade de matéria do ambiente circundante e reorganizando-a segundo as estruturas da substância orgânica. Na escolha do material conveniente para o próprio desenvolvimento, o organismo vivente revela uma habilidade e uma sagacidade excepcionais.

Poder de responder aos estímulos externos ou capacidade de excitação. Com ela o organismo ordena a sua relação com os objetos circundantes, que o golpeiam com os seus estímulos. Ele se relaciona com eles não de forma passiva, mas se insere ativamente no mundo, que se torna, assim, o seu ambiente.

Poder de s reproduzir segundo a sua própria espécie. Dado que crescer, se reproduzir, se irritar, são formas de movimento, os filósofos definem geralmente a vida como uma espécie de movimento. Nenhuma pedra, nenhum objeto sem vida, faz o esforço que mesmo a mais simples forma de vida necessita fazer, pelo menos, nos sugere a experiência e poderemos começar com o certificar que a diferença entre ‘vida’ e ‘não-vida’ consista nessa capacidade de fazer esforço. Poderemos, depois, definir a morte como a perda dessa capacidade.

Segundo São Tomás, “o nome vida se usa para indicar uma substancia à qual cabe mover-se por si mesma, por força de sua própria natureza.”

Porém, o movimento que caracteriza a vida não é um movimento qualquer; ele possui propriedades bem precisas. Quanto à origem, o movimento da vida é espontâneo, ou seja, não vem do exterior, mas sim do interior; é um ‘motus ab intrinseco’. No entanto, não é totalmente espontâneo: a ação vital não é um início absoluto sob todos os aspectos; ela depende, sim, de diversos fatores, condições e causas externas. Todavia, esses fatores, essas causas externas não bastariam para produzi-la se o ser já não fosse vivo.

Aqui nos encontramos defronte a um principio metafísico fundamental: “quidquid movetur ab alioo movetur” [tudo o que se move é movido por terceiros]. Mas como é salvaguardado tal principio quando se trata de seres viventes? A solução, segundo Aristóteles, é a seguinte: um ser vivente, uma parte move a outra, porque é um ser organizado que comporta diversos tipos de órgãos; mas se trata sempre de partes de um só ser, de modo que, considerando-o em seu todo, vê-se que a sua ação, o seu movimento, fica no sujeito.

Nesse sentido, a vida é essencialmente movimento. Mas se reconhece isso e também que se trata de um movimento que não é causado pelo exterior, mas sim pelo interior, é fácil compreender como tal movimento não é explicável senão reconhecendo a existência de um principio intrínseco, uma fonte interna que o produz. A esse principio interior das manifestações vitais, dos tempos mais remotos, os filósofos e o homem comum deram o nome de alma.

Portanto, a alma é o principio primeiro do movimento vital.

Também no que concerne à origem da vida, manteremos a nossa distinção entre discurso cientifico e discurso filosófico. Só que neste caso preferimos inverter a ordem do estudo e começamos com o filosófico ao invés do cientifico.

Sob o aspecto filosófico, o problema da origem da vida não apresenta dificuldades singulares.

Concordamos que a vida tem como seu ultimo principio a alma. Agora, mesmo não havendo ainda explorado a natureza ultima desse principio e a sua origem, uma coisa é clara: ela não pode ter origem de baixo, da matéria, porque se fosse assim não se compreenderia por que apenas uma parte e não toda a matéria é dotada de alma. Precisa-se então admitir que a alma tenha origem do alto, mediante a ação de um Ser Inteligente. Recentes descobertas parecem confirmar essa hipótese. Que o homem consiga sintetizar a vida constitui um argumento a favor e não contra a tese de que a alma surge mediante a ação de um ser inteligente: o homem, de fato, é uma expressão deste Ser, sendo por conseguinte um ser inteligente!

Ao problema da origem da vida os cientistas [mas não só eles] deram muitas soluções, que contudo podem ser reduzidas a quatro tipos fundamentais:

1. Criação direta por parte de Deus;
2. Evolução segundo um plano estabelecido por Deus;
3. Geração espontânea;
4. Geração por evolução, por puro acaso.

A solução da criação direta por parte de Deus foi acolhida também por muitos cientistas do passado [inclusive Darwin, que atribuía à ação direta de Deus a origem de quatro ou cinco protótipos viventes] e foi rigorosamente reafirmada por alguns cientistas contemporâneos, particularmente por Servier.

“... ela não pode ter origem de baixo, da matéria porque se fosse assim não se compreenderia por que apenas uma parte e não toda a matéria é dotada de alma.”

A solução da geração espontânea, também abordada em nossas monografias, afirmou-se no início da época moderna, conquistando de improviso todo o mundo cientifico, incluindo pensadores de talento como Descartes e Newton. Essa solução afirma que a vida é originária da transformação espontânea da matéria inerte em matéria vivente.

Posteriormente a tese da geração espontânea foi definitivamente afastada.

Neste século, foi proposta e reproposta por vários cientistas a teoria da geração da vida na matéria por acaso. Em resumo, essa teoria afirma que através de uma combinação casual de elementos químicos formou-se a primeira célula viva; por ela foi estabelecido, imediatamente, um código genético formado por uma série de moléculas de DNA, que assegurou definitivamente a transmissão da vida.

Mas como ocorreu a distinção entre todos os seres vivos que conhecemos? Isso é devido ao puro acaso. ”Através de uma série de gerações e seleções,uma molécula de DNA, que no inicio poderia significar tantas coisas, acabou sendo associada a um dado sistema de moléculas, que juntas constituem as células do organismo por nós chamado formiga, por exemplo: aquele DNA se reproduzirá sempre idêntico, se associará sempre às mesmas moléculas e se encontrará sempre nas células de formiga e nunca em outras.”

Enfim, a tese é contraditória, porque de um lado ela postula a irreversibilidade do primeiro DNA, enquanto de outro pretende que o DNA seja passível de erros, para poder explicar a origem de novas espécies de seres vivos. É um principio extremamente redutivo: ele elimina a possibilidade de colher o ‘sentido’ e a intencionalidade de qualquer coisa.

“Se, de tempos em tempos, os cientistas pensam que podem produzir a vida in vitro, não fazem nada além de prolongar por um ou dois séculos a velha teoria da geração espontânea. O vírus que eles querem fazer nascer em um cristalizador são os descendentes diretos dos camundongos que, segundos os filósofos do século XVI, se formavam do contato de uma camisa suja com uma porção de semens, isto é, de quimeras. Nem mesmo a síntese das proteínas dará a chave do mistério da reprodução.”

“Nunca, no estado atual de nossos conhecimentos, a vida pôde nascer da matéria em laboratório, enquanto, pelo contrario, podemos constatar correntemente que a matéria pode nascer da vida.”

Uma teoria intermediária entre a concepção da origem da vida por criação direta da parte de Deus e a oposta é aquela que afirma: a vida teve origem por evolução programada, ou seja, a evolução se realiza segundo um programa preestabelecido por Deus, e Deus estabeleceu que das forças de que dotou inicialmente a matéria, num certo momento, surgisse a vida. Aliás, essa é a que mais se coaduna com a visão rosacruz, na qual da inteligência cósmica presente na natureza, e cujo movimento é a expressão desta inteligência, manifesta-se a ordem geométrica do aparente caos, evidenciando que tudo existe potencialmente na mente do Criador.

Essa hipótese parece-nos filosoficamente aceitável; tanto quanto ao seu valor cientifico como místico. Parece-nos que o cientista não está em condições de refutá-la com nenhum argumento válido e decisivo.

A VIDA HUMANA
O homem é um ser vivente. Esse é um fato indiscutível que tomamos em consideração desde o inicio deste artigo. Antes, o homem é o vivente por antonomásia. Com efeito, embora havendo tantas coisas que classificamos como viventes, entre todas há uma que consideramos particularmente rica de vida: o homem. De outro lado, sabemos que privar o homem da vida e destruir o seu próprio ser são a mesma coisa.

Isso significa que o homem é essencialmente vivente; a vida faz parte de sua essência. Por isso, para compreender o homem é necessário compreender antes o que é a vida.

Mas o estudo da vida em geral que efetuamos aqui não parece lançar muita luz sobre o ser humano. A filosofia tem dito somente que é um ser dotado de movimento interior, autógeno, particularmente rico, variado e intenso.

Em geral acolhemos favoravelmente as informações que a ciência vem acumulando acerca do fenômeno da vida, na medida em que se apresentem como seguras e definitivas. Se refutamos certas explicações cientificas, fizemo-lo somente porque se tratam de pseudo-explicações. Assim, quando alguns cientistas nos dizem que a origem da vida tem início por acaso, não podemos estar de acordo com eles, porque isso não é dar uma solução ao problema, mas tapar os olhos e recusar-se a vê-lo.

Por isso, se queremos compreender o homem através da janela da vida, não podemos contentar-nos com informações ainda muito incompletas que nos fornece a ciência e nem tampouco com os poucos e magros dados que nos ofereceu até agora a filosofia.

Para tomar o homem através da janela da vida, não devemos em consideração a vida em geral, ou seja, as propriedades de que a vida se reveste em qualquer ser vivente, do molusco ao homem, mas devemos examinar a vida humana como tal. É a vida humana que caracteriza o homem e é, portanto, dela que é necessário partir se quer ter uma compreensão autentica do seu ser.

O ‘homo vivens’ destaca-se nitidamente dos outros seres viventes pelo tipo de vida que o caracteriza, uma vida consciente de si mesma. Aqui está a chave da compreensão deste artigo, o fato de que o homem tem consciência de si mesmo, ou seja, os níveis de consciência vão aumentando conforme evolui a espécie ou expressão desta Inteligência Criadora. Diz-se em concordância com este pensamento que: Deus dorme no mineral, repousa no vegetal e acorda no animal.

“L´home cést lê vivant separé de la vie par la science et séssayant à rejoindre l avie à travers la science.” [O homem é o vivente separado da vida pela ciência e tentando reunir-se à vida através da ciência].

A vida do homem é especialmente diferente da dos animais e das plantas. A linguagem ordinária mostra essa consciência quando diz de um homem que leva a vida de um animal. Platão declara que assinalar como fim da vida humana o prazer é reduzir o homem a um molusco.

A vida do homem s distingue da dos animais e dos outros seres viventes pelos níveis espirituais que atinge e pelas dimensões sociais que alcança: por isso se pode falar em vida mística, vida espiritual, vida intelectual, vida social, vida política, etc.

Distingue-se, além disso, pela atitude nova que o homem possui nos confrontos da vida: o homem coloca-se o problema da vida, aprecia a beleza da vida, tende a transcender os limites do espaço e do tempo em que a vida está confinada. Ele pode elaborar o seu próprio conceito de vida perfeita e é por essa vida que ele sente um fascínio ardente. O homem é dono da própria vida, pode em larga escala controlá-la, dirigi-la, aperfeiçoá-la, segundo o seu próprio livre-arbítrio.

A vida humana caracteriza-se, enfim, por uma riqueza e variedade estupendas. Os animais, mesmo os mais evoluídos, fazem sempre as mesmas coisas: comem, bebem, dormem, reproduzem-se, e o fazem sempre do mesmo modo, com extrema monotonia. Ao contrário, os homens tem uma vida variadíssima: dormem, mas são capazes de resistir ao sono por dias e dias, em caso de necessidade; bebem e comem, mas servindo-se de maior variedade de comidas e bebidas e segundo os mais diversos modos; divertem-se, combinando continuamente os próprios passa-tempos: estudando, pensando, rezando, etc.

Em suma, a vida humana é uma vida que atinge níveis espirituais muito elevados, níveis que procura sempre superar. O seu olhar está sempre apontando para a frente. Por isso, o seu verdadeiro significado pode ser colhido apenas descobrindo a finalidade para a qual é orientada. Qual é a finalidade ultima da vida humana?

Ainda é cedo para descobri-la; existem muitas coisas para estudar no homem antes de se arriscar uma resposta para este difícil problema. Mas o resultado é certo: o significado ultimo da vida humana não pode ser tratado nem de baixo nem do passado, porque ela aponta sempre para o alto e para o futuro.

Um outro resultado importante do que vimos dizendo é que a vida, esse fenômeno extraordinário, é ostensiva do ser próprio do homem apenas se for tomada em toda a sua riqueza e complexidade; uma riqueza e complexidade distendidas para transbordar sistematicamente todos os confins que lhe são impostos pelo ambiente sócio-cultural em que se encontra.

O Homem _ quem ele é? [Parte IV] Homo Sapiens

HOMO SAPIENS_ O Conhecer Sensitivo e Intelectivo
O homem é um ser dotado de conhecimento: é ’homo sapiens’. Estruturaremos nossa abordagem do seguinte modo:

1. Fenomenologia do conhecer;
2. Psicologia das várias atividades cognitivas;
3. Principais características do conhecimento intelectivo;
4. Implicações antropológicas do conhecimento intelectivo;
5. Implicações antropológicas do conhecimento humano.

FENOMENOLOGIA DO CONHECER
Conhecer é ser consciente de alguma coisa. Conheço uma maçã quando a identifico ou quando estou consciente de certas propriedades a que chamo maçã.

O conhecimento humano abarca tudo de que o homem pode tornar-se consciente mediante suas faculdades sensitivas ou intelectivas.

De Platão m diante, quase todos os filósofos – Aristóteles, Agostinho, São Tomás, Bacon, Descartes, Lock, Hume, Kant – distinguem o conhecimento em 4 formas:

1. sensitivo
2. imaginativo
3. intelectivo
4. místico

CONHECIMENTO SENSITIVO
É aquele que se obtém através dos sentidos. Diz respeito às coisas materiais na sua singularidade e é amplamente estudado em nossas monografias.

A questão da ‘singularidade’ justifica-se porque colhemos essas impressões como uma qualidade, uma adjetivação de algo. Por exemplo: vejo essa ou aquela cor, essa ou aquela árvore, não a cor, a árvore. Ouço esse ou aquele assobio, e não o assobio.

Que importância tem o conhecimento que nos é fornecido pela visão, pela audição, pelo paladar, etc.?

É comum pelo enfoque metafísico de nossos ensinamentos atribuirmos pouco ou nenhum valor ao conhecimento oriundo dos sentidos, porém numa análise antropológica torna-se necessário identificar seu real valor.

Mesmo os platônicos, cuja linha mais coaduna com os ensinamentos rosacruzes, que sustentam uma origem inata do conhecer racional, devem admitir que o homem não pode tomar consciência desse conhecimento de outro modo a não sr mediante uma investigação por parte dos sentidos. A maior parte, porém, está de acordo com Aristóteles, o qual acreditava que a mente nasce como uma ‘tábula rasa’ e que no intelecto não existe nenhum conhecimento que não seja transmitido através dos sentidos.

Sabemos, como estudantes, que o conhecimento não pode ser completamente reduzido ao dos sentidos, porém reconhecemos neles o seu ponto de partida. Aquele que não possui a vista ou não ouve encontra-se na impossibilidade de formar certas idéias.

Vale lembrar que segundo vários filósofos a visão é o sentido mais importante, porque, por instinto, os homens desejam o saber e essa oferece maior contribuição ao conhecimento do que os outros sentidos.

CONHECIMENTO IMAGINATIVO
A fantasia é uma faculdade extremamente importante e característica do homem, mais pela sua função prático do que pela sua função especulativa. Ela serve como uma ponte entre os sentidos e a razão, porque com seus sonhos, seus projetos e suas visões utópicas, a fantasia alimenta aquele impulso de autotranscendência que move continuamente o homem e o empurra mais para o alto.

Segundo H.Cox, graças à fantasia o homem possui a capacidade de ‘reviver e de antecipar, de refazer o passado e de criar um futuro completamente novo. A fantasia é o húmus de onde se desenvolve a capacidade do homem de inventar e de renovar. A fantasia é a fonte mais rica da criatividade humana.”

CONHECIMENTO INTELECTIVO

Como ‘homo sapiens’, o homem raciocina e chega a certas idéias refletindo sobre outras, chega à existência de algo pela existência de outra coisa.

O homem sabe coordenar os conhecimentos de forma sistemática; divide-os, classifica-os segundo os seus argumentos e obtém, assim, teorias gerais para as várias esferas da realidade, como o quer a ciência.

Que capacidade maravilhosa!

É um re-flexo das coisa na mente do homem, já que esta última lhe conferiu amplitude. É o Ser se manifestando através dos entes no devir da existência ou, numa linguagem mais rosacruz, o Cósmico se expressando através de Nous.

Talvez a forma mais conciliável de se conceber uma TEORIA DO CONHECIMENTO seja constituí-la das duas grandes linhas que será tratada no conhecer místico.

CONHECIMENTO MÍSTICO
Ambos, platônicos e aristotélicos, têm razões suficientes para fundamentar que sua teoria é a mais fidedigna.
A primeira grande linha, a platônica, sustenta que a alma tem uma noção natural de todas as coisas, ou seja, o conhecimento é ‘anmnese’, é uma forma de ‘recordação’ daquilo que já existe desde sempre no interior de sua alma.

Acredita-se que a doutrina da ‘anamnese’ surgiu em Platão através de influências órfico-pitágoricas, segundo as quais a alma é imortal e renasce muitas vezes. Conseqüentemente, a alma viu e conheceu toda a realidade, a realidade do outro mundo e a realidade deste mundo. Sendo assim,m conclui Platão, é fácil compreender que a alma pode conhecer: ela deve extrair de si mesma a verdade que já possui desde sempre, e esse ‘extrair de si mesma’ é ‘recordar’.

Argumenta ainda Platão: com os sentidos, constatamos a existência de coisas iguais, maiores e menores, quadradas, circulares e outras semelhantes. Entretanto, com atenta reflexão, descobrimos que os dados que a existência nos fornece – todos os dados, sem exceção - não se equacionam jamais de maneira perfeita com as noções correspondentes que indiscutivelmente possuímos: nenhuma coisa sensível é ‘perfeitamente’ e ‘absolutamente’ quadrada ou circular, mesmo que possuamos noções de igual, de quadrado e de circulo ‘absolutamente perfeitos’.

Então, é necessário concluir que existe um certo desnível entre os dados da experiência e as noções que possuímos; as noções contêm algo mais do que os dados da experiência. Qual a origem, porém, desse algo mais? Se, como vimos, ele não deriva nem pode estruturalmente derivar dos sentidos, isto é, de fora, não podemos deixar de concluir que sua origem está dentro de nós. Entretanto, ele não pode provir de dentro de nós como criação do sujeito pensante, pois o sujeito pensante não ‘cria’ esse algo mais, apenas o ‘encontra’ o ‘descobre’; ele, ao contrário, se impõe ao sujeito objetivamente de forma absoluta, independentemente de qualquer poder do sujeito.

Conseqüentemente, os sentidos nos proporcionam apenas conhecimentos imperfeitos. Nossa mente [nosso intelecto], ao se deparar com os dados dos sentidos, voltando-se para a própria profundeza, quase dobrando-se sobre si mesma, encontra neles a ocasião para descobrir em si os conhecimentos perfeitos correspondentes. E, visto que não os produz, não resta senão concluir que ela os encontra em si e os extrai de si como algo ‘originariamente possuído’, ou seja, deles ‘se recorda’.

Hoje a solução platônica encontra poucos protestos, pois de outro lado, a segunda linha, a dos aristotélicos, sustenta que estamos profundamente convencidos de que as causas daquilo que ocorre neste mundo se encontram no âmbito do mundo e, portanto, que as causas do que ocorre no homem se encontram também no mundo e, sobretudo, no homem. Outra razão é a consideração de que, depois de tudo, o nosso conhecimento não é dotado daquele caráter de absoluta certeza, de imutabilidade, de eternidade que lhe atribuía Platão. Hoje estamos mais do que conscientes dos limites do nosso conhecer. Sabemos que ele é, em todos os casos, ‘finito e mutável’, parcial e relativo e que comporta sempre uma boa dose de opinião.

Ficam, pois, assim as coisas: admitindo o fato de um conhecer humano portador de um caráter intelectivo – isto é, não redutível aos sentidos e à imaginação – e excluída a possibilidade de explicar a origem, a priori, com uma intervenção extramundana, devemos concluir que a fonte de tal conhecimento se encontra no próprio homem. Essa fonte se chama intelecto ou, então, razão ou mesmo mente. Por meio dessa faculdade, o homem consegue tirar, a partir dos dados que lhes são fornecidos pelos sentidos, idéias gerais, juízos universais, sistemas de informação. Obtém isso com três operações distintas: aprendizagem, juízo e raciocínio.

Na aprendizagem, o intelecto abstrai a idéia universal; no juízo, associa ou mesmo separa duas idéias; no raciocínio, extrai uma nova idéia das idéias precedentes.

E para nós, rosacruzes, qual seria a mais aceitável?

Aquela que concilie as duas, pois sabemos que da fonte cósmica ou da mente universal flui a inspiração que ordena, organiza, ‘ilumina’ as informações obtidas através dos sentidos. Através de uma analogia simples, podemos por nossa própria conta e risco fazer algumas inferências: se de súbito nossa mente fosse tomada por uma iluminação cujo conteúdo fosse parco ou insuficiente, pouco teríamos para ‘iluminar’; e do mesmo modo, se adquiríssemos informações-dados, elementos a ponto desse aculturamento consistir num grande depositário, de nada valeria se não fosse organizado num todo inteligível por uma iluminação.

Portanto, o conhecimento místico é aquele ‘obtido’ pela experiência direta com o Divino. Aliás, a mística tem essa característica de conferir ao individuo a vivencia que possibilita a visão de todo, onde o fruto é colhido pela inspiração e é resultado, muitas vezes, de reflexão profunda.

A máxima de nossos ensinamentos sintetiza essa explicação:

“A verdade é o fruto da árvore do conhecimento e não a própria árvore.”

Afirmamos no inicio que o homem é homo sapiens – cabe recolocar a assertiva como homo sapiens-sapiens, qual seja, o homem que sabe e sabe que sabe, ou tem percepção de sua consciência.

O que torna possível essa façanha, essa consciência das coisas e essa consciência de si próprio?

Essa percepção tratada pela filosofia como a relação sujeito-objeto denominada auto-consciência, concebida não como uma mera associação de sutilíssimos graus de percepção [Hume], mas como autentica introspecção,e algo essencialmente imaterial, espiritual.

Depois de havermos examinado a natureza da autoconsciência, perguntamo-nos: Qual é o seu alcance? Que informações nos oferece com relação ao nosso ser? Na autoconsciência, o que alcançamos de nós mesmos? O que a autoconsciência nos diz que somos?

O estudo da autoconsciência dá-nos, segundo renomados pensadores, resultados acerca da natureza do ser do homem, tais como:

- o homem é autoconsciência; é um ser que pensa a si mesmo [Descartes, Fichte, Teilhard];

- o homem é um ser encarnado; é consciente de ter um corpo e todos os seus atos de autoconsciência são filtrados através do corpo [Aristóteles, Merleau-Ponty, Marcel];

- o homem é um ser social; ele conhece no encontro com os outros [Marx, Mounier, Buber, Marcel, Scheler];

- o homem é um ser finito: pois que nasce e morre, é consciente de que o seu EU não coincide com o Ser [Guardini, Wittegenstein, Adorno];

- no homem há uma profunda distinção entre o que é e o que pode ser: ele tem consciência de que o que é atualmente não é tudo o que pode e deve ser [Heidegger, Bloch];

- o homem é livre: ele sabe que é patrão do próprio ser, da própria vida, do próprio futuro [Sartre, Garaudy];

- é porém, um ser condicionado: depende da natureza e da sociedade no seu ser e no seu agir [Spinoza, Marcus, Lévi-Strauss];

- em certa medida, é também alienado: sente-se diferente, pior do que deveria ser [Hegel, Marx, Nietzche, Tilich, Hidegger];

- transcende a matéria, o tempo, o espaço, o absoluto [Platão, Aristóteles, Plotino, Fichte, Buber].

A autoconsciência realiza plenamente a si mesma, isto é, esgota a própria compreensão, somente abrindo-se até a percepção de Deus. Esta grande verdade sempre afirmada por uma das mais antigas, autorizadas e duradouras correntes filosóficas, a platônico-agostiniana [que tira sua origem de Sócrates ou Platão, prossegue com Plotino e Agostinho, e nos tempos modernos é validamente representada por Descartes, Leibnistz Hegel, Rosmini, Blondel, etc] parece ser a única resposta adequada ao movimento de auto-transcendência situada em cada conhecimento intelectual, em particular no conhecimento de tipo afetivo.

A capacidade de refleti, para nós estudantes rosacruzes, e principalmente termos concomitantemente a consciência de que estamos fazendo uma reflexão assumem um valor decisivo ao associarmos que tal capacidade se deve ao fato de que o nosso eu é percepção pura do Cósmico, é claro, microcosmicamente re-fletida.

O Homem _ quem ele é? [Parte V] Homo Volens

Homo Volens – Vontade – Liberdade – Amor
“Homem de vontade”, “homem de caráter”, “homem decidido”, são expressões usadas para designar o tipo ideal de Homem. No entanto, vontade, caráter e decisão acham-se potencialmente em todos os homens. Tal característica é amplamente estudada e atribuído o nome de “Poder da Vontade.”

O enfoque antropológico da vontade não é menos valioso do que aquele visando resultados psíquicos mentais. Temas como projeção psíquica, lembrança de sonhos, criação mental, cura metafísica, projeção de pensamentos, vibroturgia e a própria harmonização cósmica estão relacionados em algum grau com o poder que advém do uso correto da vontade. O Dr Lewis, em sua obra “Envenenamento Mental”, mostra-nos o quanto a auto-sugestão negativa pode ser destrutiva à nossa saúde e à vida mental harmonizadas.

Embora essencialmente tratando-se da mesma coisa, nosso convite é de, mais uma vez, o estudante ‘focar’ a vontade como atributo humano; estudá-lo nas suas implicações antropológicas, ou seja, enquanto algo peculiar ao Homem enquanto tal. O Homem, além de dotado d somaticidade, de vida e de inteligência, explorados nos artigos anteriores, se nos apresenta também dotado de vontade: é Homo Volens.

Para estudar a vontade humana será necessário investigar assuntos que, devidamente associados, lançarão luz sobre a questão da vontade. Questões universais como a liberdade, as soluções para ela, a sua existência e natureza, e a questão do amor serão tratados neste contexto para a nossa proposição final.

As ações do homem nascem de suas decisões. Ele estuda porque quer estudar, ama porque quer amar, e assim por diante. Esse querer, essa capacidade de auto-determinação, caracteriza o homem tão profunda e especificamente quanto o conhecer, o falar, o trabalhar. Estudiosos vêem no querer a verdadeira característica especifica do homem.

Há, antes de se definir a vontade, de enquadrá-la no homem e na natureza. Aristóteles, no inicio de sua “Ética Nicamanus” – Livro I, Capítulo I – afirma:

“Toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito, tendem a algum bem; por isto foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem.”

O Bem é o objeto, a coisa que suscita, provoca e estimula a inclinação, o apetite. O querer é definido como uma forma de inclinação, de tendência ou de apetite. Por apetite entende-se qualquer inclinação para o bem.

Expliquemos melhor: as coisas têm, segundo Aristóteles, uma causa final que é o propósito a que se destinam. Possuem um instinto de preservação e de auto-realização chamado por Spinoza de ‘conatus’.

Esse ‘conatus’ ou tendência [inclinação] natural é chamado também de ‘apetite naturalis’ e está presente na própria natureza da coisa e não exige nenhum conhecimento para se acabar; está contido intrinsecamente na coisa.

Há 3 tipos de apetite:

1. o que acabamos d citar ou ‘apetitus naturalis’ [conatus], contido nas coisas como uma inclinação natural, basicamente devido à sua forma. Segundo Aristóteles e São Tomás: “a cada forma corresponde uma própria inclinação”. Exemplo: o conatus da pedra é cair, do mundo expandir-se, da planta crescer, do sino tocar, etc.
2. Aquele dos seres possuidores do conhecimento, que além do apetite natural são dotados de inclinações originadas pelas coisas conhecidas. Exemplo: aquele do gato que vê o peixe sobre a mesa e sente uma atração, uma inclinação em direção a ele.
3. E aquele do Homem, que além do sensitivo proporcionado pela visão das coisas e de seu conhecimento, é ‘intelectivo, universal, abstrato.’ Ele sabe o que é a coisa e sente atração por elas. Exemplo: o homem sabe quando quer pão ou carne.

O homem conhece, além disso, coisas abstratas e espirituais, como a virtude, a bondade, a glória, a coragem, a felicidade, e tem aspirações a elas. Por isso, além do apetite sensitivo, ele é dotado também e especificamente de um ‘apetite intelectivo’. A este último chamamos de vontade.

Há concordância do enfoque antropológico com aquele destacado em que explicam que nossa mente objetiva estrutura o raciocínio de modo a possibilitar uma decisão. Feita essa opção, a vontade acaba por levar à ação o ato humano que carece de ‘ideações’ para agir, isto é, ‘a vontade consistente de uma decisão firme por parte da mente objetiva’.

A VONTADE DO HOMEM
Qual a verdadeira natureza da vontade humana?

A vontade do homem possui propriedades [humanidade, inconstância, transcendência, etc] dentre as quais a liberdade é a mais importante, isto porque ela exige para si certa autonomia, pois sente-se responsável pelo próprios atos.

HISTÓRIA DO PROBLEMA
A filosofia grega nos ofereceu grande auxilio para o problema porque acreditava que todas as coisas estavam sujeitas ao destino, aos deuses, e porque o homem é escravo da engrenagem da história, concebida como um movimento cíclico em que tudo se repete periodicamente.

No período cristão, o problema da liberdade assume um caráter teocêntrico. A natureza e a história não estão mais acima do homem, mas a seu serviço.

No período moderno, a perspectiva teocêntrica cede lugar à antropocêntrica: o homem toma consciência da sua autonomia e, por isso, a liberdade não constitui mais um problema para as relações com Deus.

No período contemporâneo, o fenômeno da socialização e suas conseqüências leva-nos a considerar a liberdade sobretudo do ponto de vista social.

LIMITES DA LIBERDADE: AS PAIXÕES
A liberdade, enfim, é condicionada pelas paixões. Esse último condicionamento foi sempre tomado m consideração pelos filósofos. Encontramos tratados sobre paixões em todos os períodos da história da filosofia, no grego e no medieval como nos modernos e contemporâneos. Esse fato basta sozinho para testemunhar o quanto é importante uma indagação sobre as paixões, a fim de estabelecer em que medida elas podem condicionar no homem o exercício da liberdade. Por este motivo, é importante aprofundarmo-nos um pouco mais sobre a natureza, sobre a divisão das paixões e sobre o seu influxo sobre a vontade.

O AMOR: VIRTUDE E PAIXÃO
E falando em paixão relativa à questão da vontade, observamos que o amor representa um elemento-chave para a compreensão do assunto.

Na esfera da atividade humana, quase todos os filósofos estão de açodo em assinalar um papel fundamental ao amor. Isso foi feito sobretudo por Platão, Aristóteles, Agostinho, Spinoza, Hobbes, Freud, Sartre e Marcel.

Platão situa o amor numa moldura metafísica que potencializa a sua função e o seu alcance espiritual. Ele se desenvolve entre dois pólos, o Bm e as Idéias por uma parte, e a alma [psykhe] por outra. É a alma, carente de felicidade e estabilidade, que sente a aspiração, o desejo [Eros], a atração do Bem e do mundo ideal e imortal. A alma, pela sua afinidade com as idéias, adverte obscuramente a sua presença e experimenta no contato com o belo sensível um arrepio misterioso: A ascensão do amor inicia-se com um ato irracional, que tem todos os caracteres de uma loucura [mania] que aliena o homem de si mesmo e lhe anuncia um valor transcendente. Diante das formas belas pode o homem assumir duas posturas fundamentais:

1. aceita e ama a bela aparência como realidade absoluta e deseja possuí-la, porque não procura nada além dela, porque não entrevê nada além do sensível: este é o amor sexual, terreno, inferior, que perde a alma – é a Afrodite pandêmica.
2. Ou então ama enquanto reconhece o invisível e, por isso, transcende a bela aparência para possuir noeticamente [ou seja, intelectualmente] não o que morre, mas o que é eterno: este é o amor puro, o amor que salva – é a Afrodite celeste.

E a dialética do amor como processo cognitivo é uma ascensão gradual: do amor de um corpo belo se passa a amar a beleza de todos os corpos belos, uma e idêntica para todos; da beleza dos corpos sobe-se depois à beleza das almas, das instituições, das leis e das ciências, até que se chega à única ciência que tem por objeto o Belo absoluto: aqui a alma se acalma porque acha o seu Bem e a sua felicidade. Trata-se de uma ascensão longa e fatigante. “Para o homem que haja participado das celestes iniciações em tempos muito remotos ou para o homem corrompido, não é lícito transportar-se facilmente daqui até lá, até a pura Beleza objetiva, no momento em que se contemplam as coisas belas que dela recebem o nome. Ele olha e a sua alma não é fascinada por um generoso ímpeto de veneração.” Mas quando o filósofo consegue libertar-s dos grilhões deste mundo sensível e atinge o sumo vértice da ciência do amor, “contemplando em ordem sucessiva e com justo método todas as coisas belas, atinge finalmente a consumação da ciência amorosa. E então, por súbita visão, ele contemplará algo divinamente belo na sua natureza objetiva: a Beleza, razão primeira e meta de todos os precedentes exercícios fatigantes”.

O conceito platônico do amor entendido como privação e desejo é mantido inalterado também na metafísica de Aristóteles: é o amor que move a matéria e todas as coisas deste mundo em direção ao seu objetivo final, Deus.

Vale dizer, a TEORIA DA ASCESE PLATÔNICA coaduna perfeitamente com a das sucessivas encarnações.

Já para Aristóteles, além de um principio metafísico, o amor desempenha um papel fundamental como valor moral. De fato, a amizade, à qual Aristóteles dá o primeiro lugar entre as virtudes morais, baseia-se essencialmente no amor: ela não é nada senão o amor desinteressado de outra pessoa.

Conceito absolutamente novo do amor aparece com o cristianismo; o próprio nome é mudado: não Eros, mas ágape, caridade. No pensamento grego, o amor era o sinal da pobreza espiritual, acompanhado do desejo; ao contrário, no cristianismo o amor é positividade e perfeição do ser: quanto mais um individuo é perfeito mais ele ama. O próprio Deus ama [“Deus caritas est”, escreve o evangelista João]. A vida intima de Deus é amor: a relação de amo entre Pai e Filho é o Espírito Santo; com um ato de amor Deus cria o mundo; pó amo Deus assume a natureza humana e a tira da morte. Cristo, o Verbo de Deus feito carne, é o amor feito carne. Além de base da vida de Deus, o amor é base da vida daqueles que crêem n’Ele. A ética cristã exprime-se em termos de amor: amar a Deus sobre todas as coisas; amar o próximo como a si mesmo. Mas a caritas não é um sentimento, um pathos, um fato natural como o Eros platônico na sua origem primeira; é, sim, um ato de liberdade potencializado pela Graça divina. Por isso, ele não abarca apenas os parênteses e os amigos, mas também os inimigos. No cristianismo, amor quer dizer ‘benevolência’ e a caridade se resolve em fazer o bm, m ser útil, benéfico.

O progresso das ciências na idade moderna acaba com o mito do Eros motor do mundo, e o substitui pelas leis da mecânica e da física. A partir de Hobbes e Spinoza, o amor é uma paixão que é estudada com o mesmo rigor cientifico com que se estudam os fenômenos físicos e as figuras geométricas e passa, por isto, a fazer parte dos quadros de uma sistemática racional. Desvincula-se assim do amor qualquer premissa metafísica ou teológica.

Com Freud, o amor retorna o seu lugar de impulso fundamental de tudo o que o homem pensa e faz; mas não é mais concebido como o Eros platônico, essencialmente orientado para o Bem, nem como a caritas cristã, participante do amor divino, mas simplesmente como instinto fisiológico, como paixão sexual, como pura libido. Freud, demolindo qualquer estrutura meta-fisico-religiosa, vê nos diversos aspectos do amor [Eros platônico, caritas cristã, amor filial, etc], degeneração ou sublimação do impulso sexual originário.

No existencialismo de J.P. Sartre, também o amor perde todo o significado: desgarrado o homem do universo, de Deus e da Humanidade, o amor não tem nenhum fundamento metafísico nem um terreno objetivo, mas se dobra de modo vão sobre si mesmo. O outro não é nunca um amigo para amar e nem um igual para respeitar; é simplesmente um rival ou até um inimigo. Por isso, para Sartre as relações humanas não levam senão ao mal: “os outros são o nosso inferno” [L’enfer c’est les autres].

Podemos afirmar por esta breve panorâmica histórica que o amor constitui uma dimensão fundamental da natureza humana: é a mola de cada desejo e de cada ação.

Desejamos mostrar que na sua ligação com a liberdade e com a vontade é que o amor não constitui ipso facto um valor: a sua bondade ou malicia é determinada pelo objeto [pela pessoa] a que é voltado e, outros sim, pelos motivos para os quais é exercido. Destas considerações resulta um principio conhecido dos estudantes: não é a arma que é um mal, mas a direção em que ela é apontada. Assim, o amor será entendido diferentemente pelo cristão e pelo marxista, pelo existencialista e pelo tomista, pelo estruturalista e pelo freudiano.

IMPLICAÇÕES ONTO-ANTROPOLÓGICAS
O estudo da vontade nos fez constatar que ela caracteriza o homem essencialmente: o homem é decididamente um Homo Volens. Ele se distingue dos outros seres sobretudo porque é dotado de vontade. São-lhe tributados elogios e infligidos castigos porque as suas ações são guiadas e determinadas pelo seu querer.

Nosso ensaio fez-nos ver que a vontade caracteriza o homem com relação aos outros seres, mas também porque na vontade e em toda esfera afetiva recolhemos indícios da complexidade e do mistério do ser humano.

A vontade a afetividade humanas surpreendem-nos pela sua insaciabilidade. A nossa vontade não está nunca contente com o que realizou ou adquiriu. Há nela um impulso para autotranscender-se que não se aplaca nunca. Continua a escolher e a descartar, a fazer e a abandonar. Dilata-se sobre todas as coisas e sobre todos os projetos realizados, com uma soberania ilimitada.

Esse poder ilimitado de autotranscender-se não se registra apenas na esfera da vontade, mas também na das paixões. “Nas grandes paixões há uma intenção transcendente que não pode proceder senão da atração infinita da felicidade. Só um objeto suscetível de representar o todo da felicidade pode atrair tanta energia, elevar o homem acima das suas faculdades ordinárias e torná-lo capaz de sacrificar o seu prazer e de viver dolorosamente... É, portanto, ao desejo da felicidade que se deve ligar a paixão e não ao desejo de viver; na paixão, de fato,o homem põe toda a sua energia, todo o seu coração, porque um sujeito de desejo se tornou tudo para ele.”

Em última análise, podemos afirmar, em concordância com o pensamento de Ralph M.Lewis em seu livro “Os Sete Degraus para a Felicidade”, que a felicidade é a opção viável para o homem no exercício de sua vontade e de sua liberdade.

O Homem _ quem ele é? [Parte VI] Homo Loquens


HOMO LOQUENS - HOMEM DE LINGUAGEM
Recapitularemos alguns conceitos já apresentados em artigos anteriores, a fim de subsidiar a apreensão do presente e dos subseqüentes.

Avaliar o homem sob o prisma da antropologia filosófica é olhá-lo como expressão humana. Nas palavras de Mondim é: analisá-lo enquanto tal, enquanto Homem com seus mais variados atributos: somático, vivo, inteligente, volitivo, falante, sociável, religioso, etc.

Assim, é mister entendermos que o enfoque não é uma exclusividade da física ou da metafísica, mas abrange os dois lados. Na verdade, busca a compreensão do que é o Homem, e que lugar e posição metafísica ele ocupa dentro da totalidade do ser, do mundo, do cósmico.

É inegável que a linguagem é uma característica do homem. Ele é Homo Loquens. Tal propriedade faz dele um ser totalmente singular.

Como é sabido, na filosofia clássica a preocupação principal diz respeito à metafísica; a filosofia, para todo o pensamento antigo e medieval, era essencialmente metafísica: estudo do ser.

Depois, com Descartes e os filósofos modernos, a filosofia assume uma nova dimensão, uma direção crítica; o conhecimento torna-se a preocupação principal. O estudo do ser é subordinado ao estudo do conhecimento.

O interesse pela lingüística na filosofia contemporânea nasceu do fato de alguns filósofos colocarem na linguagem a explicação de quase todos os problemas filosóficos.

PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM
Já desde a antiguidade clássica, os pré-socráticos formulavam duas questões que preocupam os filósofos até os dias de hoje.

a. A questão da origem da linguagem [ se ela era recebida dos deuses ou elaborada pelo homem].
b. A questão da natureza da linguagem [se as palavras são signos convencionais ou naturais das coisas].

Os pré-socráticos acreditavam que ela era natural, era um espelho direto e imediato das coisas, enquanto os sofistas consideravam-na convencional, tanto sua origem como sua função. O grande Aristóteles concebe a linguagem como instrumento do pensamento, e dado que o pensamento retorna às coisas, também a linguagem tem, em ultima análise, a função de representar as coisas, mas a escolha deste ou daquele som para significar uma dada coisa depende da decisão do homem. A linguagem é, portanto, natural na sua função, mas convencional na sua origem.

Os escolásticos e os românticos situam o problema da linguagem ora no campo simbólico ora no da sua origem.


No nosso século outros enfoques são dados ao problema da linguagem:

O semântico, o gnosiológico, o social e o psicanalítico são aqueles mais estudados.

IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM
A palavra é um utensílio extremamente útil para a tomada de posse do real. As classificações que fazemos, os nomes que damos, os signos, permitem-nos, por assim dizer, ‘capturar’ o mundo nas malhas do pensamento refletido, expresso por nomes, por palavras.

Numa outra linguagem, equivale dizer: através da linguagem, ‘captura-se’ o mundo que nos cerca e o mundo subjetivo que somos capazes de codificar. Tomamos, de fato, posse sobre ambos através da linguagem.

Heidegger chamou a atenção sobretudo para a importância ‘metafisica’ da linguagem, buscando mostrar que ela constitui a primeira e mais importante epifania [manifestação divina] do ser.

O ser mora na linguagem, nas palavras de Heidegger.

Pretende-se dizer que propriamente a linguagem faz do homem o ser vivente que é enquanto homem.

Dada a importância que a dimensão lingüística tem para a compreensão da realidade autentica e profunda do homem, é lógico que nós nos interroguemos sobretudo o que seja a linguagem, que procuremos compreender o que seja em si mesma e quais sugestões ela oferece para a compreensão do homem.

DEFINIÇÃO DA LINGUAGEM
A linguagem é um sistema de signos artificiais e convencionais destinados à comunicação. Ela comporta uma estrutura essencialmente intencional. Com efeito, a linguagem quer significar intenções, idéias, sentimentos, coisas, etc. Pode-se mesmo dizer com justa razão que a linguagem é o instrumento ideal da intencionalidade essencial do homem. Ele é fundamentalmente um ser aberto e em continuo movimento, orientado para toda a realidade que o circunda e supera. Tal abertura dispõe à comunicação, e a comunicação efetua-se principalmente mediante a linguagem.

ORIGEM DA LINGUAGEM
Sobre a questão da linguagem, as alternativas são duas: ou a linguagem foi recebida [de Deus ou da Natureza] ou então foi inventada pelo homem [imitando a natureza ou artificialmente]. Ambas as soluções encontraram a adesão de numerosos adeptos, tanto na antiguidade quanto em nossos dias.

Hoje, porém, a tese mais comum é que a linguagem tenha tido origem por evolução. Mas há modos diferentes de interpretar esse evento. Alguns sustentam que a evolução tenha sido determinada por onomatopéia; outros, pelo contrário, assinalam como a parte principal o acaso e a convenção.

A teoria segundo a qual a linguagem nasce pela formação de sons onomatopaicos [ou seja, pela imitação de sons já existentes na natureza, por exemplo, o silvo do vento, o murmúrio da água, o canto dos pássaros, etc] fora já inventada pelos estóicos e mais tarde por Leibnitz, mas foi proposta pela primeira vez de modo cientifico só por Herder, o qual já na sua tese de doutoramento afirmava: “O primeiro vocabulário constituiu-se de sons tirados de todas as partes do mundo. De cada objeto natural que emite um som tira-se o seu nome; a alma humana vale-se de tais sons como signos para indicar as coisas.”

Para outros, a linguagem tem uma origem convencional. É como homo sapiens que inventa certos sons para cumprir determinadas operações.

Para Mondim, essas duas teses sobre a origem da linguagem não são contraditórias, mas integram-se.

Dando por certo que a linguagem é uma invenção do homem e não um dom da natureza ou de um ser superior, parece-nos que essa invenção tenha acontecido mediante a imitação dos sons emitidos pelos animais e pelas coisas. “Assim, para designar o cão, repete-se o latido do cão; para designar o lobo, repete-se o uivo do lobo; para o vento, repete-se o rumor do vento, e assim do mesmo modo para muitas outras coisas.” Essa origem primeira da linguagem é confirmada pela grande quantidade de sons onomatopaicos presentes em todas as línguas. E é também confirmada pelo modo com que a criança aprende a falar, imitando os sons que ouve da mãe.

Mas sobre essa base onomatopaica, o homem em seguida manobrou com liberdade e genialidade, investigando sons novos ou então combinando de maneira diferente sons velhos [por exemplo, automóvel, televisão, aeroplano, etc]. Dá-se, assim, que grande parte da linguagem atualmente em uso tenha origem convencional.

FUNÇÃO COMUNICATIVA
A linguagem possui enquanto fenômeno humano várias funções.

Elencamos duas que consideramos mais importantes:
- a comunicativa
- a existencial.

É fácil de concluir que aa comunicação é a função principal da linguagem humana. Não somente por sua característica de oferecer descrições de objetos, coisas, fenômenos, leis da natureza, etc., mas afetos, sentimentos, desejos, comandos.

Além de instrumento privilegiado da comunicação, a linguagem é responsável também pela presença de sociabilidade, ou seja, possibilita uma maior aproximação com o outro. O que dizemos a um conhecido ou amigo quando queremos nos aproximar? – Precisamos bater um papo! - Qual a resposta? – Liga para mim!., etc.

A palavra é pois, intrinsecamente doadora, há subjacentemente uma doação na sua expressão. Quando não gostamos de algo ou de alguém, qual a reação humana mais evidente? Não falo com ele [ela]. Não me dou pela palavra.

Outrossim quando falamos conosco mesmos criamos um intercambio entre os dois ‘Eus” – tornamo-nos ao mesmo tempo sujeito-objeto.

Neste mesmo enfoque, na oração dos damos a Deus, nos jogamos nas suas mãos.

Há, como em tudo, aspectos ambíguos na linguagem que foram constantemente sublinhados por vários filósofos.

Ela se presta ao mesmo tempo à formação [educação], à deformação e à corrupção, como frisava Sócrates contra os sofistas.

Heidegger em sua obra “O Ser e o Tempo” diz-nos que a inautenticidade dos indivíduos se dá devido à linguagem: a maioria não pensa por si mesma, reproduz sim aquilo que outros pensaram, captado pelas palavras articuladas ou escritas. Dizia: O Homem não pensa por si mesmo, não julga com a própria cabeça nem decide por conta própria, mas pensa, julga, decide, etc., segundo o que ouve dos outros. A palavra oculta o Ser que mora na linguagem. Neste ponto é que ocorre o desvio à metafísica!

Devido à sua importância, gostaria de ilustrar este conceito por meio de um pensamento abstrato.

Suponhamos que nos tempos imemoriais a relação sujeito-objeto, Criador-criatura fosse de tal modo tão evidente, tão próxima, que a expressão se desse com total fidedignidade, sem estereotipações. O que está além [metafísico] corresponde ao que está aquém [físico] e isto basta.

No entanto, a palavra possibilita desvios, artifícios à expressão do Ser que É. Invertamos o raciocínio. Imaginemos um mundo sem palavras. O que existe? O Silencio, o Ser. Quando ocorre a palavra já existe uma interpretação, um signo para simbolizar algo, uma capturação de algo maior, já se limita algo, “captura-se” pela palavra. Há uma perda, neste momento fragmenta-se o Uno. Algo deixa de ser em si, por si, para si para ser através de um símbolo, de uma ideografia, de uma palavra convencionada. Conceituar é limitar. Aí está o desvio à metafísica.

FUNÇÃO EXISTENCIAL
O que esperamos quando queremos constatar a presença de alguém?
R: Uma palavra. Analogicamente diríamos: Tem alguém ai?
A resposta é uma voz que implica em existência ou não.
Há portanto na palavra um poder existencial.

A palavra testemunha a minha existência a mim mesmo e aos outros. A palavra adquire consistência através do nome. Ter um nome significa possuir uma existência. Na disciplina da Estética aprendemos que a palavra dá o ser à coisa.

Reflitamos, o nome que me revela me exprime para os outros, franqueando-lhes o acesso ao meu ser. O anonimato, o incógnito podem significar certa ‘ausência social’. Porém, o meu nome me exprime aos outros ao mesmo tempo em que em entrega, me coloca em seu poder. Declarando meu nome, eu renuncio à parte de minha autonomia; daí em diante há certo domínio e posse. Qual a primeira preocupação do diretor de um internato senão conhecer o nome de seus rapazes para controlar e/ou disciplinar? A policia desenvolve continuamente a atividade de conhecer o nome e os apelidos [vulgo fulano] para de certa forma controlar-lhes os movimentos.

O nome é o sustentáculo à presença de uma pessoa. Onde quer que um nome seja pronunciado, tem lugar a sua presença junto aos outros e atende um certo desejo de ubiqüidade que é inato no homem.

Por fim, além de se estender aos limites de espaço, o nome permite suplantar os confins do tempo: a nossa presença perdura mesmo após a transição, enquanto a lembrança do nosso nome viver. Daí a tentativa de se alcançar certa notoriedade para garantir-se certa eternidade.

IMPLICAÇÃO ONTO-ANTROPOLÓGICAS DA LINGUAGEM
Quais as implicações que a dimensão lingüística contém com relação ao ser do homem?

Diríamos primeiramente que a linguagem revela o que é o ser profundo do homem. Com efeito, três coisas principais foram reveladas.

A linguagem distingue de modo nítido o homem dos animais, põe em evidencia a sua superioridade intelectual, dá-lhe a possibilidade de viver um tipo muito mais perfeito de sociabilidade, põe-no em condições de desenvolver técnicas para o domínio e a função da natureza, que no mundo animal são de fato desconhecidas.

1. Esse fato conduz-nos ao pensamento de que a função da palavra não é essencialmente orgânica, mas existe em função do intelecto e da espiritualidade.
2. A linguagem revela natureza complexa do ser do homem, ela revela claramente a interdependência do físico e do conceitual na existência humana.

Em outras palavras, fenômeno [físico] e fonema [conceito], sensível e sonoro, nascem de duas fontes: o corpo e a alma.

Ela é sopro como alma [anima], como espírito [animus, pneuma].

E mais ainda, pode mexer com as profundezas instintivas do homem, como também com o mais elevado da alma.

3. Desvela uma essencial capacidade do homem de autotranscender-se.


A linguagem, como significado feito com o signo escrito, é algo essencialmente supra-sensível. A linguagem assim entendida é, por sua natureza constitutiva, metafísica.

A compreensão total da linguagem humana no campo da física está fadada ao fracasso. Para se compreender o Homo Loquens é necessário ultrapassar os limites da física e voltar-se à metafísica.