20 de abr. de 2011

Voltaire_Considerações Finais

Enquanto isso, o velho “filosofo zombeteiro” cultivava seu pomar em Ferney; esta é “a melhor coisa que podemos fazer na terra”. Ele desejaria uma longa vida: “Meu medo é morrer antes de ter sido útil” [*Correspondência, 25 de agosto de 1766]; mas agora já havia desempenhado seu papel. Suas mostras de generosidade eram infinitas. “Todos, de perto ou de longe, recorriam a seus préstimos; muitos consultavam-no, contavam-lhe as injustiças de que eram vitimas e solicitavam o auxilio de sua pena e influencia” [*Sainte-Beuve, I, 235]. Seus especiais cuidados eram com os de condição humilde a qual se imputavam culpas; obtinha-lhes o perdão e em seguida amparava-os, dando-lhes alguma ocupação honesta, velando por eles e aconselhando-os durante todo esse tempo. Quando um jovem casal que o roubara se ajoelhou a seus pés implorando o perdão, ele o fez erguer-se, dizendo-lhe que o seu já lhe estava outorgado e que só lhe cumpria ajoelhar-se para pedir o perdão de Deus.[*Robertson, 71]. Um de seus atos característicos foi criar, educar e dotar uma sobrinha desamparada de Corneille. “O pouco bem que eu fiz”, disse ele, “foi minha melhor obra...Quando me atacam reajo como um demônio; e ninguém poupo; mas no fundo sou boa criatura e acabo sempre rindo-me” [*Id,67].

Em 1770 seus amigos lançaram uma subscrição para um busto a Voltaire. Aos ricos era proibido dar mais que uma migalha, pois milhares de pessoas reclamavam a honra de contribuir.  Frederico perguntou quanto poderia dar; disseram-lhe: “Uma coroa, Sire, e o nome de Vossa Majestade. Voltaire feliciou-o por acrescentar ao cultivo de outras ciências aquele incitamento a anatomia, subscrevendo para a estatua de um esqueleto...Ele se opunha a iniciativa alegando não lhe ter ficado algum sobejo de rosto a modelar-se. “Dificilmente percebereis onde ele fica. Meus olhos afundaram-se três polegadas; as faces são como velho pergaminho...; os pouco dentes que eu tinha já se foram”. Ao que d’Alembert respondeu: “O gênio...tem sempre feições que o gênio seu irmão descobrirá facilmente” [*Id., 535].Quando sua predileta Bellet-Bonne o beijava, ele dizia que era a “Vida a beijar a Morte”.

Achava-se então com oitenta e três anos; e veio-lhe o grande desejo de rever Paris antes de morrer. Os médicos aconselharam-no a não empreender tão longa viagem; mas “quando quero cometer uma loucura”, respondeu Voltaire, “nada me pode impedir”; vivera tanto e trabalhara tão arduamente, que se julgava, talvez, no direito de morrer ao seu próprio modo e naquela Paris febricitante de que estivera exilado tantos anos. E por isso lá se foi, milha após milha, penosamente, através da França; e quando sua carruagem entrou na capital francesa, mal podiam seus ossos continuar articulados. Dirigiu-se imediatamente a casa d’Argental, seu amigo da mocidade:”Adiei a morte para vir ver-te”, disse. No dia seguinte seu alojamento regorgitava de visitas que o acolhiam como a um rei; Luiz XVI, enciumado, irritou-se. Benjamim Franklin levou-lhe um neto para que Voltaire o abençoasse; o filosofo pousou as mãos magras na cabeça do jovem e exortou-o dedicar-se “a Deus e a Liberdade”.

Tão fraco se achava que um padre foi confessá-lo. “Quem o mandou cá, Monsieur l’Abbé?” perguntou-lhe: “Foi o próprio Deus”, disse o padre. “Muito bem! Muito bem!” redargüiu Voltaire. Deixe-me ver as credenciais” [*Tallentyre, 535]. O padre saiu sem a presa. Algum tempo depois Voltaire mandou chamar outro padre, Gautier, para ouvi-lo em confissão; Gautier atendeu-o, mas recusou-se a absolver Voltaire enquanto este não assinasse uma completa profissão de fé católica. Voltaire revoltou-se contra a exigência; em vez disso redigiu uma declaração que entregou a seu secretário Wagner: “Morro adorando a Deus, amando meus amigos, mas odiando meus inimigos e detestando a superstição. [Assinado] Voltaire – 28 de fevereiro de 1778” [*Tallentyre, 538].

Mesmo doente e tropego, levaram-no a Academia, atravessando multidões tumultuosas de admiradores que subiam na carruagem e esfrangalhavam, para obter lembranças, a preciosa capa de peles que lhe dera Catarina da Rússia. “Foi um dos sucessos históricos do século. Jamais nenhum grande guerreiro, ao regressar de longa campanha coroado de glorioso triunfo, recebera mais imponente e ruidosa ovação” [*Morley,262]. Na Academia Volatire propôs uma revisão do dicionário francês; falou com entusiasmo juvenil e prontificou-se a encarregar-se da letra A. Por fim, ao sentar-se, disse: “Senhores, agradeço-vos em nome do alfabeto”. Ao que o presidente Chastellux respondeu: “E nós vos agradecemos em nome das letras”.

Entrementes, Irene, sua peça, estava sendo levada, e contra o conselho dos médicos Voltaire insistiu em ir vê-la. A peça era fraca; mas a assistência maravilhava-se menos de poder um homem de oitenta e três anos escrever uma peça fraca, do que de poder escrever qualquer peça [*Tallentyre, 525]; e abafava a voz dos atores com freqüentes ovações ao autor. Um estrangeiro que lá entrou teve a impressão de estar em um hospício – e fugiu assutado para a rua [*Id., 545].

Naquela noite, quando o velho patriarca das letras tornou para casa, sentia-se quase conformado com a morte. Sabia achar-se no fim, mas tinha a consciência de haver-se utilizado até ao máximo da poderosa e maravilhosa energia de que a natureza lhe dera talvez maior provisão do que a qualquer outro homem. Resistiu ao perceber que a vida o abandonava, mas a morte o iria vencer também. Seu fim ocorreu a 30 de maio de 1778.

Recusaram-lhe o sepultamento cristão em Paris; seus amigos, revoltados, puseram-no como lúgubre companheiro em um carro e retiraram-no da cidade alegando estar ainda vivo. Em Scleliêres encontraram um padre que compreendeu que as regras usuais não se fizeram para os gênios; e o cadáver foi enterrado em lugar sagrado. Em 1791 a Assembléia Nacional da Revolução triunfante obrigou Luiz XVI a mandar para o Pantheon os restos mortais de Voltaire. As cinzas da grande flama que se extinguira foram acompanhadas através de Paris, por um cortejo de 100.000 pessoas, ao mesmo tempo que mais de 600.000 abriam alas. Liam-se no carro fúnebre os dizeres: “Voltaire deu grande impulso ao espírito humano e preparou-nos para a liberdade”.

Em sua pedra tumular só foram necessárias três palavras: Aqui jaz Voltaire.

Voltaire_ Rousseau

Tanto se empenhou Voltaire, nos últimos dez anos de sua vida, na campanha contra a tirania eclesiástica, que foi quase forçado a cessar a luta contra a corrupção e a opressão políticas. “A política não é o meu campo de batalha; sempre tomei como fito tornar os homens menos tolos e mais respeitáveis”. Voltaire sabia quão complexa se pode tornar a matéria política e expunha plenamente suas convicções à proporção que aumentava em anos. “Estou farto de toda essa gente que quer governar as nações do alto de suas águas furtadas” [*Correspondência, 18 de setembro de 1763]; desses legisladores que pretendem reger o mundo com seus folhetos de dois centimos...; incapazes de governar suas mulheres ou sua famulagem, sentem grande prazer em regular o universo”[*Em Pellisier, 237, nota e 136]. É impossível determinar esta matéria com formulas simples e gerais ou dividindo todas as pessoas em duas classes:uma, a dos parvos e velhacos, e a outra, a nossa própria. “A verdade não tem o nome de um partido”, escreve ele a Vauvenargues: “É dever de um homem, como vós, ter preferências mas, não, exclusivismos” [*Id., Morley, 86].

Sendo rico, propende para o conservantismo por uma razão não pior do que a que impele o faminto a desejar mudança de estado. Sua panacéia é uma extensão mais ampla da propriedade; o domínio dos bens materiais confere personalidade e orgulho. “O sentimento de proprietarismo duplica as forças de um homem. Certo é que o possuidor de uma propriedade cultivará melhor seu próprio patrimônio do que o de outro” [*Dicionário, palavra ‘Propriedade’].

Voltaire não se entusiasma por esta ou aquela forma de governo. Teoricamente prefere a republica, mas reconhece suas falhas; essa forma engendra facções que, quando não provocam guerras civis, pelo menos destroem a unidade nacional; só convêm aos pequenos países protegidos pela situação geográfica e ainda não prejudicados nem divididos pela posse de riquezas; em regra, “os homens raramente são dignos de se governarem a si mesmos”. Na melhor hipótese, as republicas são transitórias; constituem a primeira manifestação social, proveniente da união de famílias; os índios americanos viviam em tribos republicanas e na África abundam tais democracias. Mas a diferenciação das condições econômicas põe termo a esses governos igualitários e essa diferenciação é a conseqüência inevitável do desenvolvimento. “Que é melhor”, pergunta ele, “uma monarquia ou uma republica?” – e passa a responder: “Debate-se essa questão há quatro mil anos. Perguntem-no aos ricos – todos desejam a aristocracia. E se inquirem aos pobres, dirão preferir a democracia. Só os monarcas querem a monarquia. Por que então quase toda a terra é governada por monarcas?” Perguntem-no aos ratos que queriam atar um guizo no pescoço do gato” [*Dicionário Filosófico, palavra ‘Pátria’]. Mas quando um de seus correspondentes afirma ser a monarquia a melhor forma de governo, ele responde: ”Contanto que Marco Aurélio seja  o monarca; de outro modo, que diferença haverá para um pobre homem em ser devorado por um leão ou por um cento de ratos?” [*Correspondência, 20 de junho de 1777].

Também a ele, como a um homem viajado, são indiferentes as nacionalidades; mal tem algum patriotismo, no sentido habitual da palavra; Diz Voltaire que patriotismo geralmente significa alguém odiar todos os países, à exceção do seu próprio. Se um homem deseja que seu país prospere, mas não a custa de outros países, é a um tempo um inteligente patriota e um cidadão do universo. [*Pellisier,222].Como bom “europeu” elogia a literatura inglesa e o rei da Prússia, quando a França está em guerra com a Inglaterra e com a Prússia. Enquanto as nações se derem a guerra, diz Voltaire, não se pode escolher muito entre elas.

Pois Voltaire, acima de tudo, odeia a guerra. “A guerra é o maior de todos os crimes; mesmo assim não há agressor que não revista seu crime do pretexto da justiça” [*O Filosofo Ignorante]. “É proibido matar; por isso punem-se os assassinos, a não ser quando matem em grande escala e ao toque de cornetas” [*Dicionário, palavra ‘Guerra’]. Ele tem uma terrível “Reflexão Geral sobre o Homem” no fim da palavra “Homem” do Dicionário:

*São necessários vinte anos para trazer-se o homem do estado de planta, no qual existe no ventre materno, e do estado de animal, que é a sua condição na infância, ao estado em que a maturidade da razão começa a fazer-se sentir. Trinta séculos são precisos para descobrir-se um pouco de sua estrutura física. Exigirá uma eternidade o conhecer-se alguma coisa de sua alma.

Pensará ele ser a revolução um remédio? Não. Pois, mais do que tudo, não confia no povo: “Se o povo se mete a refletir, tudo está perdido” [*Correspondência, 1º de abril de 1766]. A grande maioria dos homens vive muito atarefada para perceber a verdade enquanto alguma mudança não transforma em erro – e a história intelectual do homem é meramente a substituição de um mito por outro. “Quando se enraíza um velho erro, a política utiliza-o como engodo para o povo, até que com o tempo venha outra superstição destruir aquela; e a política, como fez com o primeiro, aproveita este segundo erro”. [*A Prosa de Voltaire, pág.15].A desigualdade está escrita no seio do organismo social e dificilmente se poderá remover enquanto os homens forem homens e a vida for luta.

“Os que dizem que os homens são iguais enunciariam a máxima verdade se com isso significassem terem os homens igual direito a liberdade, a posse de seus bens e a proteção das leis”; “a igualdade é ao mesmo tempo a coisa mais natural e mais quimérica do mundo: natural, quando se limita a fruir os seus direitos; antinatural, quando intenta distribuir igualmente os bens e o poder” [*Dicionário, palavra ‘igualdade’]. ”Não podem todos os cidadãos ser igualmente poderosos mas podem todos ser igualmente livres: foi o que o inglês conseguiu...Ser livre é não se sujeitar a coisa alguma, salvo as leis” [*Idem, palavra ‘Governo’].
Tal era a nota dos liberais, de Turgot, Condorcet, Mirabeau e outros continuadores  de Voltaire, que esperavam conseguir uma revolução pacifica, impossível de satisfazer aos oprimidos, que reclamavam mais igualdade do que liberdade – a igualdade, mesmo a custa da liberdade. Rousseau, porta-voz do homem do povo, e sensível as diferenças de classes com que esbarrava a cada passo, exigia esse nivelamento; e quando a revolução caiu nas mãos de Marat e Robespierre, a igualdade venceu – a foi guilhotinada a liberdade.

Voltaire encarava com ceticismo as Utopias que pretendem criar por meio de leis um mundo de nova espécie, tirado da imaginação. A sociedade é uma coisa que se desenvolve com o tempo e não um silogismo de lógica; quando pomos o passado porta fora, ele reentra pela janela. Toda a questão é mostrar precisamente quais as mudanças com que poderemos minorar a miséria e a injustiça do mundo real em que vivemos. [*Pellissier, 288]. No “Elogio Histórico da Razão”, a Verdade, filha da Razão, manifesta seu jubilo pelo coroamento de Luiz XVI, e pelas grandes reformas que esperava. A isto a Razão responde: “Minha filha, bem sabes que também desejo estas e outras coisas mais – elas, porém, requerem tempo e reflexão. Sinto-me sempre feliz se, entre muitos desenganos, consigo algo da melhoria por que tanto ansiei”. Mesmo assim Voltaire regozijou-se quando Turgot subiu ao poder, e escreveu: “Estamos até o pescoço em plena idade de ouro” [*Em Sainte-Beuve, 234]- viriam então as reformas que ele tanto preconizara: o júri, a abolição dos dízimos, a isenção para os pobres dos pagamentos de impostos, etc. E não tinha ele escrito aquela celebre carta?

*Tudo o que vejo parece-me estar a lançar a todos os ventos as sementes de uma revolução, que inevitavelmente sobrevirá um dia, mas a que não teremos o prazer de assistir. O francês sempre age tarde, mas age. O fogo propaga-se assim, pouco a pouco, até um magnífico deflagrar no primeiro ensejo; e então será um abalo formidável! Felizes dos moços, pois verão belas coisas. [*Correspondência, 2 de abril de 1764]. 

Apesar disso, ele não compreendia perfeitamente o que se passava ao seu redor; nem por um instante supôs que em seu “magnífico deflagrar” toda a Europa acolheria com entusiasmo a filosofia daquele singular Jean-Jacques Rousseau, que de Genebra e de paris apaixonava o mundo com romances sentimentais e panfletos revolucionários. A alma complexa da França parecia dividir-se naqueles dois homens, tão diversos e, mesmo assim, tão franceses.

Quando Nietzsche fala da “gaya scienza”, de pés ligeiros, espírito, ardor, graça, forte lógica, arrogante intelectualidade, dança das estrelas – certo estava a pensar em Voltaire. Ao lado de Voltaire, ponha-se agora Rousseau: todo ele calor e fantasia, homem de visões nobres e ocas, ídolo de la bourgeoise gentilefemme, apregoando, como Pascal, que o coração tem suas razões que a cabeça jamais compreenderá.

Nestes dois homens veremos o velho antagonismo entre a inteligência e o instinto. Voltaire acreditava sempre na razão: “Podemos, pela palavra e pela pena, tornar os homens mais esclarecidos e melhores” [*Obras Escolhidas,62]. Rousseau, o contrário; os ricos da revolução não o atemorizavam; confiava no sentimento da fraternidade para tornar a unir os elementos sociais divorciados pelo tumulto social e supressão dos antigos costumes. Se eliminassem as leis, os homens entrariam no reino da igualdade e da justiça. Quando enviou a Voltaire o Discurso sobre a Origem da Desigualdade, contendo seus argumentos contra a civilização, as letras e a ciência, e a favor do retorno a condição natural, como a dos selvagens e animais, Voltaire respondeu-lhe: “Recebi, senhor, seu novo livro contra a espécie humana e sou-lhe grato pela remessa...Jamais alguém se esforçou tão inteligentemente para transformar-nos em animais; a leitura de seu livro dá-nos vontade de andar de quatro. Como, porém, já faz sessenta anos que perdi esse costume, sinto que infelizmente não me é mais possível retornar a ele” [*Correspondência, 20 de agosto de 1755].

Desgostou-o ver continuar no Contrato Social a paixão de Rousseau pelo selvagismo: “Ah, Monsieur” escreve a Mr. Bordes, “bem vê-se agora que Jean-jacques se parece tanto a um filosofo como um macaco a um homem” [*Idem, março de 1755]. É o cão de Diógenes que enlouqueceu” [*Em sainte-beuve, I, 230]. Apesar disso, atacou as autoridades suíças por queimarem esse livro, apegando-se a seu celebre aforisma: “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo” [*Voltaire em Suas Cartas]. E quando Rousseau fugia de um cento de inimigos, Voltaire mandou-lhe um convite especial para ficar com ele em Les Delices. Que curioso espetáculo não seria!

Voltaire estava convicto de que todo ataque a civilização era disparate pueril, e que o homem era incomparavelmente melhor no estado civilizado do que no estado selvagem; a Rousseau declara que o homem é por sua natureza um animal de presa e que a sociedade civilizada significa o embridamento desse animal, uma moderação de sua brutalidade e a possibilidade de desenvolvimento, por obra da ordem social, de sua inteligência e de suas alegrias. Concorda em que as coisas não andam direito: “Um governo em que se permite a certa categoria de pessoas dizer: -Paguem impostos os que trabalham; nós nada pagamos porque não trabalhamos – não é melhor que um governo de hotentotes”.

Paris tem seus aspectos reabilitadores, até em meio da corrupção. Em “O Mundo tal como é”, Voltaire refere-nos que um anjo envia Babouc a terra para informá-lo da necessidade de ser destruída a cidade de Persepolis; Babouc obedece e horroriza-se com os vícios que descobre; mas depois de algum tempo “começou a gostar de uma cidade cujos habitantes eram corteses, afáveis e beneficentes, embora fossem inconstantes, maldizentes e vaidosos – e grande receio concebeu de ser Persepolis condenada. Chegou mesmo a fugir de fazer seu relatório. Fê-lo, contudo, mas da seguinte forma: Mandou um dos melhores fundidores da cidade fundir uma estatua de diversos metais, terras e pedras [as mais preciosas e as mais comuns] e levou-a ao anjo. – Quererias partir – disse ele – esta  bela estatua, por não ser totalmente de ouro ou de diamantes? – O anjo resolveu não mais pensar em destruir Persepolis, deixando “o mundo tal como é”. Afinal de contas, quando alguém experimenta mudar as instituições sem antes mudar a natureza dos homens, sua natureza não mudada s  fará logo ressurgir as primitivas instituições.

Estava aí o velho circulo vicioso: os homens fazem as instituições e as instituições fazem os homens; quem poderia rompê-lo? Voltaire e os liberais achavam que a inteligência o faria, educando e transformando os homens lenta e pacificamente; Rousseau e os radicais entendia que o rompimento se operaria unicamente pela ação instintiva e ardente, que desmantelaria as velhas instituições e construiria, obedecendo ao coração, outras novas, nas quais imperassem a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Talvez que a verdade esteja com os dois campos antagônicos; o instinto destrói o que é velho, mas só a inteligência constrói o novo. Certo as sementes da reação encontrarão terreno fértil no radicalismo de Rousseau, pois o instinto e o sentimento se tornam afinal fieis ao velho passado que os originou e para o qual eram adaptações mecânicas. Depois da catarsis da evolução, as necessidades do coração reclamariam novamente a religião sobrenatural e “os bons velhos dias” de rotina e paz; após Rousseau viriam Chateaubriand, De Staël, De Maistre e Kant.