17 de jul. de 2011

George Santayana_Razão e Ciência

A Vida da Razão é “um nome para todo pensamento pratico e toda ação justificada pelos seus frutos na consciência”. A Razão não é inimiga do instinto e sim o seu uníssono; é a natureza tornando-se consciência em nós, iluminando o seu próprio caminho, rumo a meta. É o “feliz matrimonio de dois elementos – impulso e ideação – os quais, se divorciados, reduzem o homem ao bruto ou ao maníaco. O animal racional se gera pela união destes dois monstros. É constituído por idéias que cessaram de ser visionadas e por ações que cessaram de ser vãs”. A Razão é a “humana imitação da divindade”.

A Vida da Razão baseia-se francamente na ciência, porque a “ciência encerra todos os conhecimentos que merecem confiança”. Santayana conhece a precariedade da razão e a falibilidade da ciência; aceita a analise moderna dos métodos científicos como simples notas taquigráficas, descritivas da regularidade observada em nossas experiências, em vez de as considerar “leis” que governam o mundo e lhe asseguram a imutabilidade. Mas ainda assim modificada, a ciência deve ser o nosso único ponto de apoio; “fé no intelecto... é a única fé que já foi sancionada pelos seus frutos. Desse modo compreende ele a vida, sentindo, como Sócrates, que a vida sem expressão racional é indigna do homem, e procura sujeitar todas as “fases do progresso humano”, toda a paisagem dos interesses e da historia ao exame da razão.

Santayana é modesto; não propõe uma nova filosofia, mas sim a aplicação das velhas filosofias a nossa vida presente; considera os primeiros filósofos os melhores; e acima de todos coloca Demócrito [*Ele faz Demócrito o herói de seu ultimo volume, Dialogues in Limbo] e Aristóteles, aprecia o brutal materialismo do primeiro e a permanente sanidade do segundo. “Em Aristóteles a concepção da natureza humana é perfeitamente sadia: tudo é ideal tem uma base natural, e tudo quanto é natural tem um desenvolvimento ideal. Sua ética, quando perfeitamente digerida e ponderada, parecerá perfeitamente finalística. A Vida da Razão encontra ali a sua aplicação clássica”. E, armado desse modo, com os átomos de Demócrito e a aurea media de Aristóteles, Santayana enfrenta os problemas da vida contemporânea.

*Na filosofia natural sou um decidido materialista, aparentemente o único vivo...Mas não professo conhecer o que a matéria é em si...Espero que o homem de ciência venha dizer-mo...Mas, seja ela o que for, eu intrepidamente lhe chamo matéria, como chamo Smith e John a certas pessoas sem lhes conhecer os segredos.

Santayana não se permite ao luxo do panteísmo, que é mero subterfúgio do ateísmo; nada acrescentamos nós a natureza com chamar-lhe Deus; “a palavra natureza é bastante poética e suficientemente sugere a função geratriz, a vitalidade sem fim e a  mutabilidade da ordem do mundo em que vivemos”. Estar sempre inclinado para a velha fé, refinada e desnaturada nestas formas, é ser D. Quixote enlatado na sua obsoleta armadura. Santayana, todavia, é bastante poeta para saber que um mundo completamente despido de deidades se torna uma casa gélida e desagradável. “Por que invariavelmente a consciência humana se há rebelado contra o naturalismo, voltando-se, de uma forma ou outra, para o culto do invisível?”  Talvez “porque a alma é afim do eterno e do ideal”; não se mostra contente com o que tem e anseia por melhor vida; entristece-se com o pensamento da morte e agarra-se a esperança de algum poder que no meio do turbilhão envolvente a faça perpetua. Mas Santayana conclui brutalmente: “Creio que nada existe imortal...Nenhuma duvida que o espírito e a energia do mundo é o que age em nós como o mar é o que se ergue em cada onda; o espírito passa através de nós e a despeito dos nossos gritos, segue seu caminho. A grande coisa que fazemos é perceber-lhe o movimento”.
   
O mecanismo é provavelmente universal; e embora a “física não possa explicar este minúsculo movimento e pululação da crosta da terra da qual a humanidade é parte”, o melhor método em psicologia está em supor que o mecanismo prevalece ainda nos recessos mais remotos da alma. A psicologia passa de literatura a ciência unicamente quando procura a base material e mecânica de cada fato mental. O próprio e o esplendido trabalho de Spinoza sobre as paixões não passa de “psicologia literária”, uma dialética de dedução, desde que ele não procura para cada impulso ou emoção a sua base fisiológica. Os ‘behavioristas” de hoje encontraram o verdadeiro caminho e por ele seguem intimoratos.

Tão completamente mecânica e material é a vida que a consciência, a qual não passa de processo e condição, não tem ação eficiente; a ação eficiente reside no calor com que impulsos e desejos movem o cérebro e o corpo, não na luz que brilha como pensamento. “O valor do pensamento é ideal, não causal”; isto é, não consiste em instrumento de ação, mas sim em teatro de experiência e recipiente de deleites morais e estéticos.

*Será a mente que controla o corpo e aponta o caminho a hábitos físicos incertos de suas afinidades? Ou não é mais que uma automática maquinaria superior que executa o maravilho trabalho enquanto o cérebro apanha aqui e ali alguns relances da operação, agora com deleite, depois com impotente revolta?...Lalande, ou quem quer que investigue, os céus com o telescópio e não encontre Deus, também não encontrará o espírito humano, se investigar o cérebro com o microscópio...A fé em tal espírito é simplesmente fé em magia...A alma é unicamente uma bela e veloz organização dentro da matéria animal...uma prodigiosa rede de nervos e tecidos que em cada geração cresce de uma semente. [*R.in.C.S].

Devemos aceitar este alegre materialismo? É espantoso que tão sutil pensador e tão etéreo poeta pudesse amarrar aos pés a mó de uma filosofia que depois de séculos de esforço não conseguiu explicar o crescimento de uma flor ou o sorriso e uma criança. Pode ser verdade que a concepção do mundo como um “híbrido  bissectil”, meio material e meio mental, seja “uma grosseira conjunção de autômato com fantasma”; e está lógica e lucidamente personificada na concepção de Satayana sobre si próprio como um autômato refletindo automaticamente o seu próprio automatismo. Mas se a consciência não tem eficácia, por que então evoluiu tão lenta e penosamente, e por que sobrevive em um mundo em que o inútil breve sucumbe?  A consciência é órgão de julgar, bem como instrumento de deleite; sua função vital está no ensaio de respostas e na coordenação da reação. E por causa disso é que somos homens. Talvez que a flor e sua semente, e a criança e seu sorriso, contenham mais o mistério do universo que qualquer maquina que ainda existiu em terra ou mar; e talvez seja mais sábio interpretar a natureza em termos de vida que procurar compreendê-la em termos de morte.

Mas Santayana também leu Bergson e o abandona.

*Bergson fala muito sobre a vida e sente que lhe penetrou fundo em sua natureza; e no entanto a morte, juntamente com o nascimento é a analise natural do que a vida é. Que propósito criador é esse que precisa esperar pelo sol e pela chuva para pôr-se em movimento? Que vida é essa que pode ser extinta instantaneamente em um individuo com uma bala? Que ‘élan vital’ é esse que uma pequena queda da temperatura bane completamente do universo?

George Santayana _Ceticismo e Fé Animal

“Não está aqui”, diz o prefácio, “mais um sistema de filosofia. Se o leitor sentir vontade de sorrir, sorrirei com ele...Estou meramente tentando exprimir os princípios para os quais o leitor apela quando sorri”. Santayana é bastante modesto [coisa estranha em filosofia] para crer que outros sistemas, que não o seu, sejam admissíveis. “Não peço a ninguém para pensar comigo, se as preferências vão para outros. Que cada qual abra como possa as janelas da alma, para que diante dela a variedade das perspectivas se espalhe com mais brilho” [*Scepticism and Animal Faith].

Neste ultimo volume introdutório se propõe esclarecer, antes de mais nada, a teia de aranha epistemológica que vem embaraçando o crescimento da filosofia moderna. Antes de delinear a Vida da Razão quer discutir, com toda a parafernália técnica tão cara aos epistemologistas tradicionais, a origem, a validade e os limites da razão humana. Sabe que o grande perigo é a aceitação sem critica de proposições tradicionais: “O criticismo surpreende a alma nos braços da convenção”, diz ele inconvencionalmente. Quer duvidar de tudo: o mundo vem  para nós gotejante das qualidades dos sentidos através doas quais se coou, e o passado nos vem através de uma memória traiçoeiramente colorida, com o desejo. Uma coisa apenas para certa a Santayana e é que a experiência do momento – essa cor, essa forma, esse gosto, esse cheiro, essa qualidade, são o mundo ‘real’ e que sua percepção constitui a ‘descoberta da essência”.

O Idealismo é correto, mas não de grande conseqüência: bem verdade que só conhecemos o mundo através de nossas idéias; mas desde que por milhares de anos o mundo se vem comportando substancialmente como se nossas sensações combinadas fossem verdadeiras, podemos aceitar esta sanção pragmática sem nos incomodar com o futuro. “Fé animal” pode ser fé em um mito, mas o mito é um bom mito desde que vida vale mais que qualquer silogismo. A falácia de Hume jaz em supor que a descoberta da origem das idéias lhes destrói a validade. “Uma criança natural significa para ele uma criança ilegítima; sua filosofia não havia alcançado a sabedoria daquela francesa que perguntou  se todas as crianças não eram naturais”. Este esforço de ser cepticamente estrito no duvidar da validade da experiência foi levado pelos alemães a ponto mórbido, como no louco que lava continuamente as mãos para limpá-las de manchas que nelas não existem. Mas ainda estes filósofos “que procuram pelos fundamentos do universo em seus próprios ‘espíritos’ não vivem como se realmente cressem que as coisas cessam de existir quando não percebidas.

* Não somos convidados a abolir a nossa concepção do mundo natural, nem igualmente, em nossa vida diária, somos convidados a deixar de  crer nele; devemos ser idealistas unicamente a noroeste, ou transcendentalmente; quando o vento está de sul devemos permanecer realistas...Eu me envergonharia de favorecer opiniões nas quais, fora da discussão, não creio. Parece-me desonesto e covarde militar sobre outro pavilhão além do que nos abriga. Por isso nenhum escritor moderno é aos meus olhos completamente filosofo, exceto Spinoza...Eu francamente tomei pela mão a natureza, aceitando como regra para todas as minhas especulações a fé animal do meu dia a dia.

E assim Santayana escapa a epistemologia – e nós respiramos mais facilmente ao passarmos com ele para a magnífica reconstrução de Platão e Aristóteles a que chama “A Vida da Razão”. Esta introdução epistemológica foi aparentemente um batismo necessário a nova filosofia. É uma concessão transicional porque a filosofia ainda veste as saias epistemológicas, como os chefes laboristas que se apresentam de blusa na corte do rei. Algum dia, quando a idade média estiver realmente passada, a filosofia descerá das nuvens e se identificará com o terra-a-terra dos homens.