11 de set. de 2010

Consciência Lavada

Quem já não se perguntou como um político corrupto pode ter uma boa noite de sono depois de um dia recheado de falcatruas? Como consegue dormir sem peso na consciência? Talvez um banho antes do sono tenha alguma coisa a ver com isso…
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Esse tema é uma das áreas mais fascinantes da neurociência contemporânea, que é a busca experimental da compreensão da consciência humana.
 

O problema começa com a própria definição de “consciência”, que para uns não passa de uma forma de “atenção” e, assim sendo, não é de forma alguma restrita a nossa espécie: até mesmo um sapo precisa se concentrar para pegar uma mosca!

O assunto atraiu bastante a atenção do público com a notícia de que uma paciente de 23 anos, vítima de uma lesão cerebral e diagnosticada como em estado vegetativo, apresentou uma inesperada atividade cerebral quando interrogada verbalmente por pesquisadores (Owen et al, Science 313:1402, 2006).
Estaria ela realmente consciente do seu estado e do que estava se passando ao seu redor, ou os pesquisadores estariam apenas detectando uma atividade cerebral aleatória em resposta a estímulos verbais?

Afinal, como poderemos estudar a consciência se não sabemos nem ao menos defini-la? 
O dilema vem atraindo cada vez mais cientistas de outras áreas, como por exemplo Francis Crick, um ícone da biologia molecular por ter participado da descoberta da estrutura do DNA.
 
Crick acreditava que a consciência é algo mais complicado do que simplesmente atenção, envolvendo conceitos culturais como a moral e a ética. 
Além disso, Crick defendia a idéia de que certas formas de consciência podem ser mensuráveis através de experimentos científicos (para uma excelente visão das idéias de Crick sobre o assunto, convido o leitor a degustar o livro de sua autoria “The Astonishing Hypothesis: The Scientific Search for the Soul”).
Ora, mesmo que intuitivamente, a grande maioria de nós tem plena consciência da própria imagem moral perante a sociedade ou mesmo de quando estamos sendo anti-éticos em determinadas situações. 
E mais, podemos até apagar ou compensar essas atitudes anti-éticas, fortalecendo nossa imagem moral. 
Isso acontece diariamente em diversas religiões que, muitas vezes, utilizam alguma forma de purificação física, como banhos hindus ou mesmo o batismo católico.

Aparentemente, a conexão entre pureza corporal e consciência já é inerente a algumas sociedades. E foi recentemente alvo de um estudo cientifico, publicado na prestigiosa revista “Science” (Zhong & Liljenquist, 138: 1451, 2006).
O trabalho de dois pesquisadores, um do Canadá e outro dos Estados Unidos, descreve o efeito “Macbeth” (talvez aqui no Brasil tenderíamos a chamá-lo de efeito Pilatos), que diz que qualquer ameaça à nossa pureza moral induz uma limpeza física.
Os experimentos foram desenhados de forma elegante, com devidos controles e submetidos a rigorosos testes estatísticos.
A tragédia de Shakespeare empresta o nome a esse efeito, devido ao fato de que Lady Macbeth acredita poder se livrar do peso da consciência do assassinato do rei Duncan lavando-se com água. Lady Macbeth fica obcecada em limpar sua consciência ensangüentada removendo todo respingo de sangue que encontra (como comentam os autores do trabalho, impressionante mesmo é a afiada visão de Shakespeare sobre a psiquê humana!).
Para medir a consciência “suja”, os pesquisadores pediram aos participantes para se lembrar de episódios éticos e não-éticos em que estiveram envolvidos no passado. 
Depois, os participantes foram submetidos a um jogo de palavras onde poderiam optar por um grupo de palavras relacionados a limpeza (como por exemplo: sabão) ou totalmente não relacionadas, mas ortograficamente semelhantes (salão).
Participantes que se lembraram de episódios não-éticos optaram significativamente mais por palavras relacionadas a limpeza. Além disso, no final do experimento, os participantes podiam escolher um brinde (um lápis ou uma toalha anti-séptica – ambos previamente testados e classificados como neutros por um grupo de participantes-controle). A maioria daqueles que se lembraram de episódios não-éticos optou por escolher a toalha anti-séptica, evidenciando a preferência por limpeza física.


Num segundo experimento, os participantes tiveram de copiar uma redação em primeira pessoa, descrevendo uma atitude ética (como auxiliar um colega) ou não-ética (como sabotar um colega). Logo depois, tiveram que qualificar uma série de produtos de acordo com o seu desejo ou atração naquele instante. Novamente, os participantes que copiaram a redação com conteúdo não-ético optaram por produtos de limpeza ou higiene pessoal.
Mais revelador foi o último experimento, no qual os participantes que se lembraram de episódios não-éticos e que receberam a toalha anti-séptica puderam, ou não, usar a toalha para lavar as próprias mãos. Em seguida os pesquisadores perguntaram a eles se topariam participar de um outro estudo como voluntários, sem nenhuma remuneração. Presumidamente, os que lavaram as mãos iriam se sentir menos propensos a atividades voluntárias pois já haviam lavado a “consciência” e restaurado a imagem moral – não necessitariam então de ações compensadoras. Como esperado, o ato físico de lavar as mãos reduziu drasticamente o voluntariado!


Mas quais seriam as implicações dessa sobreposição psicológica entre limpeza moral e física?
Será que forçar certos políticos a um rigoroso processo de higiene os tornaria mais éticos?
Ou será que, ironicamente, a limpeza física teria o efeito oposto, fornecendo uma licença para comportamentos não-éticos? 
Teríamos então que impedir o hábito da higiene pessoal na política? 
Certamente ainda estamos longe de responder a essas questões, mas esses resultados mostram como atividades mundanas diárias podem ter um impacto profundo na forma como percebemos e julgamos nosso próprio comportamento. 

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[Texto de Alysson Muotri.]

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