Em junho, no deserto do Vale dos Reis, na margem oeste do rio Nilo, a temperatura chega a 49ºC por volta do meio dia. Para evitar o calor, acordamos cedo, nos vestimos e tomamos o café da manhã enquanto ainda está escuro, depois pegamos uma balsa para Tebas, ao nascer do Sol. Pelo menos uma vez na vida, a gente tem de ver o nascer do Sol em Luxor. Num momento, todo o tempo se contraí, todo o tempo se contraí, depois expande. Passado e presente se unem. À medida que rochas e montes se enchem de cor, as folhas das palmeiras parecem visivelmente se esticar para pegar a primeira luz do dia. A gente sente que testemunhou o alvorece da criação. A PAZ se faz presente.
Em todos os outros aspectos, o Vale do Reis é um lugar desolado, todo de rocha amarela, poeira, areia e uma profusão de nichos sepulcrais escavados fundo no leito rochoso. Aqui estão os Faraós do antigo Novo Império do Egito. Eis o ultimo repouso dos deuses na Terra, sob um alto monte pontiagudo que se parece com uma pirâmide natural, incrustado num céu eternamente azul. Os mitos nos contam que esse monte primevo ergueu-se das águas abissais quando o deus criador Atum [ou Ptah] pronunciou a Palavra. Aqui o ser surgiu do nada, para cá o morto retorna, esperando de novo passar da morte para a vida.
Ao longo das encostas do Vale dos Reis, uma multidão de nichos sepulcrais se estende para baixo, passagem após passagem, corredor após corredor. As paredes e tetos em estuque são pintados em vivos verdes, vermelhos, azuis e amarelos. Os olhos se refestelam com figuras de homens e mulheres, deuses e deusas. Hieróglifos proclamam formulas mágicas para viver e morrer, prescrições para transmutações, mapas para o submundo, textos para o morto.
À direita e à esquerda da entrada da tumba de Ramsés III dois anjos se ajoelham com as asas abertas. Trata-se de ‘MA’AT’, a dupla deusa da balança, um lembrete de que a morte é a hora da Verdade. As duas figuras estão de braços abertos, asas amplamente estiradas, como que esperando que o sepultado a abrace.
A meio caminho da enorme tumba descendente, com suas 27 passagens, cômodos e câmaras, vejo Ma’at outra vez ... e fico paralisada. Pequena, alva e lembrando um pássaro, ela está sentada sobre a mão em concha do faraó. No cabelo, usa uma só pena branca de avestruz: o contrapeso que é colocado na balança durante a pesagem da alma no submundo.
DÁDIVA DOS DEUSES
Estou presenciando a mais pungente arte do mundo, pinceladas delicadas e cores que nunca foram destinadas aos olhos mortais, mas aos olhos de deuses e espíritos. Embora com 3.000 anos de idade, a pintura parece recém saída da paleta do pintor. Eis a eterna Ma’at, o maior tesouro que um homem pode possuir, deusa da balança e da pena de avestruz, da Lei Cósmica e da Verdade.
Ela não nasceu do ventre de uma outra deusa. Está entre os poucos seres divinos, eternos, que jamais nasceram, jamais envelhecem ou morrem. No céu, Ma’at presenciou o alvorecer da criação. Ela equilibrou a balança e criou a ordem a partir do caos. Ela ajustou fluxo e refluxo. Até mesmo o caminho do poderoso deus-sol Ra foi determinado pela lei inalterável, divina, de Ma’at. Ela nutriu os deuses como seu próprio alimento e bebida. Quando o monte primevo surgiu das profundezas, ela desceu do céu à terra, encarnando a dádiva dos deuses para a humanidade:equilíbrio, harmonia, perfeição e ordem. Em muitas representações, a plataforma sobre a qual repousa Ma’at é o hieróglifo, que tanto pode representar o primevo como o nivelador do artesão. O glifo sozinho indica aquilo que está mensurado, estável, reto, ereto e verdadeiro.
Na mão de um afarão, Ma’at representa a suprema oferenda mortal, o retorno de Ma’at aos deuses. Carneiros podem ser sacrificados; moli, açafrão e incenso queimados; ouro, cerveja e pão colocados sobre o altar. Esses são meros sinais, sacrifícios transitórios. Os deuses pouco precisam, só do amor e da gratidão humana. Pedem apenas para serem vivenciados no coração dos homens, para que os homens e deuses vivam em harmonia, com Ma’at. Criada pelos deuses, doada pelos deuses e os deuses devolvida, Ma’at é o essencial pra toda vida, humana ou divina.
Em toda parte pelas tumbas do Vale às vezes ela aparece em pé ao lado de Ptah, o deus criador de Mênfis, recebendo uma representação sentada de si mesma: Ma’at retorna para Ma’at; ordem preservada, vida resguardada, criação que retorna à criação. Outras vezes aparece ao lado de Osíris, deus da morte e da ressurreição, em sua capacidade de juíza imparcial da alma dos homens. De vem em quando aparece sozinha, segurando o ‘ankh’, como se ele fosse uma flor perfumada, de encontro ao nariz do faraó, provendo-o com o sopro da vida, de modo a que no outro mundo, como neste, ele possa respirar verdade e vida eterna.
DUALIDADE DE MA’AT
Algumas vezes ela aparece como duas deusas, duas penas, dois pássaros ou principio gêmeos – a Ma’at dupla. M sua forma dupla, Ma’at é representada pela mágica e nutridora Ísis e sua irmã no infortúnio, Néftis, os princípios de luz e escuridão, ação e receptividade. Ma’at é o equilíbrio perfeito da oposição entre energias positivas e negativas, da lei de causa e efeito.
A dualidade de Ma’at está no núcleo do misticismo egípcio. Do supremo conceito do UM, surge o principio do DOIS, o primeiro passo rumo à diversificação da unidade. A luz se distingue da escuridão, o homem se distingue da mulher. Através do delicado equilíbrio de ambos entre si, surge toda uma multiplicidade de formas. Criação gera Criação. A vida sustenta a si mesma, transforma, vive, morre, renasce.
VERDADE
Um dos interessantes princípios lingüísticos por trás do hieróglifo egípcio para ‘verdade’, que também é Ma’at, é que a palavra é sempre escrita no plural. O hieróglifo fornece, como um dos seus símbolos, o sinal usado para ‘múltiplos grãos de areia’, indicando que a verdade é mais que uma única coisa.
Com a diversificação vem a noção de discernimento. Se as coisas podem variar, então pode-se perceber sua variedade. Assim sendo, segue-se a escolha e, como manifestação da escolha,livre arbítrio e moralidade. Em contrapartida, a alma eterna, unificada, é afeta por essas percepções e julgamentos. Portanto, na morte o coração pode ser pesado na balança.
Freqüentemente nas paredes de uma tumba e no Livro dos Mortos, Ma’at aparece sentada ante a balança durante a pesagem doc coração. É o coração, e não a mente, que passa pela pesagem, porque os antigos acreditavam que o coração era onde os julgamentos morais eram feitos. Os pensamentos às vezes ludibriam o homem, mas seus sentimentos, representam sempre a verdade.
Conduzido pelo deus falcão, Hórus, e/ou plo chacal, Anúbis, o falecido presenciava a pesagem do seu próprio coração. O que está sendo medido é o efeito que sua vida teve sobre o equilíbrio do cosmos. Ma’at está firme e impassível. A justiça aguarda aqueles cuja vida é justa. Se seu coração é puro, ele viverá para sempre com os deuses, mas se seu coração é impuro, será lançado para Ammit, o devorador de corações, metade hipopótamo e metade crocodilo. As almas devoradas por Ammit não mais existem.
A FUNÇÃO DE TOTH
Na tradição grega, Ma’at se equipara a Têmis, deusa da justiça divina que segura a balança, e também a Métis, deusa da prudência. Em termos egípcios, ela é sempre entendida como a anima de Toth, o deus da sabedoria, do intelecto e dos escribas. Para compreender Ma’at completamente, temos de ver Toth como o Senhor do Tempo, Cronista dos Eons, Guardião dos Registros Acásios e Administrador do Carma.
Ele também era um deus da cura mágica e medicinal, e usava o emblema do caduceu. Sobre o caduceu, duas serpentes se entrelaçavam. De novo encontramos os princípios duais de vida, ativo e passivo, forças opostas que se equilibram mutuamente para criar vida estável e durável. As asas abertas do caduceu nos lembram as asas abertas de Ma’at, oferecendo proteção divina e harmonia suprema. As serpentes, também, são respeitáveis emblemas do poder de mudança e transformação, de criação e destruição. Como Ma’at, Toth presidiu a criação do mundo, e embora se soubessem que Atum pronunciou a Palavra da qual surgiu o mundo, acredita-se que foi Toth que lhe deu a idéia.
Toth desempenhava um papel importante na administração da justiça divina. Ele arbitrou a batalha entre Hórus, o deus-falcão do dia, e Set, a serpente da escuridão. O olho divino de Ra foi ferido durante essa luta entre a natureza divina e a animal. Esse equilíbrio é difícil de manter e deve ser foco de atenção diária.
Ma’at é um modo viável de se viver no mundo, aceitar a dádiva dos deuses e devolver essa dádiva aos deuses como oferenda divina e honradez de vida. Onde quer que apareça, Ma’at´representa a associação entre a humanidade e os deuses na manutenção de um mundo equilibrado. Nas mãos em concha de um faraó, ela representa a oferenda do eu essencial, uma prova de que cuidamos daquilo com que fomos providos no inicio. Este é o preceito moral da devolução da natureza divina ao divino.
Para Ma’at funcionar, primeiro temos de aceitar completamente a dádiva da vida, aprender a dançar com a balança. Depois, Ma’at deve ser integrada. Ma’at deve aparecer em ação e em amor, quer estejamos trabalhando na proteção do meio ambiente, criando filhos, plantando jardins, elaborando leis, escrevendo livros ou chefiando pessoas.
O que eu vejo na mão em concha do faraó é a taça da verdade, O Santo Graal, do qual bebemos e que nos sustenta, e que sustenta até mesmo Deus. O papiro do ‘Camponês Eloqüente’, que data do Médio Império, fornece a chave par uma vida harmoniosa.
Fale Ma’at, faça Ma’at,
Pois ela é poderosa.
Ela é grande e permanece.
Seu valor repousa nas mãos
Daquele que a usa.
Ma’at conduz à santidade.
.
Cro_Ma’at.
_
[Texto de Normandi Ellis]
-