30 de abr. de 2011

Schopenhauer_O Mundo Como Idéia

O que impressiona o leitor logo no começo do Mundo como Vontade e Idéia é o estilo. Nada do malabarismo chinês, da terminologia kantiana, nem da ofuscação hegeliana, nem da geometria spinozista; tudo é claridade e ordem; e tudo admiravelmente centrado na direção do conceito do mundo como vontade, e por isso luta, e por isso miséria. Que brutal honestidade, que vigor refrescante, que leal retidão! Onde seus predecessores eram abstratos até a invisibilidade, com teorias que rasgavam poucas janelas para a visão do mundo real, Schopenhauer, como bom filho de um homem de negócios, é todo fatos concretos, exemplos,aplicações e, ainda, humor [*Exemplo do seu humor: “O ator Unzelman – celebre pelo habito de enxetar papeis – foi proibido de improvisar, num dos teatros de Berlim. Logo depois teve de aparecer em cena montado a cavalo”. Ao entrar a alimaria conduziu-se sem nenhum respeito para com a assistencia. “A platéia começou a rir-se e Unzelman severamente admoestou o cavalo: “Não sabe então que “é proibido improvisar?” – Vopl. II, pág.273]. Depois do império de Kant, humor em filosofia formava uma espantosa inovação.

  • Tempo nenhum pode ser mais desfavorável a filosofia do que este em que ela é vergonhosamente posta a serviço de objetivos políticos ou transformada em meio de vida...O oposto da máxima ‘primo vivere, deinde philosophare’ [primeiro viver, depois filosofar]. Esses senhores querem viver e vivem da filosofia. Eles, as mulheres e os filhos. A regra ‘Eu canto a musica daquele de cujo pão eu vivo’, sempre foi pratica; ganhar dinheiro com a filosofia era pelos antigos, um habito dos sofistas... nada se obtêm como o ouro que não seja medíocre...É impossível que uma era que durante vinte anos aplaudiu Hegel – um Caliban Intelectual -  como o maior de todos os filósofos ... possa fazer alguém que a isso assistiu desejar sua aprovação. A verdade será sempre ‘paucorum hominem’ [de poucos], e por isso tem de, calma e modestamente, esperar pelos poucos que, discordantes da regra, saibam apreciá-la...A vida é breve, mas a verdade, longa; falemos a verdade.

Estas ultimas palavras são nobres, mas nelas há qualquer coisa de uvas verdes, porque nenhum homem ansiou tanto pó aplausos como Schopenhauer. Seria ainda mais nobre se nada dissesse de Hegel: de vivis nihil nisi bonum – dos vivos só falemos bem. E enquanto modestamente esperava reconhecimento, declarava “nada vejo em matéria filosofica feito entre mim e Kant”. “Sustento a ideia de que o mundo é vontade como a mais longamente procurada pela filosofia e cuja descoberta era tida pelos familiares com a historia como tão impossível quanto a da pedra filosofal” [*Vol.I, pág.VII]. “Pretendo ressaltar apenas um pensamento. Entretanto, apesar de todos os meus esforços para expressá-lo tenho de empregar este livro inteiro. Lede-o duas vezes e da primeira com grande paciência”. Modéstia! “Que é a modéstia senão a humildade de hipócrita, por meio da qual, num mundo tumefacto de inveja, alguém pede perdão dos seus méritos aos que o não possuem nenhum?” Não há duvida que quando a modéstia foi transformada em virtude se tornou coisa muito vantajosa para os néscios, porque quem falar de si será tido como um deles. [*Ensaios, “Do Orgulho”].

Nenhuma humildade na primeira sentença do livro de Schopenhauer. “O mundo”, começa ele, “é minha idéia”. Quando Fichte enunciou proposição similar os próprios alemães, refartos de metafísica, indagaram: “E que diz disto sua mulher?” Mas Schopenhauer não tinha mulher. Sua intenção era sem duvida muito simples: desejava, já de partida, aceitar a posição kantiana, de que o mundo externo só nos é conhecido através de nossas sensações e idéias. Em seguida vem uma exposição bastante clara e convincente do idealismo, mas que constitui a parte menos original da obra e que ganharia em vir no fim em vez de no começo. O mundo gastou o espaço de uma geração para conhecer Schopenhauer por ter ele posto o pior na frente, ocultado seu próprio pensamento atrás de uma barreira de duzentas paginas de idealismo de segunda mão.

A parte mais vital da primeira seção é um ataque ao materialismo. Como podemos explicar o espírito como matéria, se conhecemos a matéria unicamente por meio do espírito?

  • Se seguíssemos o materialismo com a idéia clara, ao chegarmos as suas cumeadas havíamos de ser assaltados pelo acesso de riso sem fim dos deuses olímpicos. Como que despertando de um sonho, veríamos claro que o resultado final – conhecimento – por ele tão laboriosamente alcançado, estava pressuposto como condição indispensável do ponto de partida. Simples matéria; e quando imaginamos que pensamos matéria, na realidade pensamos unicamente a coisa que percebe a matéria -  os olhos que a vêem, a mão que a sente,a compreensão que a conhece. Desse modo a tremenda petição de principio revela-se inesperadamente; porque o ultimo elo mostra ser o primeiro – a cadeia é um circulo; e o materialista lembra o barão de Münchhausen, que ao nadar a cavalo suspendia a montada no ar, pelo rabo...o cru materialismo que ainda hoje, em pleno século dezenove, é servido como se fosse original...nega estupidamente a força vital e procura deduzir os fenômenos da vida das forças físicas e químicas; e estas, dos efeitos mecânicos da matéria. Mas eu nunca poderei admitir que ainda a mais simples combinação química possa ter uma explicação mecânica; muito menos as propriedades da luz, do calor da eletricidade; Isto sempre requererá uma explicação dinâmica.

Não: é impossível solver o enigma metafísico, descobrir a secreta essência da realidade examinando primeiro a matéria e examinando depois o pensamento; temos que começar com o que conhecemos direta e intimamente – nós mesmos. “Não podemos chegar a real natureza das coisas vindo por fora. Por mais que investiguemos nunca alcançaremos senão imagens e nomes. Somos como o homem que rodeia um castelo, inutilmente procurando a entrada e a espaço fazendo desenhos da frontaria”. Entremos no castelo. Se pudermos apreender a natureza ultima de nosso próprio espírito, talvez então possamos conseguir a chave do mundo externo.   

Schopenhauer_O Homem

Schopenhauer nasceu em Dantzig a 22 de fevereiro de 1788. Seu pai fora um negociante feliz, de temperamento fogoso, independente e amigo da liberdade. Mudara-se de Dantzig para Hamburgo quando Artur tinha apenas cinco anos, porque Dantzig havia perdido a sua liberdade com a anexação a Polônia. O menino cresceu, pois, num ambiente de negócios e finanças; e embora abandonasse muito cedo a carreira mercantil para a qual seu pai o impelia, esse ambiente deixou-lhe marcas – rudeza de maneiras, espírito realístico, conhecimento dos homens e do mundo; fê-lo o antípoda do filosofo sedentário e acadêmico, que ele tanto detestava.  Seu pai finou-se, aparentemente por suas próprias mãos, em 1805. Sua avó paterna havia morrido louca.

“O caráter ou vontade”, diz Schopenhauer, “herda-se do pai; o intelecto, da mãe” [*O Mundo como Vontade e como Idéia, 1883, III, 300]. Sua mãe tinha intelecto -  tornara-se uma das mais populares romancistas do tempo – mas tinha também caráter e temperamento genioso. Fora infeliz com o marido prosaico; e quando enviuvou-se deu-se ao amor livre, mudando-se para Weimar como ponto mais propicio para a vida que desejara. Artur reagiu contra isso como Hamlet contra o novo casamento de sua mãe rainha; e as brigas resultantes puseram-no na senda daquelas meias verdades sobre as mulheres com que polvilhou sua filosofia. Na correspondência entre ambos transparece o desacordo. “A senhora é insuportável e cansativa; todas as suas boas qualidades são estragadas pelo orgulho e tornam-se inúteis para o mundo unicamente porque a senhora não pode coibir-se de atormentar toda gente” [*Wallace: Life of Schopenhauer]. Em conseqüência, separaram-se; Artur só aparecia a visitá-la a espaços e conservava-se na mesma posição dos outros visitantes; tratavam-se então polidamente, como estranhos, em vez de se engalfinharem como parentes. Goethe, que apreciava Mme. Schopenhauer por permitir-lhe que fosse lá com sua Cristina, estragou ainda mais a situação prevendo que o filho viria a ser um homem celebre; a mão não podia conceber dois gênios na família. Finalmente, numa disputa mais grave, a mãe expulsou de casa o filho e rival – e Artur ironizou dizendo que só através dele seria ela conhecida da posteridade. Logo depois Schopenhauer deixou Weimar; e conquanto sua mãe ainda vivesse mais vinte e quatro anos, nunca mais a viu. Byron, também menino em 1788, parece ter tido um drama de família similar. Estavam os dois homens, levados pelas circunstancias, condenados ao pessimismo; homem que não conheceu o amor de mãe – e, pior, que lhe conheceu o ódio – não tem motivos para ver com boa cara o mundo.

Entrementes, Schopenhauer passou pelo ginásio e pela universidade, e aprendeu mais do que estava no programa. Teve seus atritos com o amor e o mundo, ficando com o caráter e a filosofia afetados [*Wallace].Tornou-se sombrio, cínico, suspeitoso; também obesedado de terrores e manias; guardava seus cachimbos a chave e jamais confiava o pescoço a navalha de um barbeiro; dormia com duas pistolas carregadas no criado-mudo – talvez para maior comodidade dos assaltantes. Não podia ouvir barulho. “Há muito tenho a opinião”, escreveu, “de que a soma do barulho que uma pessoa pode suportar está na proporção inversa de sua capacidade mental, e pode ser considerada como uma boa medida desta...Barulho é tortura para os homens de pensamento...A super-abundante forma de vitalidade que se compraz em bater, martelar, derrubar coisas, sempre foi um tormento para mim” [*O Mundo como Vontade e como Idéia].E tinha um senso quase paranóico da sua grandeza não reconhecida; não lhe tendo sobrevindo imediatamente sucesso e fama, introverteu-se e roeu a própria alma.

Schopenhauer não teve mãe, nem mulher, nem filhos, nem família, nem pátria. “Foi absolutamente só, sem nem sequer um simples amigo; e entre um e nenhum estende-se o infinito” [*Nietzsche: Schopenhauer como educador]. 

Ainda mais que Goethe, era imune as febres nacionalistas da época. Em 1813, porém, de tal modo se deixou contagiar do entusiasmo de Fichte pela guerra contra Napoleão que pensou em alistar-se e chegou a adquirir armas. A prudência, entretanto, fê-lo recuar e argumentar que “Napoleão, afinal de contas, não fazia mais que dar ilimitada expansão a sede de mais vida que todos os fracos sentem, mas são obrigados a esconder” [*Wallace:”Schopenhauer”, Enciclopédia Britânica].Em vez de ir para a guerra, foi para o campo escrever uma tese de filosofia.

Depois dessa dissertação Sobre a Raiz Quadrada da Razão Suficiente [1813] [*Schopenhauer insiste, com pouca razão e muito ‘comercialmente’, que esta obra deve ser lida antes do Mundo como Vontade. O leitor deve ficar sabendo que o ‘principio da razão suficiente’ é a ‘lei de causa e efeito’ em quatro formas: - 1) Lógica como a determinação de conclusão pelas premissas; 2) Física, como determinação do efeito por causa; 3) Matemática, como a determinação da estrutura pelas leis da matemática e da mecânica; e 4) Moral, como a determinação da conduta pelo caráter], Schopenhauer dedicou todo o seu tempo a obra que ia imortalizá-lo – O Mundo como Vontade e Idéia. Mandou o manuscrito ao editor magna cum laude; aqui, disse ele, não há picadinho de velhas idéias, mas uma estrutura de pensamento original e da alta coerência, “claramente inteligível, vigorosa e não sem beleza”; um livro “que daqui por diante será a fonte de centenares de outros”. Tudo excessivamente egoístico, mas absolutamente verdadeiro. Muitos anos depois estava Schopenhauer tão seguro de ter resolvido os principais problemas da filosofia que pensou em mandar fazer um anel de sinete com a Esfinge a precipitar-se no abismo, como a Esfinge prometera fazer se seus enigmas fossem decifrados.

Apesar disso a obra não atraiu nenhuma atenção; o mundo estava muito pobre e exausto para interessar-se por estudos sobre sua pobreza e exaustão. Dezesseis anos depois de publicada Schopenhauer veio a saber que a maior parte da tiragem tinha sido vendida a peso. No ensaio sobre a Fama, na Sabedoria da Vida, cita ele, numa evidente alusão a sua obra prima, duas notas de Lichtenberger: “Trabalhos como este são como o espolho: se um asno nele se espia, não pode esperar ver um anjo”; e “quando uma cabeça e um livro se chocam e o som é de oco, será acaso o som do livro?” – Schopenhauer prossegue no tom da vaidade ofendida: “Mais um homem pertence a posteridade – ou por outras palavras, a humanidade em geral – mais se torna estranho a seus contemporâneos; porque como a obra não foi feita para eles e sim para o mundo largo, não há nela a cor local das coisas passageiras”. E torna-se eloqüente como a raposa da fabula: “Poderia um musico lisonjear-se com os rumorosos aplausos de uma audiência que ele soubesse quase surda, e na qual, para esconder o defeito, duas ou três pessoas aplaudissem? E que diria ele se descobrisse que essas duas ou três pessoas já varias vezes se tinham alugado para romper em aplausos aos mais pobres executantes? Nalguns homens o egotismo serve de compensação para a ausência de fama; em outros o egotismo coopera para a fama.

De tal modo se pos Schopenhauer neste livro que suas obras posteriores não passam de comentários a respeito; tornou-se o talmudista de seu próprio Torah, o exegeta de sua própria jeremiada. Em 1836 publicou um ensaio, A Vontade na Natureza, incorporado de certo modo a edição do Mundo como Vontade e Idéia aparecida em 1844. Em 1851 publicou Os dois Problemas Básicos da Ética e em 1851, dois substanciosos volumes do Parerga et Paralipomenaliteralmente, sub-produtos, que foram traduzidos em inglês com o titulo de Ensaios. Por este livro, a mais legível das suas obras e repleto de sabedoria e agudeza, recebeu como remuneração total dez exemplares. É difícil o otimismo em tais circunstancias.

Uma só aventura perturbou a monotonia da sua estudiosa reclusão depois de deixar Weimar. Havia esperado a oportunidade para apresentar a sua filosofia numa das grandes universidades da Alemanha; essa oportunidade veio em 1822, quando foi convidado por Berlim para privat-docent. Schopenhauer deliberadamente escolheu para suas lições as mesmas horas em que o todo poderoso Hegel prelecionava, esperando que os estudantes os pudessem comparar com os olhos da posteridade. Os estudantes, porém, não estavam assim antecipados e Schopenhauer viu-se a lecionar a bancos vazios. Resignou e vingou-se com as amargas diatribes de Hegel que maculam as posteriores edições de sua obra prima. Em 1831 irrompeu em Berlim a epidemia do cólera; tanto Hegel como Schopenhauer fugiram; mas Hegel voltou muito cedo, apanhou a infecção e faleceu em poucos dias. Schopenhauer não se deteve de alcançar Frankfort, onde passou o resto de sua vida de setenta e dois anos.

Como bom pessimista, evitou o engodo dos otimistas – viver da pena. Havia herdado interesses na firma comercial de seu pai e com modéstia viveu das rendas. Soube empregar seus dinheiros com sabedoria rara em filósofos. Quando uma empresa da qual havia tomado ações faliu e outros credores propuseram-se a aceitar liquidação com 70%, Schopenhauer resistiu e obteve pagamento integral. Tinha o bastante para ocupar dois cômodos em uma casa de pensão, na qual viveu os últimos trinta anos de vida na só companhia de um cão. Chamava-se Atma [o termo braamane para a alma do mundo], mas na cidade diziam o “jovem Schopenhauer”. Suas refeições tomava-as habitualmente no Englischer Hof. Ao sentar-se a mesa punha diante de si uma moeda de ouro; ao levantar-se recolhia-a ao bolso. Um garçom animou-se a indagar daquilo, e a resposta do filosofo foi tratar-se da aposta que fazia consigo mesmo, de que os oficiais ingleses que freqüentavam o restaurante em tempo algum deixariam de conversar sobre cavalos, mulheres e cães -  e como nunca perdia, a moeda não ia jamais para a caixa dos pobres.

As universidades ignoravam-no, e aos seus livros, como para provar sua afirmação de que todos os avanços da filosofia se fazem fora dos muros acadêmicos. “Nada”, diz Nietzsche, “ofendeu tanto os sábios alemães como a atitude de Schopenhauer para com eles”; Mas Schopenhauer tinha aprendido a paciência e confiava que, embora tarde, haviam de lhe reconhecer o valor. E de fato assim foi. Homens da classe media – legista, médicos, negociantes – descobriram nele um filosofo que em vez de um pretensioso malabarismo com irrealidades metafísicas lhes dava uma concepção inteligível dos fenômenos da vida real. Desiludida dos ideais e esforços de 1848, a Europa voltou-se com aclamações para um filosofia que corporificava o desespero de 1815. O ataque da ciência contra a teologia, a denuncia socialista da guerra, a pressão biológica da luta pela vida foram os fatores que afinal ergueram Schopenhauer aos galarins da fama.

Não estava ele demasiado velho para gozar a popularidade; lia com avidez todos os artigos publicados sobre sua personalidade e pedia aos amigos que lhe enviassem, como porte a pagar, tudo quanto saísse a seu respeito. Em 1854, Wagner mandou-lhe um exemplar do Anel dos Nibelugen com uma palavra sobre o juízo do filosofo sobre a musica. Em vista dessas homenagens o grande pessimista se tornou nos últimos anos quase um otimista; tocava flauta com freqüência depois do jantar, e agradecia ao Tempo tê-lo varrido dos ardores da mocidade. Começou a vir gente de toda parte para vê-lo; e ao completar senta anos, em 1858, teve congratulações de todos os países do mundo.

Schopenhauer ia viver mais dois anos. A 21 de setembro de 1860 esteve a mesa para o breakfast, aparentemente bom de saúde. Uma hora depois a dona da casa o encontrou ainda a mesa - mas morto.