O que impressiona o leitor logo no começo do Mundo como Vontade e Idéia é o estilo. Nada do malabarismo chinês, da terminologia kantiana, nem da ofuscação hegeliana, nem da geometria spinozista; tudo é claridade e ordem; e tudo admiravelmente centrado na direção do conceito do mundo como vontade, e por isso luta, e por isso miséria. Que brutal honestidade, que vigor refrescante, que leal retidão! Onde seus predecessores eram abstratos até a invisibilidade, com teorias que rasgavam poucas janelas para a visão do mundo real, Schopenhauer, como bom filho de um homem de negócios, é todo fatos concretos, exemplos,aplicações e, ainda, humor [*Exemplo do seu humor: “O ator Unzelman – celebre pelo habito de enxetar papeis – foi proibido de improvisar, num dos teatros de Berlim. Logo depois teve de aparecer em cena montado a cavalo”. Ao entrar a alimaria conduziu-se sem nenhum respeito para com a assistencia. “A platéia começou a rir-se e Unzelman severamente admoestou o cavalo: “Não sabe então que “é proibido improvisar?” – Vopl. II, pág.273]. Depois do império de Kant, humor em filosofia formava uma espantosa inovação.
- Tempo nenhum pode ser mais desfavorável a filosofia do que este em que ela é vergonhosamente posta a serviço de objetivos políticos ou transformada em meio de vida...O oposto da máxima ‘primo vivere, deinde philosophare’ [primeiro viver, depois filosofar]. Esses senhores querem viver e vivem da filosofia. Eles, as mulheres e os filhos. A regra ‘Eu canto a musica daquele de cujo pão eu vivo’, sempre foi pratica; ganhar dinheiro com a filosofia era pelos antigos, um habito dos sofistas... nada se obtêm como o ouro que não seja medíocre...É impossível que uma era que durante vinte anos aplaudiu Hegel – um Caliban Intelectual - como o maior de todos os filósofos ... possa fazer alguém que a isso assistiu desejar sua aprovação. A verdade será sempre ‘paucorum hominem’ [de poucos], e por isso tem de, calma e modestamente, esperar pelos poucos que, discordantes da regra, saibam apreciá-la...A vida é breve, mas a verdade, longa; falemos a verdade.
Estas ultimas palavras são nobres, mas nelas há qualquer coisa de uvas verdes, porque nenhum homem ansiou tanto pó aplausos como Schopenhauer. Seria ainda mais nobre se nada dissesse de Hegel: de vivis nihil nisi bonum – dos vivos só falemos bem. E enquanto modestamente esperava reconhecimento, declarava “nada vejo em matéria filosofica feito entre mim e Kant”. “Sustento a ideia de que o mundo é vontade como a mais longamente procurada pela filosofia e cuja descoberta era tida pelos familiares com a historia como tão impossível quanto a da pedra filosofal” [*Vol.I, pág.VII]. “Pretendo ressaltar apenas um pensamento. Entretanto, apesar de todos os meus esforços para expressá-lo tenho de empregar este livro inteiro. Lede-o duas vezes e da primeira com grande paciência”. Modéstia! “Que é a modéstia senão a humildade de hipócrita, por meio da qual, num mundo tumefacto de inveja, alguém pede perdão dos seus méritos aos que o não possuem nenhum?” – Não há duvida que quando a modéstia foi transformada em virtude se tornou coisa muito vantajosa para os néscios, porque quem falar de si será tido como um deles. [*Ensaios, “Do Orgulho”].
Nenhuma humildade na primeira sentença do livro de Schopenhauer. “O mundo”, começa ele, “é minha idéia”. Quando Fichte enunciou proposição similar os próprios alemães, refartos de metafísica, indagaram: “E que diz disto sua mulher?” Mas Schopenhauer não tinha mulher. Sua intenção era sem duvida muito simples: desejava, já de partida, aceitar a posição kantiana, de que o mundo externo só nos é conhecido através de nossas sensações e idéias. Em seguida vem uma exposição bastante clara e convincente do idealismo, mas que constitui a parte menos original da obra e que ganharia em vir no fim em vez de no começo. O mundo gastou o espaço de uma geração para conhecer Schopenhauer por ter ele posto o pior na frente, ocultado seu próprio pensamento atrás de uma barreira de duzentas paginas de idealismo de segunda mão.
A parte mais vital da primeira seção é um ataque ao materialismo. Como podemos explicar o espírito como matéria, se conhecemos a matéria unicamente por meio do espírito?
- Se seguíssemos o materialismo com a idéia clara, ao chegarmos as suas cumeadas havíamos de ser assaltados pelo acesso de riso sem fim dos deuses olímpicos. Como que despertando de um sonho, veríamos claro que o resultado final – conhecimento – por ele tão laboriosamente alcançado, estava pressuposto como condição indispensável do ponto de partida. Simples matéria; e quando imaginamos que pensamos matéria, na realidade pensamos unicamente a coisa que percebe a matéria - os olhos que a vêem, a mão que a sente,a compreensão que a conhece. Desse modo a tremenda petição de principio revela-se inesperadamente; porque o ultimo elo mostra ser o primeiro – a cadeia é um circulo; e o materialista lembra o barão de Münchhausen, que ao nadar a cavalo suspendia a montada no ar, pelo rabo...o cru materialismo que ainda hoje, em pleno século dezenove, é servido como se fosse original...nega estupidamente a força vital e procura deduzir os fenômenos da vida das forças físicas e químicas; e estas, dos efeitos mecânicos da matéria. Mas eu nunca poderei admitir que ainda a mais simples combinação química possa ter uma explicação mecânica; muito menos as propriedades da luz, do calor da eletricidade; Isto sempre requererá uma explicação dinâmica.
Não: é impossível solver o enigma metafísico, descobrir a secreta essência da realidade examinando primeiro a matéria e examinando depois o pensamento; temos que começar com o que conhecemos direta e intimamente – nós mesmos. “Não podemos chegar a real natureza das coisas vindo por fora. Por mais que investiguemos nunca alcançaremos senão imagens e nomes. Somos como o homem que rodeia um castelo, inutilmente procurando a entrada e a espaço fazendo desenhos da frontaria”. Entremos no castelo. Se pudermos apreender a natureza ultima de nosso próprio espírito, talvez então possamos conseguir a chave do mundo externo.