26 de ago. de 2010

Além de qualquer duvida razoável.


Perturbado, Trix examinou mais uma vez os relatórios anteriores sobe o Planeta Azul que já enchia todo o horizonte. Eram deprimentes. Como podiam seres inteligentes agir de forma tão destrutiva e cruel? O mais belo planeta daquele quadrante do universo vinha sendo sistematicamente poluído, desvitalizado, descaracterizado. Os seres que o dirigiam tinham tecnologia e conhecimentos suficientes para o uso adequado daquele admirável mundo - mas algum defeito em seus sistemas de pensamento os impedia de enxergar a realidade clara e simples das coisas. Pior, estavam brincando com forças cujo alcance e poder não aquilatavam devidamente. Manipulavam energias, cujo alcance desconheciam, com uma arrogância insuportável, e estavam enveredando pelos campos desconhecidos e perigosos da engenharia genética, como crianças a brincar com explosivos.

Tudo para eles era motivo para a criação de novos armamentos e novos meios de dominação das muitas raças que povoavam o planeta. Ignoravam a beleza de seus campos, rios, flores. Se soubessem como era descolorido e monótono o planeta de onde vinha Trix...No entanto, lá havia paz, harmonia, justiça e evolução; era um recanto do universo onde tudo tendia para o amarelo-ocre – águas, montanhas, pessoas – contudo, em Mauria existia a compaixão, o amor fraterno e o desejo sincero de evoluir para a Perfeição, enquanto que no planeta azul – dotado das mais espantosas riquezas e maravilhas, como tantos climas e locais promissores para a formação de civilizações superiores - tudo isto era desperdiçado, mal utilizado, desprezado, em nome da mais grosseira ambição, egoísmo e desejo de dominação. Com o correr dos séculos, a maldade dos homens tinha formado uma aura tenebrosa ao redor do planeta, que fazia mal a todos os investigadores que dele se aproximavam para observação e estudo; aura essa cujas emanações estavam se tornando insuportáveis, e se avizinhavam do ponto de causar prejuízos a outras civilizações daquele quadrante.

Trix já vivera muito, tinha visto muitos mundos e estudado muitas civilizações, e nada se comparava àquele extraordinário desperdício de oportunidades. Ele controlou as emoções que o invadiam, pois seu trabalho exigia a mais absoluta frieza e imparcialidade. Sua missão era dar a última palavra sobre o extermínio ou não dos habitantes do planeta azul, para que o mesmo pudesse um dia abrigar criaturas mais merecedoras e sensíveis. Vários estudos tinham sido feitos, verificados e reverificados, porque os Maurianos, cujo dever era cuidar daquele quadrante do espaço sideral, eram justos e tinham horror a qualquer infração das sagradas leis que regem o universo. Trix recebera ordens de fazer a derradeira revisão, e sua decisão seria definitiva. Ele sentia o peso dessa responsabilidade, e pensava quase que obcecadamente nas recomendações finais do Conselho de Mauria: o povo do planeta azul só seria exterminado após qualquer possibilidade de haver uma ‘duvida razoável’ ter sido declarada inexistente.

Trix desligou o aparelho onde os relatórios feitos nos últimos séculos mostravam com muita clareza que os ‘humanos’ pareciam irrecuperáveis – eram maus, ambiciosos, egoístas e cegos para os valores mais elevados da Vida Universal. Em seguida, ordenou à sua mente que esquecesse aquelas cenas e palavras gravadas nos relatórios, para poder ver o planeta de maneira imparcial e isenta de pré-julgamento.

Entrou na nave menor, própria para o seu trabalho, e iniciou a inspeção final da Terra. Usando os sensores de bordo, sua capacidade telepática superior e contato visual pelos visores, viu a beleza das geleiras cintilando ao Sol, dos campos pontilhados de flores [era primavera], das montanhas majestosas, dos rios murmurantes, dos dourados desertos [vários deles causados pelo descuido dos homens]; examinou as grandes cidades, as fabricas imensas vomitando veneno pelas chaminés, as belas casas e os jardins dos poderosos, como também os prédios desumanos com seus apartamentos frios e sem personalidade, as favelas miseráveis, e principalmente as armas, as articulações secretas de grupos de homens, cujos resultados eram sempre a fome, a morte e o sofrimento de nações inteiras. O ‘ruído’ de todas essas coisas era insuportável e Trix precisou usar todo o seu extraordinário controle para continuar a inspeção. Captou as intenções malévolas dos humanos em geral, a falta de compaixão, a ausência de ternura, de alegria, de simplicidade, e o nível da moralidade atingindo o fundo da escala. ‘Viu’, através dos poderes de sua mente, humanos jovens se destruindo lentamente no desespero de drogas perigosas, práticas perversas, crimes, loucuras. O ‘ruído’ malévolo e dominante de todas essas coisas era ensurdecedor, invadia todo o espaço e não lhe permitia captar as vibrações amorosas emitidas por alguns seres humanos.

Trix pensou, atordoado: “Se eu não fosse tão bem treinado, morreria em um minuto nesta atmosfera pestilenta, carregada de ódio, inveja e mesquinhez. Como é que ‘eles’ conseguem viver assim? Devo concluir sem sombra de duvida que seres mais merecedores deverão ter o privilégio de viver um dia neste planeta tão belo. Seus habitantes devem ser exterminados; não souberam usufruir com dignidade e inteligência dessa dádiva divina que lhes foi concedida por algum alto desígnio. Mas devo ser justo ao máximo. Só por desencargo de consciência, vou descer num ponto desabitado qualquer e sentir o planeta fisicamente, para ter certeza de que não existe uma duvida razoável, pois esta é uma decisão muito pesadas, que poderá ter conseqüências cármicas muito vastas. Ela deve ser correta e visar o bem maior.

Trix pousou a nave sobre uma rocha que se erguia numa praia deserta. Desceu e, pela primeira vez, seus pés tocaram o solo do planeta azul. Todo os eu ser se encheu de emoção: o cheiro do ar, o fragor das ondas verdes e espumosas do poderoso oceano, a sensação deliciosa do vento em seu corpo, o azul profundo do firmamento – era tudo tão belo, tão divino! Viver em um lugar assim ‘teria’ que inspirar sentimentos nobres, não todos aqueles sentimentos horríveis que envolviam a Terra com tão medonha aura. Aquele recanto estava protegido por penhascos, mas ainda assim era fácil detectar o angustiante e sombrio peso do ambiente terreno.

Trix nem percebeu que uma criança o olhava com admiração. Davi tinhas ido brincar na areia com suas bolinhas de vidro, único brinquedo que possuía, pois era muito pobre, e ficava a maior parte do tempo sozinho – a mãe era empregada doméstica numa casa a uns dois quilômetros dali, onde não admitiam a presença de crianças. Nem por isso Davi era infeliz. Sua mão o amava, contava-lhe histórias bonitas e ensinava preces, transmitia idéias positivas e alegres, cheias de esperança e amo. É claro que às vezes ele se sentia muito só, mas sabia conversar com o vento, com as águas do mar, coma s gaivotas que ali vinham pescar. Ao ver aquele estranho homem alto, magro, de pele amarelada, com aparência nobre e sábia, Davi adivinhou logo quer ‘era um astronauta’. E por ser criança não teve medo e foi se aproximando.

Trix se surpreendeu um pouco com a própria distração, indevida naquelas circunstancias. Mas ao sentir as vibrações daquele serzinho miúdo, soube que tudo estava bem. Em poucos minutos os dois estavam jogando bolinhas, ‘tecando’ umas nas outras, colocando-as nos buraquinhos feitos por Davi na areia molhada e firme. Trix achou as bolinhas fascinantes, com suas volutas coloridas e misteriosas. Davi, a certa altura, disse que gostaria de viajar pelo espaço, mas só se a mãe fosse junto. Trix respondeu que era impossível, não podia levar passageiros. Porém, podia mostrar-lhe a pequena nave de reconhecimento. Feita a visita, que maravilhou o menino, Trix infantilmente pediu para brincar mais um pouco com as bolas de vidro – estava encantado com o brinquedo.

“É normal haver uma exceção neste mundo – creio que este serzinho é a exceção que confirma a regra”, pensou Trix tristemente, cuja decisão continuava firme. Sua descida tinha sido apenas mais um meio de captar impressões sobre um planeta que logo estaria desabitado, tendo que assim permanecer por vários séculos, até que a aura se purificasse e ele pudesse ser mais uma vez o berço de novas civilizações.

“Sinto muito, menino”, pensou ele, “mas você é apenas um entre bilhões de criaturas sem caráter, cujo fim só pode ser a destruição. A operação-exterminio apenas irá apressar esse fim, que virá sem dor ou sofrimento.”

Então Trix se despediu de Davi, dizendo: “Tenho de partir, tenho obrigações a cumprir. Adeus e obrigado”.

“Mas tão depressa? É uma pena, gostei da sua companhia. Foi muito engraçado saber que vocês podem viajar entre as estrelas, mas não sabem fazer bolinhas de vidro colorido para brincar!”

“Não é mesmo estranho? Gostei desse jogo, acho que meus filhos adorariam jogar também. Tentarei fabricar bolinhas de vidro, mas não conseguirei fazê-las tão coloridas – em meu mundo os recursos de cores são pequenos, talvez seja este o único defeito do meu planeta natal...”

“Está certo, Trix. Faça boa viagem, vou sentir sua falta, você é um cara legal. Mando lembranças para seus filhos.”

“Adeus, Davi. Quem sabe nos encontraremos de novo um dia, em algum lugar do universo, para continuar nosso joguinho de bolinhas...”

Com estas palavras, ditas com uma certa amargura, Trix começou a andar na direção da nave, enquanto o menino olhava tristemente para o novo amigo que ia embora tão depressa. Então teve uma idéia e saiu correndo atrás do ‘astronauta’, depois de contemplar por algum tempo as bolinhas de vidro, sua única riqueza, que mal cabiam na mãozinha miúda.

“Trix! Espere um pouco!”

“Tome, leve isto, é um presente!”

Trix, parou, voltou-se e viu as bolinhas coloridas na mão estendida para ele, numa dádiva totalmente pura e generosa, de real amizade. Emocionado, ele pegou as três e as levou para a nave, depois de abraçar carinhosamente o garotinho.

Trix tinha que terminar sua missão, mas estava inquieto, uma agitação interna o perturbava. Decidiu voltar à praia para pensar um pouco mais e senti pela ultima vez a delicia daquele lugar e o frescor da brisa marinha. Levou as bolinhas e sentou-se numa pedra para meditar, fixando o olhar no encantador colorido do vidro, à luz suave do crepúsculo. Aos poucos, sentiu vibrações muito sutis e foi separando-as do tumulto que envolvia o planeta com uma densa nuvem.

E então, ouviu a voz de um poeta exaltando a glória da natureza. E a cantiga de uma jovem mãe embalando o filhinho. Sentiu a força do ideal que levava os defensores do meio ambiente a lutar com denodo pela saúde da Terra. Captou preces de místicos em meditação, harmonizando-se com a Divindade, orando pela paz, pele amor, pela fraternidade entre os homens. Percebeu que entre os louco tecnólogos haviam alguns que tinham o desejo de disciplinar o uso do saber. E sonhadores a desenhar no ar um mundo melhor e mais justo. Homens e mulheres sacrificando seu tempo e conforto para levar alivio e pão aos doentes e famintos.

Eram bem frágeis aquelas vibrações diante da força selvagem da maldade humana, por isto tinham passado despercebidas no ‘ruído’ grotesco que sufocava Terra. Trix tomou conhecimento delas, e não podia ignorá-las...O episódio das bolinhas de vidro tinha servido de catalisador ou de ‘sintonizador’.

Voltando à nave maior, TRix sentiu-se confuso, dividido entre a decisão já tomada e a inquietação que o acometia. A luz do teto incidiu com força sobre as bolinhas de Davi, ao lado do teclado fatal, com os botões que iam decidir o destino do planeta azul. O olhar de Trix foi atraído para elas e nesse instante soube com intima convicção que lhe seria impossível apertara a tecla ‘execute’ que determinaria o breve extermínio da humanidade.

A generosa e espontânea dádiva de Davi [que nunca saberia do fato...] tinha presenteado o povo da Terra com mais uma chance de corrigir seus descaminhos, e se tornar digno do planeta azul, ao criar uma poderosa ‘dúvida razoável’...

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Há muitas pessoas chegando a acreditar, com amargura e ceticismo, que a raça humana não é digna da vida, que não ‘presta’, etc. E ainda que não digam isto com estas ou outras palavras semelhantes, dizem-no com atitudes de um constante ‘não vale a pena’, seguindo as massas em comportamentos de degradação e na inversão de valores e princípios universais. Publicamos esta historia de ficção com o intuito de, criar no coração de cada um uma mesma ‘dúvida razoável'...

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[Texto de Ceslawa Nycz]

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