Enquanto isso, o velho “filosofo zombeteiro” cultivava seu pomar em Ferney; esta é “a melhor coisa que podemos fazer na terra”. Ele desejaria uma longa vida: “Meu medo é morrer antes de ter sido útil” [*Correspondência, 25 de agosto de 1766]; mas agora já havia desempenhado seu papel. Suas mostras de generosidade eram infinitas. “Todos, de perto ou de longe, recorriam a seus préstimos; muitos consultavam-no, contavam-lhe as injustiças de que eram vitimas e solicitavam o auxilio de sua pena e influencia” [*Sainte-Beuve, I, 235]. Seus especiais cuidados eram com os de condição humilde a qual se imputavam culpas; obtinha-lhes o perdão e em seguida amparava-os, dando-lhes alguma ocupação honesta, velando por eles e aconselhando-os durante todo esse tempo. Quando um jovem casal que o roubara se ajoelhou a seus pés implorando o perdão, ele o fez erguer-se, dizendo-lhe que o seu já lhe estava outorgado e que só lhe cumpria ajoelhar-se para pedir o perdão de Deus.[*Robertson, 71]. Um de seus atos característicos foi criar, educar e dotar uma sobrinha desamparada de Corneille. “O pouco bem que eu fiz”, disse ele, “foi minha melhor obra...Quando me atacam reajo como um demônio; e ninguém poupo; mas no fundo sou boa criatura e acabo sempre rindo-me” [*Id,67].
Em 1770 seus amigos lançaram uma subscrição para um busto a Voltaire. Aos ricos era proibido dar mais que uma migalha, pois milhares de pessoas reclamavam a honra de contribuir. Frederico perguntou quanto poderia dar; disseram-lhe: “Uma coroa, Sire, e o nome de Vossa Majestade. Voltaire feliciou-o por acrescentar ao cultivo de outras ciências aquele incitamento a anatomia, subscrevendo para a estatua de um esqueleto...Ele se opunha a iniciativa alegando não lhe ter ficado algum sobejo de rosto a modelar-se. “Dificilmente percebereis onde ele fica. Meus olhos afundaram-se três polegadas; as faces são como velho pergaminho...; os pouco dentes que eu tinha já se foram”. Ao que d’Alembert respondeu: “O gênio...tem sempre feições que o gênio seu irmão descobrirá facilmente” [*Id., 535].Quando sua predileta Bellet-Bonne o beijava, ele dizia que era a “Vida a beijar a Morte”.
Achava-se então com oitenta e três anos; e veio-lhe o grande desejo de rever Paris antes de morrer. Os médicos aconselharam-no a não empreender tão longa viagem; mas “quando quero cometer uma loucura”, respondeu Voltaire, “nada me pode impedir”; vivera tanto e trabalhara tão arduamente, que se julgava, talvez, no direito de morrer ao seu próprio modo e naquela Paris febricitante de que estivera exilado tantos anos. E por isso lá se foi, milha após milha, penosamente, através da França; e quando sua carruagem entrou na capital francesa, mal podiam seus ossos continuar articulados. Dirigiu-se imediatamente a casa d’Argental, seu amigo da mocidade:”Adiei a morte para vir ver-te”, disse. No dia seguinte seu alojamento regorgitava de visitas que o acolhiam como a um rei; Luiz XVI, enciumado, irritou-se. Benjamim Franklin levou-lhe um neto para que Voltaire o abençoasse; o filosofo pousou as mãos magras na cabeça do jovem e exortou-o dedicar-se “a Deus e a Liberdade”.
Tão fraco se achava que um padre foi confessá-lo. “Quem o mandou cá, Monsieur l’Abbé?” perguntou-lhe: “Foi o próprio Deus”, disse o padre. “Muito bem! Muito bem!” redargüiu Voltaire. Deixe-me ver as credenciais” [*Tallentyre, 535]. O padre saiu sem a presa. Algum tempo depois Voltaire mandou chamar outro padre, Gautier, para ouvi-lo em confissão; Gautier atendeu-o, mas recusou-se a absolver Voltaire enquanto este não assinasse uma completa profissão de fé católica. Voltaire revoltou-se contra a exigência; em vez disso redigiu uma declaração que entregou a seu secretário Wagner: “Morro adorando a Deus, amando meus amigos, mas odiando meus inimigos e detestando a superstição. [Assinado] Voltaire – 28 de fevereiro de 1778” [*Tallentyre, 538].
Mesmo doente e tropego, levaram-no a Academia, atravessando multidões tumultuosas de admiradores que subiam na carruagem e esfrangalhavam, para obter lembranças, a preciosa capa de peles que lhe dera Catarina da Rússia. “Foi um dos sucessos históricos do século. Jamais nenhum grande guerreiro, ao regressar de longa campanha coroado de glorioso triunfo, recebera mais imponente e ruidosa ovação” [*Morley,262]. Na Academia Volatire propôs uma revisão do dicionário francês; falou com entusiasmo juvenil e prontificou-se a encarregar-se da letra A. Por fim, ao sentar-se, disse: “Senhores, agradeço-vos em nome do alfabeto”. Ao que o presidente Chastellux respondeu: “E nós vos agradecemos em nome das letras”.
Entrementes, Irene, sua peça, estava sendo levada, e contra o conselho dos médicos Voltaire insistiu em ir vê-la. A peça era fraca; mas a assistência maravilhava-se menos de poder um homem de oitenta e três anos escrever uma peça fraca, do que de poder escrever qualquer peça [*Tallentyre, 525]; e abafava a voz dos atores com freqüentes ovações ao autor. Um estrangeiro que lá entrou teve a impressão de estar em um hospício – e fugiu assutado para a rua [*Id., 545].
Naquela noite, quando o velho patriarca das letras tornou para casa, sentia-se quase conformado com a morte. Sabia achar-se no fim, mas tinha a consciência de haver-se utilizado até ao máximo da poderosa e maravilhosa energia de que a natureza lhe dera talvez maior provisão do que a qualquer outro homem. Resistiu ao perceber que a vida o abandonava, mas a morte o iria vencer também. Seu fim ocorreu a 30 de maio de 1778.
Recusaram-lhe o sepultamento cristão em Paris; seus amigos, revoltados, puseram-no como lúgubre companheiro em um carro e retiraram-no da cidade alegando estar ainda vivo. Em Scleliêres encontraram um padre que compreendeu que as regras usuais não se fizeram para os gênios; e o cadáver foi enterrado em lugar sagrado. Em 1791 a Assembléia Nacional da Revolução triunfante obrigou Luiz XVI a mandar para o Pantheon os restos mortais de Voltaire. As cinzas da grande flama que se extinguira foram acompanhadas através de Paris, por um cortejo de 100.000 pessoas, ao mesmo tempo que mais de 600.000 abriam alas. Liam-se no carro fúnebre os dizeres: “Voltaire deu grande impulso ao espírito humano e preparou-nos para a liberdade”.
Em sua pedra tumular só foram necessárias três palavras: Aqui jaz Voltaire.
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