E, no entanto, a proporção que Aristóteles evoluía, rodeado de turbas de moços ávidos de ensino, mais e mais seu espírito se derivava das minúcias da ciência para os problemas mais amplos e vagos da conduta e do caráter. Ocorreu-lhe com clareza que acima de todas as questões do mundo físico estavam as questões supremas: Qual a melhor vida? Qual o supremo bem da vida? Que é virtude? Como poderemos atingir a felicidade e a realização de nosso destino?
Aristóteles é realisticamente simples em sua ética. Sua educação cientifica preservava-o de pregar ideais superhumanos, ou vazios conselhos de perfeição. “Em Aristóteles – diz Santayana – o conceito da natureza humana é perfeitamente equilibrado; todo ideal tem base natural e todo natural tem desenvolvimento ideal” Aristóteles começa reconhecendo francamente que o objetivo da vida não é o bem por si mesmo e, sim, a felicidade. “Pois nós escolhemos a felicidade por si mesma e nunca tendo em vista algo além dela; amamos a honra; o prazer, a inteligência...por os supormos meios de atingir a felicidade. [*]Ética, I,7. Mas ele compreende ser mero truísmo dizer que a felicidade é o bem supremo; que é preciso um conhecimento mais claro da natureza da felicidade e do meio de alcançá-la. Espera encontrar este meio perguntando em que difere o homem dos outros seres e presumindo jazer a felicidade do homem na plena manifestação dessa qualidade exclusivamente humana.
Ora, a excelência peculiar ao homem é sua faculdade de pensar; por ela ele excede e domina todas as outras formas de vida; e como o desenvolvimento desta faculdade lhe deu a supremacia, podemos presumir que o desenvolvimento dessa qualidade lhe proporcionará a realização de seu destino para o alcance da felicidade.
A condição capital da felicidade, em vista disto, abstraindo-se de certos requisitos físicos, é a vida da razão – gloria particular do homem e seu poder. A virtude, ou antes, a excelência [*A palavra excelência é provavelmente a tradução mais adequada da grega Arete, geralmente mal traduzida por virtude. O leito evitará compreender mal Platão e Aristóteles se quando os tradutores escrevem virtude subentender excelência, aptidão ou capacidade. O grego Arete é a virtus romana; ambas implicam uma espécie masculina de excelência[Área, deusa de guerra. Vir, macho]. A antiguidade classica concebe virtude como qualidade masculina, exatamente como o cristianismo medieval a concebe como atributo feminino.], depende do juízo lúcido, autodomínio, desejos em proporção com as possibilidades e meios; não é acessivel ao homem simples nem dom conferido a inocência; e sim uma realização da experiência no homem plenamente desenvolvido. Mesmo assim há um caminho para ela, um roteiro para a excelência, que atalha muitos desvios e tardanças: o caminho mediano, a áurea mediocridade.
As qualidades de caráter podem ser dispostas em tríades, em cada uma das quais a primeira e a ultima qualidade serão extremos e defeitos, e a do meio uma virtude ou excelência. Assim, entre a covardia e a temeridade está a coragem; entre a sovinice e a dissipação, a liberdade; entre a indiferença e a ganância, a ambição; entre a humildade e o orgulho, a modéstia; entre a excessiva reserva e a loquacidade, a discrição; entre a taciturnidade e a bufonaria, o bom humor; entre a hostilidade e a bajulação, a amizade; entre a indecisão de Hamleto e a impulsividade de D.Quixote, o domínio de si mesmo [*Ética,I,7].O “certo” na ética ou no proceder, pois, não difere do “certo” nas matemáticas ou na engenharia; significa – correto, adequado, o que melhor atua para a consecução do melhor resultado.
A áurea media, todavia, não é, como a media matemática, a media precisa de dois extremos calculáveis com exatidão; e vacila de acordo com as circunstancia conexas, patenteando-se unicamente a razão madura e ponderada. A excelência é uma arte adquirida com o exercício e o habito; nós não procedemos retamente por termos virtude, ou excelência, e sim temos virtude ou excelência por procedermos retamente; “estas virtudes formam-se no homem com a pratica de seus atos” [*Ética,II,4]; somos aquilo que fazemos repetidas vezes. A excelência não é, então, um ato e sim um habito: “o bom para o homem é fazer a alma esforçar-se no caminho da excelência toda a sua vida:... pois assim como uma andorinha ou um belo dia não fazem a primavera, também não é um dia ou curto lapso de tempo que faz um homem venturoso” [*Idem, I,7].
A juventude é a idade dos extremos: “se um jovem comete uma falta é sempre por excesso ou exagero”. A grande dificuldade dos jovens [e de muitas pessoas de mais idade] é escapar de um extremo sem cair no oposto. Pois de um extremo passa-se facilmente a outro, quer por ‘excesso de correção’, quer por outra causa; a deslealdade resvala para os excessivos protestos de dedicação e a humildade paira sobre o abismo da presução.[*”A vaidade de antístenes, o Cinico”, diz Platão, “espia por todos os buracos de seu manto”.] Os que se acham conscientemente em um dos extremos dão o nome de virtude, não ao meio, mas ao extremo oposto. Algumas vezes é isto um bem; pois se temos consciência de estar errado em um dos extremos, “aspiramos chegar ao outro e atingiremos assim a posição intermediária...,a exemplo do que os homens fazem para endireitar madeira torta” [*Ética,II,9] Mas os que estão nos extremos sem disso ter consciência, encaram a áurea media como o defeito maior; eles “empurram para o extremo oposto o homem da posição media; o bravo é chamado temerário pelo covarde, e chamado de covarde pelo temerário” [*Idem,II,8]; assim, na política moderna o “liberal” é tido como “conservador” pelos radicais, e como “radical” pelos “conservadores”.
É obvio ser esta doutrina da media formulação de uma atitude característica que aparece em quase todos os sistemas filosóficos da Grécia; Platão tivera-a em mente ao chamar a virtude – ação harmoniosa; e Socrates, ao identificá-la com o saber. Os Sete Sábios haviam firmado essa tradição gravando no templo de Apolo em Delfos a divisa meden agan – nada em excesso. Talvez, como afirma Nietzsche [*A Origem da Tragédia], com isso os gregos se esforçassem para refrear sua própria violência e impulsividade; mais verdadeiro, porém, será que esse preceito refletia o sentir grego de que as paixões não são defeitos por si mesmas e sim a matéria prima tanto dos defeitos como das virtudes, conforme atuem com excesso e desproporção ou com justa medida e harmonia [*Confronte-se com um enunciado sociológico da mesma idéia:”Os valores nunca são absolutos e, sim, unicamente relativos...Uma certa qualidade da natureza humana está condenada a ser menos abundante do que o deveria ser; por isso damos-lhe valor e...a incentivamos e cultivamos...O resultado desta valorização é lhe chamarmos virtude; mas se a mesma qualidade superabundasse, nós lhe chamaríamos vicio e tentaríamos combatê-la”. – Carver, Ensaios de Justiça Social.]
Mas o áureo meio termo – diz Aristóteles – não encerra todo o segredo da felicidade. Devemos ter, também, em boa proporção, bens mundanos: a pobreza torna o homem avarento e rapace, ao passo que a posse de bens lhe confere aquela emancipação de cuidados e cupidez que é fonte de despreocupação e encanto aristocrático. O mais nobre dos auxiliares externos da felicidade é a amizade. Ela é em verdade mais necessária aos felizes do que aos infelizes, pois a felicidade se multiplica sendo compartida por outros. É de maior monta que a justiça, pois “quando os homens são amigos, torna-se desnecessária a justiça; mas se são justos, a amizade é ainda uma benção”.
“Um amigo é uma alma em dois corpos”. Mesmo assim, amizade subentende antes poucos amigos do que muitos, “quem tem muitos amigos não tem nenhum”; e “ser amigo perfeito de muita gente é impossivel”. A amizade lidima requer mais duração do que efêmera intensidade; e isto exige estabilidade de caráter; é ao caráter inconstante que devemos o inconsciente caleidoscópio da amizade. E amizade requer igualdade, pois a gratidão lhe proporciona, na melhor das hipóteses, uma base resvalida. “Considera-se comumente que os benfeitores tem mais amigos devido a sua bondade do que por si próprios. A explicação deste ponto que satisfaz a maioria é que uns se tornam devedores e outros credores...e que os devedores desejam ver os credores fora de seu caminho, ao passo que os credores se sentem ansiosos para que lhes preservem seus devedores”. Aristóteles repete esta interpretação, preferindo crer que a afeição maior do benfeitor pode ser aplicada, por analogia, como afeição do artista por sua obra, ou da mãe pelo filho. Amamos aquilo que fizemos.[*Ética,VIII e IX.]
Apesar de serem os bens materiais e as relações necessários à felicidade, a essência desta reside em nós, no profundo saber e na claridade da alma. Indubitavelmente o prazer dos sentidos não é o meio de a atingirmos; esse meio é um circulo vicioso, e, como Sócrates disse do ideal mais grosseiro de Epicuro, coçamos porque comicha e comicha porque coçamos. Nem pode levar a felicidade a carreira política, por ficarmos sujeitos aos caprichos do povo – e nada há de tão volúvel como as multidões.
Não; a felicidade deve ser o prazer do espírito; e nela só podemos confiar quando se origina da procura ou da descoberta da verdade. “A ação da inteligência...não aspira a outro fim além de si mesma e encontra em si o prazer que a incita a outros atos intelectuais; e desde que os atributos da autossuficiencia, da infatigabilidade e da aptidão para o repouso...pertencem claramente a esta função, nela deve encontrar-se a verdadeira felicidade” [*Ética, X, 7]
Todavia, o homem ideal de Aristóteles não é meramente metafísico.
Ele não se expõe desnecessariamente ao perigo, uma vez que há poucas coisas que ame suficientemente para isso mas nas grandes emergências se dará de bom grado a vida, sabendo que em certas condições a vida não é digna de ser vivida. Sempre disposto a ser prestadio aos homens, envergonha-se de que lhe prestem serviços. Fazer benefícios é prova de superioridade; recebê-los é indicio de subordinação...Ele não toma parte em manifestações publicas...É franco em suas aversões e preferências; fala e age abertamente, devido ao seu desdém pelos homens e pelas coisas...Nunca se abrasa de admiração, uma vez que nada é grande aos seus olhos. Não se mostra complacente com os outros, exceto se forem amigos; a complacência é característico do escravo...Nunca é malévolo; sempre esquece as ofensas ou não lhe dá tento... Não é muito amigo de falar...Não lhe importa que o louvem, nem que o censurem. Não fala mal de outrem, nem mesmo de seus inimigos a não ser que seja diante deles. Sua atitude é calma, sua voz grave – e pesará bem as palavras; não gosta de apressar-se pois somente poucas coisas o interessam; não se sente inclinado a veemência, pois pensa que tudo são coisas de pouca monta. Só as aflições dão ao homem voz aguda e passos precipitados...Ele suporta os azares da vida com dignidade e elegância, tirando das circunstancias o beneficio possível, como um hábil general que comanda poucos homens com grande estratégia bélica...É ele mesmo o seu melhor amigo e encontra prazer no recolhimento, ao passo que o homem sem virtude ou sem aptidões torna-se o pior inimigo de si próprio e teme a solidão. [*Id., IV,3].
Tal é o superhomem de Aristóteles.