Tanto se empenhou Voltaire, nos últimos dez anos de sua vida, na campanha contra a tirania eclesiástica, que foi quase forçado a cessar a luta contra a corrupção e a opressão políticas. “A política não é o meu campo de batalha; sempre tomei como fito tornar os homens menos tolos e mais respeitáveis”. Voltaire sabia quão complexa se pode tornar a matéria política e expunha plenamente suas convicções à proporção que aumentava em anos. “Estou farto de toda essa gente que quer governar as nações do alto de suas águas furtadas” [*Correspondência, 18 de setembro de 1763]; desses legisladores que pretendem reger o mundo com seus folhetos de dois centimos...; incapazes de governar suas mulheres ou sua famulagem, sentem grande prazer em regular o universo”[*Em Pellisier, 237, nota e 136]. É impossível determinar esta matéria com formulas simples e gerais ou dividindo todas as pessoas em duas classes:uma, a dos parvos e velhacos, e a outra, a nossa própria. “A verdade não tem o nome de um partido”, escreve ele a Vauvenargues: “É dever de um homem, como vós, ter preferências mas, não, exclusivismos” [*Id., Morley, 86].
Sendo rico, propende para o conservantismo por uma razão não pior do que a que impele o faminto a desejar mudança de estado. Sua panacéia é uma extensão mais ampla da propriedade; o domínio dos bens materiais confere personalidade e orgulho. “O sentimento de proprietarismo duplica as forças de um homem. Certo é que o possuidor de uma propriedade cultivará melhor seu próprio patrimônio do que o de outro” [*Dicionário, palavra ‘Propriedade’].
Voltaire não se entusiasma por esta ou aquela forma de governo. Teoricamente prefere a republica, mas reconhece suas falhas; essa forma engendra facções que, quando não provocam guerras civis, pelo menos destroem a unidade nacional; só convêm aos pequenos países protegidos pela situação geográfica e ainda não prejudicados nem divididos pela posse de riquezas; em regra, “os homens raramente são dignos de se governarem a si mesmos”. Na melhor hipótese, as republicas são transitórias; constituem a primeira manifestação social, proveniente da união de famílias; os índios americanos viviam em tribos republicanas e na África abundam tais democracias. Mas a diferenciação das condições econômicas põe termo a esses governos igualitários e essa diferenciação é a conseqüência inevitável do desenvolvimento. “Que é melhor”, pergunta ele, “uma monarquia ou uma republica?” – e passa a responder: “Debate-se essa questão há quatro mil anos. Perguntem-no aos ricos – todos desejam a aristocracia. E se inquirem aos pobres, dirão preferir a democracia. Só os monarcas querem a monarquia. Por que então quase toda a terra é governada por monarcas?” Perguntem-no aos ratos que queriam atar um guizo no pescoço do gato” [*Dicionário Filosófico, palavra ‘Pátria’]. Mas quando um de seus correspondentes afirma ser a monarquia a melhor forma de governo, ele responde: ”Contanto que Marco Aurélio seja o monarca; de outro modo, que diferença haverá para um pobre homem em ser devorado por um leão ou por um cento de ratos?” [*Correspondência, 20 de junho de 1777].
Também a ele, como a um homem viajado, são indiferentes as nacionalidades; mal tem algum patriotismo, no sentido habitual da palavra; Diz Voltaire que patriotismo geralmente significa alguém odiar todos os países, à exceção do seu próprio. Se um homem deseja que seu país prospere, mas não a custa de outros países, é a um tempo um inteligente patriota e um cidadão do universo. [*Pellisier,222].Como bom “europeu” elogia a literatura inglesa e o rei da Prússia, quando a França está em guerra com a Inglaterra e com a Prússia. Enquanto as nações se derem a guerra, diz Voltaire, não se pode escolher muito entre elas.
Pois Voltaire, acima de tudo, odeia a guerra. “A guerra é o maior de todos os crimes; mesmo assim não há agressor que não revista seu crime do pretexto da justiça” [*O Filosofo Ignorante]. “É proibido matar; por isso punem-se os assassinos, a não ser quando matem em grande escala e ao toque de cornetas” [*Dicionário, palavra ‘Guerra’]. Ele tem uma terrível “Reflexão Geral sobre o Homem” no fim da palavra “Homem” do Dicionário:
*São necessários vinte anos para trazer-se o homem do estado de planta, no qual existe no ventre materno, e do estado de animal, que é a sua condição na infância, ao estado em que a maturidade da razão começa a fazer-se sentir. Trinta séculos são precisos para descobrir-se um pouco de sua estrutura física. Exigirá uma eternidade o conhecer-se alguma coisa de sua alma.
Pensará ele ser a revolução um remédio? Não. Pois, mais do que tudo, não confia no povo: “Se o povo se mete a refletir, tudo está perdido” [*Correspondência, 1º de abril de 1766]. A grande maioria dos homens vive muito atarefada para perceber a verdade enquanto alguma mudança não transforma em erro – e a história intelectual do homem é meramente a substituição de um mito por outro. “Quando se enraíza um velho erro, a política utiliza-o como engodo para o povo, até que com o tempo venha outra superstição destruir aquela; e a política, como fez com o primeiro, aproveita este segundo erro”. [*A Prosa de Voltaire, pág.15].A desigualdade está escrita no seio do organismo social e dificilmente se poderá remover enquanto os homens forem homens e a vida for luta.
“Os que dizem que os homens são iguais enunciariam a máxima verdade se com isso significassem terem os homens igual direito a liberdade, a posse de seus bens e a proteção das leis”; “a igualdade é ao mesmo tempo a coisa mais natural e mais quimérica do mundo: natural, quando se limita a fruir os seus direitos; antinatural, quando intenta distribuir igualmente os bens e o poder” [*Dicionário, palavra ‘igualdade’]. ”Não podem todos os cidadãos ser igualmente poderosos mas podem todos ser igualmente livres: foi o que o inglês conseguiu...Ser livre é não se sujeitar a coisa alguma, salvo as leis” [*Idem, palavra ‘Governo’].
Tal era a nota dos liberais, de Turgot, Condorcet, Mirabeau e outros continuadores de Voltaire, que esperavam conseguir uma revolução pacifica, impossível de satisfazer aos oprimidos, que reclamavam mais igualdade do que liberdade – a igualdade, mesmo a custa da liberdade. Rousseau, porta-voz do homem do povo, e sensível as diferenças de classes com que esbarrava a cada passo, exigia esse nivelamento; e quando a revolução caiu nas mãos de Marat e Robespierre, a igualdade venceu – a foi guilhotinada a liberdade.
Voltaire encarava com ceticismo as Utopias que pretendem criar por meio de leis um mundo de nova espécie, tirado da imaginação. A sociedade é uma coisa que se desenvolve com o tempo e não um silogismo de lógica; quando pomos o passado porta fora, ele reentra pela janela. Toda a questão é mostrar precisamente quais as mudanças com que poderemos minorar a miséria e a injustiça do mundo real em que vivemos. [*Pellissier, 288]. No “Elogio Histórico da Razão”, a Verdade, filha da Razão, manifesta seu jubilo pelo coroamento de Luiz XVI, e pelas grandes reformas que esperava. A isto a Razão responde: “Minha filha, bem sabes que também desejo estas e outras coisas mais – elas, porém, requerem tempo e reflexão. Sinto-me sempre feliz se, entre muitos desenganos, consigo algo da melhoria por que tanto ansiei”. Mesmo assim Voltaire regozijou-se quando Turgot subiu ao poder, e escreveu: “Estamos até o pescoço em plena idade de ouro” [*Em Sainte-Beuve, 234]- viriam então as reformas que ele tanto preconizara: o júri, a abolição dos dízimos, a isenção para os pobres dos pagamentos de impostos, etc. E não tinha ele escrito aquela celebre carta?
*Tudo o que vejo parece-me estar a lançar a todos os ventos as sementes de uma revolução, que inevitavelmente sobrevirá um dia, mas a que não teremos o prazer de assistir. O francês sempre age tarde, mas age. O fogo propaga-se assim, pouco a pouco, até um magnífico deflagrar no primeiro ensejo; e então será um abalo formidável! Felizes dos moços, pois verão belas coisas. [*Correspondência, 2 de abril de 1764].
Apesar disso, ele não compreendia perfeitamente o que se passava ao seu redor; nem por um instante supôs que em seu “magnífico deflagrar” toda a Europa acolheria com entusiasmo a filosofia daquele singular Jean-Jacques Rousseau, que de Genebra e de paris apaixonava o mundo com romances sentimentais e panfletos revolucionários. A alma complexa da França parecia dividir-se naqueles dois homens, tão diversos e, mesmo assim, tão franceses.
Quando Nietzsche fala da “gaya scienza”, de pés ligeiros, espírito, ardor, graça, forte lógica, arrogante intelectualidade, dança das estrelas – certo estava a pensar em Voltaire. Ao lado de Voltaire, ponha-se agora Rousseau: todo ele calor e fantasia, homem de visões nobres e ocas, ídolo de la bourgeoise gentilefemme, apregoando, como Pascal, que o coração tem suas razões que a cabeça jamais compreenderá.
Nestes dois homens veremos o velho antagonismo entre a inteligência e o instinto. Voltaire acreditava sempre na razão: “Podemos, pela palavra e pela pena, tornar os homens mais esclarecidos e melhores” [*Obras Escolhidas,62]. Rousseau, o contrário; os ricos da revolução não o atemorizavam; confiava no sentimento da fraternidade para tornar a unir os elementos sociais divorciados pelo tumulto social e supressão dos antigos costumes. Se eliminassem as leis, os homens entrariam no reino da igualdade e da justiça. Quando enviou a Voltaire o Discurso sobre a Origem da Desigualdade, contendo seus argumentos contra a civilização, as letras e a ciência, e a favor do retorno a condição natural, como a dos selvagens e animais, Voltaire respondeu-lhe: “Recebi, senhor, seu novo livro contra a espécie humana e sou-lhe grato pela remessa...Jamais alguém se esforçou tão inteligentemente para transformar-nos em animais; a leitura de seu livro dá-nos vontade de andar de quatro. Como, porém, já faz sessenta anos que perdi esse costume, sinto que infelizmente não me é mais possível retornar a ele” [*Correspondência, 20 de agosto de 1755].
Desgostou-o ver continuar no Contrato Social a paixão de Rousseau pelo selvagismo: “Ah, Monsieur” escreve a Mr. Bordes, “bem vê-se agora que Jean-jacques se parece tanto a um filosofo como um macaco a um homem” [*Idem, março de 1755]. É o cão de Diógenes que enlouqueceu” [*Em sainte-beuve, I, 230]. Apesar disso, atacou as autoridades suíças por queimarem esse livro, apegando-se a seu celebre aforisma: “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo” [*Voltaire em Suas Cartas]. E quando Rousseau fugia de um cento de inimigos, Voltaire mandou-lhe um convite especial para ficar com ele em Les Delices. Que curioso espetáculo não seria!
Voltaire estava convicto de que todo ataque a civilização era disparate pueril, e que o homem era incomparavelmente melhor no estado civilizado do que no estado selvagem; a Rousseau declara que o homem é por sua natureza um animal de presa e que a sociedade civilizada significa o embridamento desse animal, uma moderação de sua brutalidade e a possibilidade de desenvolvimento, por obra da ordem social, de sua inteligência e de suas alegrias. Concorda em que as coisas não andam direito: “Um governo em que se permite a certa categoria de pessoas dizer: -Paguem impostos os que trabalham; nós nada pagamos porque não trabalhamos – não é melhor que um governo de hotentotes”.
Paris tem seus aspectos reabilitadores, até em meio da corrupção. Em “O Mundo tal como é”, Voltaire refere-nos que um anjo envia Babouc a terra para informá-lo da necessidade de ser destruída a cidade de Persepolis; Babouc obedece e horroriza-se com os vícios que descobre; mas depois de algum tempo “começou a gostar de uma cidade cujos habitantes eram corteses, afáveis e beneficentes, embora fossem inconstantes, maldizentes e vaidosos – e grande receio concebeu de ser Persepolis condenada. Chegou mesmo a fugir de fazer seu relatório. Fê-lo, contudo, mas da seguinte forma: Mandou um dos melhores fundidores da cidade fundir uma estatua de diversos metais, terras e pedras [as mais preciosas e as mais comuns] e levou-a ao anjo. – Quererias partir – disse ele – esta bela estatua, por não ser totalmente de ouro ou de diamantes? – O anjo resolveu não mais pensar em destruir Persepolis, deixando “o mundo tal como é”. Afinal de contas, quando alguém experimenta mudar as instituições sem antes mudar a natureza dos homens, sua natureza não mudada s fará logo ressurgir as primitivas instituições.
Estava aí o velho circulo vicioso: os homens fazem as instituições e as instituições fazem os homens; quem poderia rompê-lo? Voltaire e os liberais achavam que a inteligência o faria, educando e transformando os homens lenta e pacificamente; Rousseau e os radicais entendia que o rompimento se operaria unicamente pela ação instintiva e ardente, que desmantelaria as velhas instituições e construiria, obedecendo ao coração, outras novas, nas quais imperassem a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Talvez que a verdade esteja com os dois campos antagônicos; o instinto destrói o que é velho, mas só a inteligência constrói o novo. Certo as sementes da reação encontrarão terreno fértil no radicalismo de Rousseau, pois o instinto e o sentimento se tornam afinal fieis ao velho passado que os originou e para o qual eram adaptações mecânicas. Depois da catarsis da evolução, as necessidades do coração reclamariam novamente a religião sobrenatural e “os bons velhos dias” de rotina e paz; após Rousseau viriam Chateaubriand, De Staël, De Maistre e Kant.
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