Akhenáton é um dos mais singulares e controversos personagens do mundo antigo. Desde há meio século sua vida tem sido comentada em várias línguas e em numerosos livros e artigos. Nos últimos anos, tem sido comum narrativas populares, como as que foram escritas por Francis Giles e Immanuel Velikosky, apresentarem um libelo ‘contra’ o ‘idealismo romântico’ dos primeiros egiptólogos, como E.A.W. Budge e James Breasted. Com freqüência, as opiniões mais extravagantes de egiptólogos modernos, como Alan Gardiner e Cyril Aldred, são perpetuadas, embora, em alguns casos, o próprio cientista tenha mudado de opinião. Essas inúmeras declarações conflitantes ou polêmicas dão origem a muitos dos ‘mistérios’ que envolvem Akhenáton e sua época. Que conhecemos realmente sobre Akhenáton? Que é realmente duvidoso, e qual foi sua ligação com os Mistérios de Osíris?
Nossa história começa quatorze séculos antes de Cristo, num Egito rico e poderoso. As guerras vitoriosas do Novo Império haviam assegurado, ao Egito, o domínio do mundo então conhecido.
Com o comércio, toda a riqueza do mundo afluiu para o Egito. ‘No Egito, o ouro é tão comum quanto o pó’, escreveu Tushratta, Rei de Mitanni. Talvez a extravagância das exorbitantes oferendas feitas ao deus Amon, e a influência da poderosa classe sacerdotal tebana, tenham levado Amenhotep III a compreender que o crescente poder dos sacerdotes representava um perigo para a casa real. Isto explicaria por que Amenhotep III preferia outros deuses a Amon, especialmente Horakhty [Hórus do horizonte]. Sob o reinado de Amenhotep III, vemos a arte tornar-se menos rígida e novas experiências artísticas serem tentadas. Sua escultura, hoje no Museu Britânico, é um exemplo. Assim, está preparado o cenário para o aparecimento singular de Amenhotep IV, filho de Amenhotep III e sua ilustre esposa, Tiy.
Amenhotep IV cedo mudaria seu nome para Akhenáton. Seu reinado, de dezessete anos [1364 – 1347 a.C] transcorreu aproximadamente no final da 18ª Dinastia, período também notável por sua admirável arte idealista. A cidade por ele fundada, Akhenáton, embora abandonada até transformar-se em ruínas, foi alvo de intensas investigações arqueológicas. Começando em 1891, a cidade e as tumbas das proximidades de Tell al-Amarna, como é hoje conhecida, foram submetidas a meticulosa investigação, primeiro por Sir Flinder Petrie e depois pela Deustsche Orient Gesellschaft e pela Sociedade Egípcia de Pesquisa. As escavações foram como uma bomba para os historiadores da arte. Algumas das maravilhas descobertas foram reunidas no livro ‘La Statuaire de Tell el Amarna’ [As escrituras de Tell al-Amarna].
Como jovem, Akhenáton se nos apresenta com olhos sonhadores, boca sensual, e lábios e queixo salientes.
Suas estátuas mais caricaturais aparecem no principio de seu reinado. Posteriormente, a arte tornou-se mais delicada e quase clássica, sob os reinados de Smenkhare e Tutankhâmon.
Os estudiosos escreveram centenas de paginas analisando o que denominam mal de Akhenáton, tentando explicar seu abdômen, que mais parece o de uma mulher do que o de um homem. Uma escultura, provavelmente inacabada, é representativa desta controvérsia, por apresentar o corpo nu, mostrando um imenso ventre,sem órgãos genitais. Os escritores vão ao ponto de propor a possibilidade de que Akhenáton fosse eunuco, o que é impossível. Akhenáton é sempre representado com suas filhas. Não relacionaremos os nomes das doenças que foram apresentados para explicar a curiosidade desta estátua. Mas a explicação talvez deva ser formulada ‘de modo simbolico’. Diz um texto que Akhenáton é ‘o pai e a mãe de todas as coisas’, o que o torna uma força primeva do poder cósmico. Não é de surpreender, portanto, que, como força cósmica, fosse ele representado assexuadamente.
Aparentemente, Akhenáton foi coroado em Tebas, e tinha extremo interesse por assuntos religiosos. Em seguida à sua elevação ao trono como co-regente, foi-lhe concedida uma esposa [Nefertiti] e um harém. A tradução do nome Nefertiti com ‘a bela que veio’ fez com que se pensasse que ela poderia ser uma princesa mitanniana, ou até mesmo Tadukhipa, filha de Tusharatta. Entetanto, não parece ser este o caso. Também se falou de uma ligação de Tiy, mãe de Akhenáton, com Mitanni. Os pais de Tiy, porém, eram egípcios de origem plebéia, Iouiya e Thouiyou. Muitos egiptólogos concordam que os pais de Nefertiti era Ay e Tey.
SMENKHKARE
Ao nosso ano de seu reinado, Akhenáton e Nefertiti tinham seis filhas. A mais velha das princesas reais, Meritáton, casou-se com Smenhkhare; a segunda, Meketáton, morreu ainda jovem; e a terceira, Akhesenpaáton, casou-se com Tutankhâmon.
Não conhecemos ao certo a filiação de Smenkhkare, ou de Tutanlhâmon, seu sucessor imediato. Segundo F. Giles, eles poderiam ser filhos de Akhenáton com outra mulher que não Nefertiti. Os filhos reais jamais eram representados nos relevos de Tell al-Amarna [Amarna]. Um rei de Mitanni, contudo, escreve a Akhenáton perguntando acerca da saúde de ‘teus filhos’ isto pode significar que os dois herdeiros fossem realmente filhos naturais de Akhenáton. Numa escultura – o Leão de Soleb – na Núbia Sudanesa, Tutankhámon chama Amenhotep III de ‘meu pai’;isto, porém, pode simplesmente significar ‘avô’, como ocorre em outros casos semelhantes. Na tumba de Tutankhámon foram encontrados objetos pessoais pertencentes a Akhenáton, bem como uma mecha de cabelos de Tiy. Porém, se Tiy houvesse realmente sido a mãe de Tutanhkhâmon, como muitos supõem, ela deveria ter 54 anos quando ele nasceu. É verdadeiramente inacreditável pensar que tal prodígio clinico pudesse haver ocorrido.
Muitas noções falsas se desenvolveram em torno do caráter singular de Akhenáton. Por exemplo: afirmou-se, no passado, que Akhenáton era monogâmico. Contudo, isto carece de confirmação, pois sabe-se que Akhenáton teve outra esposa, chamada Kia.
Á época de sua coração, o jovem rei era conhecido como ‘Nefer-Kheperu-rê’ “Amenhotep”, cuja tradução é ‘belas são as transformações de Rê’; Amon,[o Oculto] está satisfeito’. Porém, no quinto ano de seu reinado, ele mudou a ultima parte de seu nome para ‘Uan-rê Akhenáton’, ou seja, ‘o único de Rê, devoto de Aton’. Ao tempo em que mudou seu nome, Akhenáton já estava edificando sua cidade, Akhetáton’, ‘o horizonte do Disco Solar [Áton]’.
ÁTON
Contrariamente a algumas opiniões, Akhenáton não estabeleceu um novo culto a Áton. Áton é o Disco do Sol, conhecido com oÁton ou Áten desde a 5ª Dinastia, no baixo Egito. Na pirâmide de Unas, em Sakkara, perto de Mênfis, Áton já aparecera dotado de mãos, característica das representações do Disco com mãos encontradas em Amarna. Contudo, o nome de Áton apresentava variações ao tempo de Akhenáton. No principio do seu reinado, Áton era chamado ‘Viva rê-Horakhty, jubilante no horizonte’, ‘em seu nome, Shu, que está em Áton’. Posteriormente, esse nome foi mudado para: ‘Possa rê, que governa os dois horizontes, viver, jubilante no horizonte; Em seu nome, do pai, que vem como Áton’. Tais títulos podem ser empregados para estabelecer as fases do período Amarna.
A decisão de Akhenáton de se estabelecer em sua nova residência, conhecida hoje como Tell al-Amarna, ou Amarna, foi provavelmente um alivio para seu pai, então ocupado com a construção de um novo templo a Amon, em Lúxor, perto de Tebas. Na nova sede, distante de Lúxor, seu co-regente Akhenáton, poderia prosseguir em suas experiências místicas e religiosas, enquanto o restante da vida egípcia era conduzido como de costume. Sabemos que o reinado de Akhenátopn durou não mais do que dezessete anos, dos quais apenas quatro teriam transcorrido em Amarna.
Vários templos dedicados a Áton ali foram erigidos, e uma cidade inteira foi criada. Nas colinas de Amarna podem ser encontradas as tumbas dos nobres, de grande interesse para o estudo da arte de Amarna e dos fatos históricos que estão ainda para ser extraídos dos textos amarnas. Tudo isto pode ser encontrado nos seis volumes de N. de G. Davies, ‘The Rock Tombs of el Amarna’ [As Tumbas de Pedra de al-Amarna].
Se havia ou não uma co-regência entre Akhenáton e seu pai, é problema que tem sido decididamente negado ou afirmado pelos mais sérios egiptólogos e historiadores. Gardiner fundamenta seu argumento de que Akhenáton subiu ao trono após a morte do pai em sua interpretação das cartas de Tell al-Amarna. Em 1958, H. Helck apresentou mais extensa argumentação contra a co-regencia; todavia, mesmo a estes argumentos falta comprovação. Creio que a questão ‘pró co-regência é mais consistente’, além de se tratar de uma TEORIA que poderá contar com indícios ainda mais fortes, à medida que o túmulo de Akhenáton, em Karnak, seja reconstruído.
O pai de Akhenáton reinou aproximadamente durante um total de quatro décadas. Não sabemos onde morreu. A múmia a ele atribuída pode ser a de um rei bem posterior. Com a morte de seu pai, diminuiu a repressão ao arrebatamento religioso de Akhenáton, e encontramos mutilações dos nomes de Amon, Mut e Khonsu em centenas de monumentos. As evidencias dessas deturpações parecem haver cessado mais ou menos à época em que o Faraó Akhenáton, por sua vez, nomeou seu genro Smenkhkare co-regente. Contudo, Smenkhkare foi sepultado sem cerimônias especiais, numa tumba inacabada, em Tebas, após somente quinze meses de co-regencia. Giles acredita que Akhenáton e Smenkhkare foram assassinados ao mesmo tempo. No entanto, como em outras hipóteses infundadas, não dispomos da evidencias comprovadora do corpo de Akhenáton. Mas, estamos nos avançando à nossa história.
Uma das mais extraordinárias controvérsias em torno da patologia de Akhenáton surgiu quando se verificou que a múmia que se pensava ser da Rainha Tiy era de um homem. A tumba inacabada, que se dizia ser a de Tiy, parece agora haver sido um deposito de objetos ritualísticos, tais como as quatro tabuletas mágicas dos primórdios do reinado de Akhenáton, chamando-o Osíris; selos estampando o nome de Tutankhámon; e a urna funerária de Tiy. Nesta urna, o nome de Áton é o ultimo titulo, e aparecem também os nomes de Amenhotep III e Akhenáton. Portanto, podemos estar certos de que Amenhotemp III ainda era vivo quando Akhenáton ofertou a urna a Tiy. Se seu pai estivesse morto, teriam sido empregadas as palavras ‘ma kheru’ ‘fiel a seus votos’ [falecido]. O corpo atribuído a Tiy, depois a Akhenáton, foi identificado como sendo o de Smenkhkare. Por toda parte, o nome de Smenkhkare encontra-se rasurado, mas comprovou-se que o grupo sanguíneo é o mesmo do seu irmão Tutankhamon.
A controvérsia que envolve Akhenáton não acaba aqui. Formulou-se a hipótese de que Akhenáton pode haver sido homossexual. Isto parece não passar de um disparate. A única prova apresentada foi uma Estela em que Akhenáton e Smenkhkare estão sentados juntos num trono. Akhenáton é apresentado segurando o queixo de Smenkhkare. Contudo, se Smenkhkare fosse filho de Akhenáton, o que é possível, seria esse apenas um gesto paternal. Outra Estela apresenta Smenkhkare servindo vinho numa taça que Akhenáton está segurando. A cena pode significar nada mais do que outra das cenas domesticas familiares, freqüentes no estimo amarna.
Sucedendo Akhenáton no trono, subiu Tutankaton, de onze anos, mais provavelmente outro parente próximo e, possivelmente, seu filho. Após vários anos de reinado em Tell al-Amarna, Tutankhatón finalmente abandonou o ‘horizonte de Aton’ e transferiu a sede do poder novamente para Tebas. Lá, todavia, seu reinado teve curta duração, pois Tutankhaton, que teve de mudar seu nome para Tutankhamon, morreu aproximadamente sete anos após sua coroação. Embora tenha aderido ao culto de Amon, algumas peças de mobília encontradas em sua tumba são provenientes de Amarna e apresentam ainda seus dois nomes.
Muitas das discussões que conduzem à controvérsia em torno do caráter de Akhenáton poderiam ser desnecessárias se observássemos mais detidamente a ligação de Akhenáton com os Mistérios de Osíris, que personifica, em vez da morte, ‘o principio da eterna recompensa e da Ordem Cosmica’.
Alguns textos por vezes afirmam que Akhenáton era vivente em Maat, ou seja, na verdade, o que confirma, para alguns, a crença de que o primitivo estilo caricatural da arte armana, especialmente as peças que o representam como um Osíris, na verdade mostram a aparência do rei atonista na vida real.
Num estudo de R. Anthes, Die Maat des Echaton’s, Maat foi em geral traduzida pelas palavras ‘verdade e justiça’. Maat, porém, é mais do que isto. Maat significa ‘Ordem Cósmica’. O conceito de Maat com Ordem Cósmica foi provado por C. Bleeker num estudo em holandês: ‘De Beteekenis van de Egyptische Godin Maat’. Esta obra merece ampla divulgação. Em síntese, Maat era a mais elevada oferenda que o rei ou os altos sacerdotes podiam fazer no templo. Nos templos de Edfu e Denderah, Maat é encontrada no santuário como a última oferenda que o rei fazia ao deus. O hieróglifo que simboliza Maat representa um canteiro oblongo de terra cultivável. Posteriormente, esse hieróglifo adquiriu significação cósmica, ao passar a ser empregado como um pedestal para os deuses cósmicos, como Min e Osíris. Dizia-se que os deuses, ou os tronos, ‘firmavam-se na Ordem Cósmica’.
ETERNO RENASCIMENTO
A simbólica ‘masculinidade’ do deus cósmico Min representava o ‘principio da fertilidade’. Osíris, tido comumente como deus dos mortos, era mais do que isto.
Poucos se dão conta de que Osíris representava ‘o principio do eterno renascimento’. Alguns autores tomam Osíris como deus da vegetação – aquele que morre e ressuscita, como na história mitológica de Osíris, Isis e Hórus. Todavia, Osíris não era Nepri, o deus do milho, mas, como principio do eterno renascimento, era ele relacionado com o ressurgimento do grão. Da mesma forma, Osíris não era o Nilo. O deus da inundação era Hápy. Contudo, Osíris era relacionado à inundação do Nilo em razão de ser o principio do eterno renascimento.
Ao ligar-se ao principio do eterno renascimento, Akhenáton acresceu a perenidade da natureza à religião abstrata do Disco Solar. Talvez, para Akhenáton, o horror da morte, na vida, se convertesse na vida eterna. Podemos apenas concluir que meio século de investigação, análise e polemica, não reduziu o mistério ou a sedução do idealista Akhenáton. Se algo disso resultou, foi o aprofundamento de nossa atual curiosidade em relação a seu sonho, sua tragédia e seu mistério; a intensificação do antigo idealismo romântico no coração de cada pesquisador que almeja sondar as profundezas artísticas, religiosas e místicas, da época de Akhenáton. Afinal, há em todos nós a necessidade de compreender o mistério e a pungência dos nossos próprios sonhos, que aguardam sua realização e seu renascimento definitivo numa nova era.
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É melhor pensar por si mesmo e ocasionalmente cometer erros, do que estar certo apenas porque segue a maneira de pensar de uma outra pessoa.
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[Texto de Constant de Wit, Ph.D_Conselho Internacional de Pesquiza]