26 de fev. de 2011

Sócrates

A julgar pelo busto, salvo entre as ruínas da escultura antiga, Sócrates, mesmo para um filosofo, estava longe de ser belo. Calvo, rosto grande e redondo, olhos fundos e arregalados, um nariz largo e túrgido, indicativo da sua assiduidade em numerosos simposions – sua cabeça lembrava antes a de um carregador do que a do mais celebre dos filósofos. Mas se atentarmos melhor, veremos, através da bruteza da pedra, algo da humanitária bondade e da simplicidade natural que faziam daquele pensador de rude aspecto o amado dos mais distintos jovens de Atenas. Mui pouco sabemos sobre ele, embora mesmo assim o conheçamos mais intimamente do que a aristocrático Platão ou ao reservado e douto Aristóteles. Após dois mil e trezentos anos podemos ainda vê-lo com seu desajeitado sempre vestido com a mesma túnica surrada, a passear pela Agora, indiferente aos rumores políticos, reunindo no pórtico do templo os jovens encontradiços para lhes pedir a definição dos termos das coisas que afirmavam.

Era bem variado o bando desses moços exameantes em torno dele e que ajudavam a criar a filosofia européia. Havia-os ricos, como Platão e Alcebíades, que gostavam imensamente de sua analise critica da democracia ateniense; havia-os socialistas, como Antístenes, que apreciavam a pobreza despreocupada do mestre e dela faziam sua religião; havia-os também anarquistas, como Aristipo, que sonhavam um mundo sem senhores e escravos, onde todos fossem despreocupados e livres como Sócrates. Os problemas que agitam a sociedade atual e fornecem matéria para infindos debates entre os moços,  já interessavam também aquele pequeno grupo de pensadores e conservadores, que sentiam, tal qual o mestre, que a vida sem tais debates seria indigna de um homem. Cada escola de idéias sociais teve lá seu representante e, talvez, sua origem.

Como vivia o mestre, é coisa que dificilmente alguém poderá saber. Não trabalhava, nem se preocupava com o dia de amanhã. Comia quando os discípulos pediam lhes desse a honra de tê-lo as suas mesas; naturalmente apreciavam a companhia do filosofo, pois que Sócrates tinha ares de um homem bem alimentado. Em casa não o acolhiam benevolentemente; para sua mulher, Xantipa, ele era um mandrião imprestável, que dava a sua família mais notoriedade do que pão. Xantipa gostava de falar quase tanto com Sócrates e dos dois juntos deveriam ter travado interessantes diálogos que Platão deixou de registrar. Ela, contudo, amava-o e sofreu de vê-lo morrer, mesmo aos setenta anos.

Por que seus discípulos o veneravam tanto?
Talvez por ser tanto homem como filosofo: havia, com grande risco, salvado a vida de Alcebíades em uma batalha; e sabia beber como homem distinto – sem constrangimento e excessos. Mas sem duvida o amavam mais pela modéstia de sua sabedoria: Sócrates não proclamava tê-la e sim, procurá-la; era amador e não profissional da sabedoria. Conta-se que o oráculo de Delfos, com  excepcional bom senso, o declarara o mais sábio dos gregos; e ele interpretava estas palavras como aprovação do agnosticismo, que era o ponto de partida de sua filosofia – “Só sei uma coisa e é que nada sei.” A filosofia começa quando aprendemos a duvidar – especialmente a duvidar das nossas crenças prediletas, seus dogmas e axiomas.

Quem sabe se essas crenças prediletas se tornaram para nós certeza por causa de algum secreto desejo, que, vestido com a roupagem do pensamento, furtivamente as fez nascer? Inexiste verdadeira filosofia enquanto o espírito não se volta para examinar a si próprio. “Gnothi Seaunton”, disse Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo.”

Antes dele houve, naturalmente, outros filósofos; robustar mentalidades com Tales e Heraclito, espíritos sutis como Parmênides e Zenon de Eléia, ‘videntes’ como Pitágoras e Empédocles; mas em sua maioria foram filósofos físicos; procuravam conhecer a ‘physis’, ou natureza das coisas exteriores, e as leis e elementos componentes do mundo material e mensurável. Isto é muito bom, disse Sócrates; mas existe matéria infinitamente mais digna da meditação dos filósofos do que estas arvores e pedras e mesmo do que todas aquelas estrelas: é o espírito do homem. Que é o homem, e que poderá tornar-se?

Entrou a sondar a alma  humana, desvendando idéias preconcebidas e pondo em duvida suas convicções. Se os homens se referiam a justiça, ele, calmo, perguntava: - To ti? Que é isso? Que significais com as palavras abstratas, por meio das quais explicais tão facilmente os problemas da vida e da morte? Que compreendeis por honra, virtude, moralidade, patriotismo? Que compreendeis por vós mesmos? Era dessas questões morais que Sócrates gostava de tratar. Alguns dos submetidos a este ‘metodo socratico’, a estes pedidos de definições precisas e esclarecimentos das coisas e analise exata, redargüiam que ele mais perguntava do que respondia, deixando os espíritos mais confusos do que antes. Todavia Sócrates legou a filosofia duas respostas muito precisas a dois de nossos mais difíceis problemas: - Qual a significação de virtude?
– Qual o melhor governo?

Nenhum assunto poderia ter mais vital importância para os jovens atenienses daquela geração. Os sofistas lhes haviam destruído a primitiva fé nos deuses do Olimpo e no código moral que tão abundantemente tirava suas sanções do medo que os homens tinham daquelas onipresentes e inúmeras divindades; aparentemente não havia motivo para um homem não proceder com entendesse, uma vez que se mantivesse dentro dos limites traçados pelas leis. Um individualismo desintegrador enfraquecera o caráter ateniense, tornando por fim a cidade presa dos espartanos severamente educados. E, quanto as coisas publicas, que mais ridículo do que aquela exaltada democracia da populaça, aquele governo feito com discussões do povo, a leviana escolha, demissão e execução de generais, e a escolha sem seleção de lavradores e mercadores, por meio da ordem alfabética, para membros da suprema corte nacional? Como se desenvolver em Atenas uma nova moralidade natural, e como salvar o país?

Foi pelo responder a estas perguntas que Sócrates deveu a morte e a imortalidade. Os cidadãos mais antigos o honrariam se ele tentasse restaurar a velha fé politeísta, se houvesse conduzido seu bando de almas emancipadas aos templos e bosques sagrados e as fizesse novamente sacrificar aos deuses de seu país. Mas Sócrates sentiu que seria isso a estéril política do suicídio, um regredir para dentro dos túmulos, e não um progredir ‘por sobre os túmulos’. Tinha sua própria fé religiosa; acreditava em um Deus e esperava, com a humildade habitual, que a morte não o destruiria totalmente; [1]Cf. a história, de Voltaire, de dois atenienses conversando sobre Sócrates: “Ateu é quem diz que existe um só Deus”. Dicionário Filosófico, palavra ‘Socrates.’mas reconhecia não poder basear-se em tão incerta teologia um duradouro corpo de preceitos morais. Se fosse possível edificar um sistema de moral absolutamente independente das doutrinas religiosas, e com tanta autoridade para ateus como para crentes, poderiam então as teologias surgir e desaparecer sem afrouxar os vínculos morais que convertem indivíduos indisciplinados em cidadãos pacíficos de uma comunidade.

Se, por exemplo, ‘bom’ significasse ‘inteligente, e virtude significasse sabedoria; se se pudesse ensinar os homens a ver claro aquilo que é de seu verdadeiro interesse, a prever os remotos resultados de seus atos, a submeter a exame, e coordenar seus desejos, fazendo-os sair de um caos esterilizador e convertendo-os em harmonia criadora visando a um fim – isto, talvez, proporcionasse ao homem educado e artificializado a moralidade que para os iletrados se radica nos preceitos ouvidos, repetidamente e na observância das exterioridades. Porventura todos os pecados não passarão de erros, visões parciais das coisas e sinais de pouca idade de espírito? O homem inteligente pode ter os mesmos impulsos violentos e anti-sociais do ignorante; mas certo os refreará melhor, deixando mais vezes de imitar os animais. E numa sociedade inteligentemente dirigida – na qual se restitue ao individuo, com um aumento de suas faculdades, mais do que  a porção de liberdade que lhe foi tomada – todos os homens achariam vantagem em um bom e correto proceder social, e bastaria somente a boa vontade.

Mas se o governo é caos e absurdo, se impera sem auxiliar e ordena sem guiar – como poderemos persuadir aos indivíduos a obedecer as leis e a confiar os atos de seu próprio interesse nos limites do bem geral? Não admira que um Alcebíades se insurja contra um Estado que desconfia dos homens aptos e reverencia mais o numero do que o saber. Não é também de admirar exista o caos onde não há pensamento e que a multidão tome resoluções rápidas e ineptas para depois arrepender-se consternadamente. Não é superstição rasteira acreditar-se que a maior sabedoria depende da maior quantidade de pessoas?  Não se tem sempre visto, ao contrario, que as multidões são  mais insensatas, violentas e cruéis do que os homens isolados? Não é vexatório que elas se deixem guiar por oradores que ‘vão zoando frases em longos discursos como vasos de bronze que, percutidos, continuam a soar enquanto não se lhe encoste a mão? [1]Protágoras, de Platão, secc 329. Não há duvida que a direção de um país é matéria para a qual nunca os homens poderão ser assaz inteligentes, exigindo ao invés, toda a contribuição intelectual dos mais apurados espíritos. Como pode salvar-se ou ser forte uma sociedade a não ser quando guiada pelos mais sábios?

Imagine-se a reação do partido popular em Atenas a esse evangelho aristocrata num tempo em que a guerra exigia se silenciasse toda critica e quando a minoria rica e letrada estava a planejar um revolução. Avaliem-se os sentimentos do chefe democrático Anitos cujo filho se tornara discípulo de Sócrates, renegara em seguida os deuses de seu pai, e rira-se das idéias deste. Aristófanes não predissera exatamente esse resultado da substituição artificial das antigas virtudes pela inteligência anti-social? [2]
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[2]Em ‘As Nuvens’ [439 a.C] Aristófanes mete a bulha Sócrates e sua “Lógica da Filosofia”, onde se ensina a arte de dar razão a quem a tenha. Filipedes bate o pai no terreno em que este costumava batê-lo, ficando assim saldadas as contas. A sátira parece ter sido simples gracejo, pois vemos Aristófanes freqüentemente ao lado de Sócrates; ambos comungavam no mesmo desprezo da democracia; e Platão recomenda ‘As Nuvens’ a Dionísio. Como a peça foi representada vinte e dois anos antes do julgamento de Sócrates, não pode ter contribuído para acarretar o trágico desenlace da vida do filosofo.
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Sócrates levantou-se e dirigiu-se ao banheiro com Criton, que nos mandou ficar a espera; e esperamos, a conversar e a falar sobre...a grandeza da nossa dor; ele era como um pai de quem íamos nos ver separados, e teríamos de passar como órfãos o resto de nossa vida... Já se avizinhava então a hora do por do sol, pois se passara muito tempo desde que Sócrates se dirigiu a sala do banheiro. Ao sair sentou-se novamente conosco...mas não nos dissemos muita coisa. Em pouco entrou o servidor dos Onze...e se postou junto dele, dizendo: “A vós Sócrates, que reconheço ser o mais nobre, mais delicado e o melhor de todos os que tem estado neste lugar, não atribuirei sentimentos de outros homens, que se encolerizam e praguejam contra mim, quando, em obediência as autoridades, mando-os beber o veneno; tenho a certeza de que não vos enraivecereis, já que cabe a outros, não a mim, a culpa deste ato. Assim, eu vos saúdo e exorto a sofrer animosamente o que não pode ser evitado; conheceis a minha missão.” E nesse ponto, prorrompendo em pranto, voltou-se e retirou-se.

Vendo-o sair, Sócrates disse: “ Retribuo tua saudação e procederei segundo mandas”. Em seguida para nós: “Este homem é cativante; desde que estou preso, vem sempre ver-me e agora mostra-se generosamente condoído de minha sorte. Mas devemos fazer o que ele diz, Criton; que tragam a taça, se já prepararam o veneno; se não, que o faça o encarregado disso.”

Criton respondeu: “mas os raios do sol ainda luminam os cimos dos montes e muitos houve que toaram a bebida   mais tarde; e depois de a mandarem tomar, ainda os deixaram comer e beber e entregaram-se aos prazeres do amor; não vos apresseis, portanto; ainda não chegou a hora”.

Replicou-lhe Sócrates: “Sim, Criton, esses a que vos referes andaram bem procedendo assim, já que achavam proveitosa a demora; quanto a mim, tenho razão de não me portar desse modo, pois não julgo que lucre alguma coisa bebendo um pouco mais tarde o veneno; estaria a preservar uma vida que já perdi; com isso apenas me enganaria a mim próprio. Peço-vos, pois, que façais o que digo”.

Ouvindo estas palavras, Criton fez um sinal, a um escravi que se achava perto, o escravo afastou-se, em seguida voltou com o carcereiro a trazer a taça de veneno. Disse-lhe Sócrates: “meu bom amigo, como tendes experiência destas coisas, dizei-me como devo proceder”. O carcereiro respondeu: “Ponde-vos a andar até sentirdes as pernas fracas; deitai-vos após e o veneno produzirá seu efeito.” Ao mesmo tempo oferecia a taça a Socrates, que, do modo mais natural e gentil, sem o menor medo, nem mudança de cor ou de expressão, olhando fixamente o carcereiro, conforme era seu costume olhar os homens, tomou  a taça e disse: “Que achais da idéia duma libação a algum deus, derramando um pouco desta bebida? Posso ou não fazê-la?” O carcereiro respondeu: “nós, Sócrates, preparamos apenas a quantidade que julgamos necessária.” “Compreendo”, voltou o filosofo “mesmo assim devo pedir aos deuses que favoreçam a minha viagem deste mundo para o outro – e possa este meu desejo, que será a minha prece, ser atendido por eles.” Então, levando a taça aos lábios, bebeu rápida e corajosamente a cicuta.

Ate esse instante a maioria dos presentes conseguira dominar a própria dor; mas vendo-o começar a beber e por fim esgotar a taça, não mais nos pudemos conter; a despeito de meus esforços, o pranto borbotou-me dos olhos; cobri o rosto e chorei por mim mesmo. Pois não pranteava, certamente, por ele, e sim a evocação de minha desgraça de perder tal companheiro. Não fui o primeiro, pois Criton, sentindo-se incapaz de recalcar as lagrimas, levantou-se e retirou-se; eu acompanhei-o; e nesse instante Apolodoro, que estivera a chorar todo o tempo, prorrompeu em altos soluços, que acabaram de fazer-nos fraquejar. Unicamente Sócrates se mantinha calmo: “Para que tanto espalhafato?” perguntou. “Mandei que as mulheres saíssem, sobretudo para assim não procederem, pois ouvi dizer que um homem deve morrer em paz. Acalmem-se, e conformem-se”. Ouvindo tais palavras, sentimo-nos envergonhados e represamos as lagrimas; e ele pôs-se a andar, até que, conforme disse, as pernas começaram a fraquear-lhe; deitou-se então de costas, de acordo com as instruções recebidas; e o homem que lhe dera o veneno vez em vez observava-lhe os pés e as pernas; depois de algum tempo, apertou-lhe os pés com força e perguntou-lhe se o sentia; Sócrates respondeu: “Não”; e em seguida apertou-lhe as pernas, cada vez mais para cima,  e mostrou-nos que estavam frias e hirtas. E então Sócrates notou-lhes o estado e disse: “Quando o veneno chegar ao coração, será o fim de tudo”. Já começava a sentir  frio o baixo ventre quando descobriu o rosto (pois o havia velado) e disse – e foram as suas ultimas palavras -: Criton, devo um galo a Asclépio; não esqueça de pagar essa divida”. “Assim o farei, respondeu Criton. Mais alguma coisa?” Esta pergunta não obteve resposta, mas daí a alguns minutos viram-no estremecer. O carcereiro descobriu-o; tinha os olhos parados. Criton fechou-lhe as pálpebras e a boca.

Tal o fim do nosso amigo, a quem com verdade chamarei o mais sábio, o mais justo e o melhor de todos os homens que conheci.

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Sobreveio em seguida a revolução; os homens travaram, pró e contra, luta de morte. Vitoriosa a democracia, decidiu-se o destino de Sócrates: por mais pacifico que se houvesse mostrado, era ele o chefe intelectual dos revoltosos, e fonte da abominada filosofia aristocrática e o corruptor dos moços, a que, com suas discussões, embebedara. Melhor seria que Sócrates perecesse – disseram Anitos e Melitos.

O restante da história todos sabem, pois Platão o descreveu em prosa mais bela que a poesia. Temos a ventura de conhecer aquela simples e corajosa [se não lendaria] apologia ou defesa, na qual o protomartir da filosofia proclama o direito e a necessidade da liberdade do pensamento, põe em realce seu valor para o estado e se recusa a pedir mercê a multidão que sempre desprezara. Tinha ela poder para perdoa-lo; Sócrates desdenhou esse perdão. Era uma singular confirmação de suas teorias o quererem os juizes vê-lo absolvido, enquanto a turba, enraivecida, votava pela morte. Não havia ele negado os deuses? Infelizes os que ensinam aos homens mais coisas do que eles podem aprender...

Condenaram-no, por isso, a beber cicuta. Seus amigos foram a prisão e facultaram-lhe o meio fácil de evadir-se; haviam subornado a todos os funcionários a quem dependia sua liberdade. Sócrates recusou. Tinha então setenta anos de idade [399 a.C]; talvez julgasse ser tempo de morrer; melhor ocasião de morrer tão utilmente talvez nunca mais se lhe deparasse. “Mostrai-vos alegres”, exortou aos amigos que se entristeciam, “e dizei-vos que ides unicamente sepultar o meu corpo”. “Ao acabar de proferir tais palavras”, diz Platão num dos mais sublimes fragmentos da literatura do mundo [1] Fedon, ns. 116-118, trad. Inglesa Jowett.
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[Will Durant_Historia da Filosofia]