O governo da Prússia poderia ter perdoado a teologia de Kant, se esta não incorresse na culpa de também conter heresias políticas. Três anos depois de Frederico Guilherme II subir ao trono, a Revolução Francesa deixara abalados os tronos da Europa. E numa ocasião em que a maioria dos professores das universidades da Prússia se apressavam a defender a legitimidade da monarquia, Kant com sessenta e cinco anos acolhera jubiloso a Revolução, com lagrimas nos olhos dizendo a seus amigos: “Posso dizer com Simeão: - Senhor, teu servo agora se partirá em paz, porque seus olhos viram o seu Salvador” [*Wallace, pág.40].
Em 1784, Kant publicou breve exposição de sua teoria política, sob o titulo: O Principio Natural de Ordem Política considerado em conexão com a Idéia de uma História Universal Cosmopolita. Kant começa reconhecendo, na luta de cada um contra todos, que tanto impressionara Hobbes, o método com que a natureza desenvolve as latentes capacidades vitais; a luta é a companheira indispensável do progresso. Se os homens fossem totalmente sociáveis, o individuo conservar-se-ia na estagnação; requer-se certa mescla de individualismo e competição para que a espécie humana perdure e se desenvolva.
“Sem qualidades de natureza antissocial...os homens levariam a vida de pastor arcádico, em completa concórdia, contentamento e mutuo amor – mas, nesse caso, suas aptidões permaneceriam eternamente ocultas e em germe” [Kant, todavia, não era cego adepto de Rousseau]. “Agradeçamos, portanto, a natureza, por essa antissociabilidade, por essa invejosa emulação e vaidade,por essa insaciável ambição de riquezas e poder... O homem quer a concórdia; mas a natureza conhece melhor que ele o que convêm a espécie; e ela quer a discórdia, para que o homem seja impelido a desenvolver mais esforços e aperfeiçoar suas aptidões naturais”.
A luta pela existência não é, então, completamente um mal. Os homens, entretanto, percebem dever a luta restringir-se a certos limites e regular-se com regras, costumes e leis: daí a origem e o desenvolvimento da sociedade civil. Mas agora “a mesma antissociabilidade que forçou os homens a viverem em sociedade torna-se outra vez a causa de cada comunidade assumir a atitude de irrefreada liberdade em suas relações exteriores, isto é, como país, em relação a outros países; e por conseguinte cada país deve esperar dos outros os males que dantes molestavam os indivíduos, até que esses países sejam compelidos a formar uma união civil regulada por leis” [*A Paz Eterna e Outros Ensaios, Boston, 1914, pág.14].É tempo de, a exemplo dos homens, as nações saírem do estado natural de selvageria e convencionarem a paz entre si.
Toda a significação e todos os movimentos da historia convergem para uma redução cada vez maior da pugnacidade e da violência e para a continua ampliação dos domínios da paz. “Encarada como um todo,pode considerar-se a história da espécie humana como a realização de uma oculta finalidade da natureza, de criar uma organização política interna e externamente perfeita, por ser o único estado em que podem plenamente desenvolver-se todas as aptidões outorgadas por ela ao gênero humano” [*Idem, pág.19].Se não houver tal progredir, os trabalhos das sucessivas civilizações serão como os de Sisifo, que “roda continuamente um rochedo morro acima”, para fazê-lo despenhar-se quando está quase a atingir o cume. A história, então, outra coisa não seria além de uma demência infinita e cíclica; “e poderíamos supor, bem como o hindu, ser a terra o lugar da expiação de antigas culpas esquecidas” [*Idem, pág.58].
O ensaio sobre a “Paz Eterna” [publicado em 1795, quando Kant contava setenta e um anos] é um nobre desenvolvimento deste tema. Kant reconhece quão fácil é rirmo-nos a essa frase, por isso, abaixo de seu titulo escreve:”Estas palavras foram certa vez escritas por um estalajadeiro holandês numa tabuleta em que estava pintado um cemitério” [*A Paz Eterna e Outros Ensaios, pág.68].
Kant havia anteriormente lastimado, como, segundo parece, todas as gerações o poderiam fazer, que “nossos governantes não tenham dinheiro para empregar na instituição pública...porque todos os seus recursos estão desde já destinados a contribuir para o custeio da primeira guerra. [*Id.pag.21]. As nações não serão verdadeiramente civilizadas enquanto não suprirem todos os exércitos permanentes. [Manifesta se torna a audácia desta afirmativa se nos lembrarmos de que foi a própria Prússia, no reinado do pai de Frederico o Grande, o primeiro país que adotou a conscrição]. Os exércitos permanentes estimularam as nações a se excederem umas as outras em numero de homens armados, e neste caminho nunca se chega a um termo. Devido as despesas ocasionadas por esse estado de coisas, torna-se a paz, com o tempo, mais penosa do que uma guerra breve; e os exércitos permanentes serão assim causadores de guerras ofensivas, empreendidas com o fim de se livrarem de semelhante opressão” [*A Paz Eterna e Outros Ensaios, pág.71]. Pois em tempo de guerra o exercito se mantêm a si mesmo no campo, com requisições, boletos e saques - no território inimigo de preferência, mas, sendo necessário, no do próprio país a que pertence; mesmo isto parece aos governos melhor do que mantê-lo com fundos públicos.
Em magna parte este militarismo, no julgar de Kant, era devido a expansão européia na América, África e Ásia, com as conseqüentes discórdias de ladrões a se disputarem a nova presa. “Se compararmos os exemplos barbaricos de inospitabilidade...com o procedimento desumano dos civilizados, e especialmente com o dos paises comerciantes de nosso continente, as iniqüidades que estes praticam, mesmo em seu primeiro contato com terras e gentes novas, enchem-nos de indizível horror; o simples ato de aproar a novas terras equivale para eles a uma conquista. Apenas descobertos, a América, as regiões dos pretos, as ilhas das especiarias, o cabo da Boa Esperança, etc., foram tratados como terras sem dono, pois os aborigenes contavam com zero ... E tudo isto era feito por nações que alardeavam religiosidade; desmandando-se em atrocidades, consideravam-se as verdadeiras zeladoras da fé ortodoxa” [*Id, pág.68]. A velha raposa de Koenigsberg não silenciara ainda!
Kant atribuía a cobiça imperialista a organização oligárquica das nações européias; os desposjos iriam pertencer a alguns poucos privilegiados, e continuavam consideráveis mesmo depois de repartidos. Caso se implantasse a democracia e todos participassem do poder publico, os despojos das rapinancias internacionais seriam tão subdivididos que constituiriam tentação resistível. Disto resulta que “o definitivo artigo primeiro para a Paz Eterna” é o seguinte: “Todas as nações terão constituição republicana e apenas se declararão guerras por efeito de um plebiscito de todos os cidadãos” [*Id, págs, 76-77]. Quando aqueles que deverão combater tiverem o direito de opção entre a guerra e a paz, não mais se escreverá com sangue a história. “Por outro lado, em uma organização em que os súditos não influem com seu voto nos atos do governo e que, por conseqüência, não é republicana, a declaração de guerra é, de todas as coisas do mundo, considerada como a de menor monta. Pois neste caso o governante não sendo um simples cidadão e sim o dono do país, nada sofrerá pessoalmente com ela; nem mesmo precisará sacrificar seus prazeres da mesa ou da caça, nem a vida de seus palácios suntuosos, festivais da corte, e coisas semelhantes. Pode, portanto, preferir a guerra por motivos mínimos, como se se tratasse apenas de uma caçada: e quanto ao que diz respeito a justificar-lhe a conveniência, deixar esse cuidado ao corpo diplomático, sempre pronto para tais empresas”. Como é de hoje esta verdade!
A vitória aparente da Revolução sobre os exércitos reacionários e, 1795 levou Kant a esperar que as republicas se espalhariam então por toda a Europa e surgiria a ordem internacional baseada em uma democracia sem servidão nem explorações e empenhada na manutenção da paz.
A função do governo é, afinal de contas, auxiliar e desenvolver o individuo e, não, usar e abusar dele. “Todo homem deve ser respeitado como um fim absoluto em si mesmo - e é um crime contra sua dignidade de ser humano utilizar-se do homem como de mero instrumento para algum fim no exterior” [*Em Paulsen, pág.,340]. Isto também é parte daquele imperativo e, desprezando-a, a religião será uma farsa hipócrita. Kant reclama, conseguintemente, a igualdade: não de aptidões, mas de oportunidades para o desenvolvimento e emprego das aptidões; combater todas as prerrogativas de nascimento e de casta e atribui todos os privilégios hereditários a violentos atos de conquista, no passado. Em meio do obscurantismo, reação e união de toda a Europa monárquica para esmagar a Revolução, Kant, apesar de seus setenta anos, toma partido pela nova ordem de coisas, pela implantação da democracia e liberdade em toda a parte. Nunca a idade provecta falou assim destemerosa com a voz da juventude.
Mas Kant se achava exausto; terminara sua carreira e findara sua campanha. Decaiu lentamente até a pueril senil que por fim se converteu em loucura mansa; pouco a pouco o abandonaram sua sensibilidade e faculdades; e, em 1894, com a idade de setenta e nove anos, morreu, plácida e naturalmente, como cai da arvore uma folha seca.