19 de jun. de 2011

Nietzsche_O Canto de Zarathustra

E saltando da arte, que lhe refugira, abrigou-se na ciência – cujo ar friamente apolíneo lhe varreu da alma os ardores dionisíacos de Tribschen e Bayreuth – e na filosofia, “que oferece um asilo onde nenhuma tirania pode penetrar”. Como Spinoza, procurou acalmar as paixões, examinando-as; “precisamos”, diz ele, “uma química das emoções”. E assim no seu próximo livro, Humano, mui Humano [1878-80], se tornou psicologista e analisou com crueldade de cirurgião os mais ternos sentimentos e as mais queridas fé – dedicando-o intrepidamente, em plena reação, ao escandaloso Voltaire. Enviou a obra a Wagner, recebendo em retribuição o livreto de Parsifal. Depois nunca mais se comunicaram.

Por essa época, ainda em plena mocidade, sofreu um baque na saúde, tanto mental como física [1879], chegando a perder as esperanças – e preparou-se desafiadoramente para o fim. “Prometa-me”, disse à irmã, “que quando eu morrer só meus amigos se achegarão ao meu ataúde. Veja que nenhum sacerdote, ou quem quer que seja pronuncie falsidades a beira do meu tumulo, pois já não estarei em situação de defender-me; quero descer a terra como um honesto pagão” [*O Solitário Nietzsche, pg.65]. Mas sarou e o seu heróico funeral foi adiado. Dessa doença lhe veio o amor pela saúde e pelo sol, pela vida, pelo riso, pela dança – e pela “musica de sol” da Carmen; também lhe veio uma vontade mais enérgica, fortalecida pela luta contra a morte, um “sim” que sentia a doçura da vida ainda em seus amargores e aflições – e ainda em um penoso esforço para erguer-se a alegre aceitação spinoziana das limitações naturais e do destino humano. “Minha formula para a grandeza é Amor fati - ...não somente suportar todas as necessidades como amá-las”. Ai! Coisa muito mais fácil de dizer do que de fazer.

Os títulos do livros imediatos – Aurora [1881] e Gaia Ciência [1882] – refletem a alegria da convalescença; nota-se um tom mais amável que nas obras anteriores. Teve ele um ano calmo, a viver modestamente da pensão concedida pela universidade. O orgulhoso filosofo pode ainda enfragilecer-se a ponto de ser empolgado pelo amor. Mas Lou Salomé não retribuía tal sentimento; os olhos de Nietzsche, muito penetrantes e profundos, amedrontavam-na.Paul Rée era menos perigoso e foi o Dr Pagello para o Musset que havia em Nietzsche. Nietzsche fugiu, desesperado, compondo pelo caminho aforismos contra a mulher. Era na verdade ingênuo, entusiástico, romântico, terno até a simplicidade; sua guerra contra a ternura valia por tentativa para exorcismar a virtude que levara a uma bem amarga decepção, produzindo uma ferida que nunca se fechou.

Não podia encontrar solidão bastante: ”é difícil viver com homens, porque o silencio é difícil”. Passou da Itália para os Alpes, Sils-Maria, Engadine – sem amor por ninguém e rogando para que o Homem fosse suplantado. E naquela solitária altitude lhe veio a inspiração do seu livro Maximo.

*Sentei-me esperando – esperando por nada, gozando, além do bem e do mal, ora a luz, ora a sombra; só havia o lago, o sol, o tempo sem fim. Então, meu amigo, o um tornou-se dois – e Zarathustra passou por mim”.

Sua alma “ergueu-se e derramou-se por todas as margens”. Havia encontrado um novo mestre – Zoroastro; um novo deus – o Super-Homem; e uma nova religião – a Eterna Recorrência: precisava agora cantar – filosofia montada na poesia e esporeada pela inspiração. “Eu posso cantar um canto, e quero cantá-lo, embora esteja só em uma casa vazia e tenha de cantá-lo em mim para meus próprios ouvidos”. [Que solitude há nesta frase!]. Vede! Estou cansado da minha sabedoria, como a abelha que colheu muito mel; necessito de mãos para que ela se estendam”. Nesse tom escreveu o Assim Falava Zarathustra [1883], que terminou na “trágica hora em que Richard Wagner rendia a alma em Veneza”. Era a sua magnífica resposta a Parsifal; mas o criador de Parsifal não a pode ler.

Foi sua obra prima, e Nietzsche o sabia. “Esse livro ficará só”, escreveu mais tarde. “Nada talvez ainda foi produzido com tal superabundância de força...Se todo o espírito e toda a  bondade das grandes almas fossem reunidos, a resultante não criaria uma só das falas de Zarathustra”. Um leve exagero – mas na realidade é um dos grandes livros do século dezenove. Nietzsche, todavia, lutou para imprimi-lo; a primeira parte viu-se  retardada porque o editor tinha os prelos ocupados com uma tiragem de 500.000 livros de hinos, e também com uma torrente de folhetos anti-semitas; e o editor recusou-se a imprimir a ultima parte como se valor do ponto de vista comercial; o autor teve de pagá-la de seu bolso. Cinqüenta exemplares do livro foram vendidos; sete foram ofertados pelo autor; um dos eleitos agradeceu; ninguém o louvou. Jamais um homem se viu mais só.

Zarathustra, com trinta anos, desce da montanha para pregar as turbas, como fizera o seu protótipo persa Zoroastro; mas a multidão afasta-se dele para ver um saltimbanco que andava na corda. O saltimbanco cai e morre. Zarathustra toma-o nos ombros e leva-o; “porque do perigo que tu fizeste a tua vida, enterrar-te-ei agora com as minhas próprias mãos”. “Vive perigosamente”, prega ele. “Erige tuas cidades ao lado do Vesúvio. Manda os teus navios para os mares inexplorados. Permanece em estado de guerra”.

E lembra-se de descer. Descendo da montanha Zarathustra encontra um velho eremita que lhe fala a respeito de Deus. “mas quando Zarathustra se viu só, falou assim para o seu coração: “Será possível? Este velho santo na sua floresta ainda não soube da morte de Deus!” Mas era fato que Deus estava morto – todos os Deuses estavam mortos? 

*Porque os velhos Deuses chegaram ao fim há longo tempo. E na verdade foi um bom e alegre fim de Deus! Eles não morrem a arrastarem-se em crepúsculo, embora esta mentira seja propalada. Ao contrário, eles riram-se da morte! Isto aconteceu quando, pelo próprio Deus, a menos divina das palavras foi pronunciada:”Só existe um Deus! Tu não terás outros deuses, além de mim”. O velho Deus barbado – e deus ciumento! – esqueceu-se assim.
E então todos os deuses se riram e sacudiram-se em seus tronos, e exclamaram: “Não mostra a piedade que há Deuses, mas não Deus?”
- Quem quer que tenha ouvidos, que ouça. Assim falava Zarathusatra;

Que hilariante ateísmo! “O que poderia ser criado se houvesse Deuses!...Se houvesse Deuses, como eu poderia suportar ser não-Deus? Conseqüentemente, não há Deuses”. “Quem é mais ímpio do que eu, que me faça gozar seus ensinamentos?” “Conjuro-vos, irmãos, a permanecerdes fieis a terra e não dardes ouvidos aos que falam de esperanças supra-terrestres!

“Envenenadores são eles, saibam disso ou não”. Muitos rebeldes de um tempo retornam por fim a este doce veneno como a uma anestesia necessária a vida. Os “homens mais altos” vão a caverna de Zarathustra afim de se preparem para a predica da sua doutrina; ele deixa-os por um momento e volta e encontra-os incensando um asno que “criou o mundo a sua imagem – isto é, tão estúpido, quanto possível”. Isto não é edificante; mas  o texto diz, então:

*Aquele que na verdade pretende ser um criador em bem e mal precisa primeiro ser um destruidor e despedaçar todos os valores.
Assim, o mais alto mal é parte da mais alta bondade.
Mas isto é bondade criadora.
Vamos falar daqui por diante, nós, homens sábios, por mau que seja.
Silenciar é pior, a verdade não enunciada torna-se venenosa.
E o que quer que irrompa de nossas verdades – que irrompa. Muita casa tem de ser construída ainda.
Assim falava Zarathustra.

É irreverente? Mas Zarathustra queixa-se de que “ninguém mais sabe venerar”, e chama-se a si mesmo o mais piedoso de todos os que não crêem em Deus. Anseio por fé e lamenta “ a todos que, como eu, sofrem do desgosto de não haver nenhum Deus novo no berço no momento em que o velho Deus morre”.

E pronuncia então o nome do novo Deus.

*Mortos estão todos os Deuses; queremos agora que o super-homem viva...
Eu ensino o super-homem. O homem é alguma coisa que precisa ser ultrapassada. Que fizeste para ultrapassá-lo?...
A grandeza do homem é que ele é uma ponte e não um termino: o que pode ser amado no homem é que ele é uma transição e uma destruição.
Eu amo aos que não sabem viver exceto em perigo, porque esses vão longe.
Eu amo os grandes desprezadores porque são os grandes adoradores, porque são as flechas que anseiam por alcançar a outra margem.
Eu amo os que não procuram além das estrelas uma razão para perecerem e serem sacrificados, mas que sacrificam a si próprios na terra para que um dia a terra seja do super-homem.
É tempo para o homem de marcar o seu goal. É tempo para o homem de plantar o germe da sua mais alta esperança...
Dizei-me, irmão, se o goal falante a humanidade não é a humanidade faltando-se a si mesma...
Amor para com o homem mais remoto é mais alto do que amor para com o nosso vizinho.

Nietzsche parece prever que cada leitor se julgará o super-homem; e procura guardar-se contra isso confessando que o super-homem ainda não nasceu; podemos unicamente ser os seus precursores na terra. “nada queirais além da vossa capacidade ... Não sejais virtuosos além da vossa medida; e nada peçais a vós mesmos contrário a vossa probabilidade”. Para nós se destina a felicidade que somente o super-homem conhecerá; nossa melhor meta é o trabalho. “por longo tempo não cessei de lutar pela minha felicidade; agora luto por meu trabalho”.

Nietzsche não se contenta de haver criado Deus a sua própria imagem; precisa fazê-lo imortal. Depois do Super-Homem vem a Eterna Recorrência. Todas as coisas voltam, como os detalhes precisos e por infinito numero de vezes; ainda Nietzsche voltará e voltará a sua Alemanha de ferro e sangue e cinzas, e voltará todo o trabalho do espírito humano; da ignorância até Zarathustra.  “É uma terrível doutrina, ultima e mais corajosa forma de “Sim” e de aceitação da vida; e como não poderia ser? As possíveis combinações de realidade são limitadas e o tempo é infinito; algum dia, inevitavelmente, vida e matéria voltarão a forma que já uma vez tiveram, e nesta fatal repetição toda história se desenrederá novamente do seu curso tortuoso. A isso nos leva o determinismo. Não admira que Zarathustra receasse enunciar a sua ultima lição; receasse e tremesse e recuasse, até que uma voz nele disse: ”Que é isto, Zarathustra? Fala tua palavra e rompe-te em pedaços”.

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