16 de mar. de 2011

Aristóteles_Considerações Finais

Que dizer desta filosofia? Talvez nada entusiástico. É difícil a gente entusiasmar-se com Aristóteles, porque a ele era difícil mostrar-se entusiasta sobre qualquer coisa; e si vis me flere, primum tibi flendum [*”Se quiseres que eu chore, chora primeiro”. Horácio, Ars, Poética, dirigindo-se aos autores e escritores]. Sua divisa foi nihil admirari – não admirar-se ou maravilhar-se de coisa alguma; e em seu caso evitamos violar essa divisa. Não vemos nele o zelo reformador de Platão, o colérico amor a humanidade que fez o grande idealista acusar seus contemporâneos; não encontramos nele a audaz originalidade de seu mestre, a imaginação alcandorada, a capacidade de criar generosas ilusões. Mesmo assim, depois de lermos Platão, nada nos é tão salutar como calma cética de Aristóteles.

Sumariemos nossa displicência. Aborrecemo-nos, de começo, com o seu insistir sobre a lógica. Ele entende ser o silogismo uma descrição do modo de raciocinar do homem, ao passo que essa operação lógica apenas descreve o modo de o homem racionar com o fim de persuadir a outro espírito; ele supõe que o pensamento começa com as premissas e lhes procura em seguida as conclusões, quando a verdade é que o pensamento começa com hipotéticas conclusões, procurando depois suas premissas justificadoras – e procura-se melhor com a observação de particularidades, em condições fiscalizadas e isoladas de experiência. Mas seriamos insensatos se esquecêssemos que o lapso de dois mil anos apenas modificou minúcias na lógica de Aristóteles; que Occam e bacon e Whewell e Mill e cem outros mais descobriram unicamente manchas em seu sol; e que a criação por Aristóteles dessa nova disciplina do pensamento, e a firme determinação de suas linhas essenciais, ainda perduram entre as duradouras realizações do espírito humano.

É a ausência da experimentação e de frutíferas hipóteses que converte a ciência natural de Aristóteles em um amontoado de observações indigestas. Sua especialidade foi coligir e classificar dados; em todos os terrenos aplica suas categorias e organiza catálogos. Mas paralelamente a esta tendência e ao seu talento de observador, há uma propensão platônica pra a metafísica; ela o salteia em todas as ciências e o impele as mais vertiginosas suposições. Este era, em verdade, o grande defeito do espírito grego: a falta de disciplina; não possuía tradições limitadoras e estalizadoras; movia-se livremente em um campo sem limites pretraçados e formulava muito facilmente teorias e conclusões. Por isso a filosofia grega já se remontava a alturas ainda inatingidas, enquanto a ciência grega tropegamente a seguia. Nosso perigo moderno é exatamente o contrário; os dados indutivos chovem sobre nós de todos os lados como lavas do Vesúvio. Asfixiamo-nos com os fatos incoordenados; nosso espírito aturde-se com o surgir e multiplicar-se das ciências especializadas sem que surja uma filosofia unificadora. Somos todos meros fragmentos daquilo que um homem poderia ser.

A ética de Aristóteles é uma ramificação de sua lógica; a vida ideal assemelha-se a um autentico silogismo. Ele dá-nos um manual das conveniências em vês de um estimulo para o aperfeiçoamento. Um critico antigo capitulou-o de “moderado em excesso”. Em extremista poderia chamar sua Ética a mais perfeita coleção de vulgaridades de todas as literaturas; e um anglofobo se consolaria com a ideia de que os ingleses em adolescência são punidos antecipadamente pelas culpas imperialistas da idade adulta, por serem forçados a ler, tanto em Cambridge como em Oxford, palavra por palavra, a Etica Nicomaqueana. Ser-nos-ia agradável misturar algumas verdes Leaves of Grass a estas paginas ressecas, acrescentando a ardente apologia de Whitman, do prazer dos sentidos, a apologia de Aristóteles, de uma felicidade puramente intelectual. Nós nos perguntamos se este ideal aristotélico da imoderada moderação terá alguma coisa que ver com a virtude incolor, a perfeição rígida e as boas maneiras inexpressivas da aristocracia britânica.

Conta-nos Mattew Arnold que em seu tempo os professores de Oxford consideravam a Ética infalível. Durante trezentos anos este livro e a Política formavam o espírito dos estadistas ingleses, talvez para grandes e nobres realizações, mas indubitavelmente para uma lenta e fria eficiência. Qual seria o resultado se os senhores do maior dos impérios se tivessem, ao invés, alimentado com o ardente entusiasmo e a paixão criadora da Republica?

Afinal de contas, Aristóteles não era completamente grego; já tinha posição definida e o espírito formado antes de mudar-se para Atenas; antes nada existira de ateniense em torno dele, nada do febril e estimulante experimentalismo que fizera Atenas palpitar de élan patriótico e por fim a fizera submeter-se a um déspota unificador. Ele obedeceu em demais a ordem delfica de evitar excessos; toma tanto cuidado em evitar os extremos que por fim nada resta. Tanto receia a anarquia que se esquece de temer a escravidão; e teme-se tanto da incerteza das mudanças, que prefere uma imutabilidade muito parecida com a morte. Falta-lhe aquele senso do fluxo, de Heráclito, que justifica o conservantismo, convencendo-nos de que toda a mudança permanente é gradual, e justifica o radicalismo convencido de não ser definitiva imutabilidade alguma.

Ele esquece-se de que o comunismo de Platão somente se referia ao escolastica, aos poucos não-egoistas ou gananciosos e chega por linhas travessas a mesma idéia Platônica, quando diz que embora a propriedade deva ser particular, seu uso deveria tornar-se o mais possível comum. Não vê [e talvez não fosse possível vê-lo naquele tempo]que o monopólio dos meios de produção só seria estimulante e salutar enquanto esses meios fossem tão simples que qualquer homem pudesse adquirir, e que a crescente complexidade e custo desses meios traria uma perigosa centralização da propriedade e do poder e, depois, uma desigualdade artificial e por fim desagregadora.

Mas afinal estas criticas de ponto secundários são nada no que nos resta da mais maravilhosa sistematização do saber jamais concatenada por um só espírito. Nunca outro qualquer pensador contribuiu tanto para dar mais luzes ao mundo. Todos os séculos posteriores se abeberaram em Aristóteles e treparam em seus ombros para divisarem a verdade. A variada e grandiosa cultura de Alexandria encontrou em suas obras a inspiração cientifica. Seu “Organon” desempenhou o papel principal na formação do espírito dos bárbaros medievais, dando-lhe disciplina e coerência ao pensamento. As outras obras, traduzidas pelos cristão nestorianos para o siriaco no quinto século da era cristã, e depois para o árabe e hebreu no século décimo, e em seguida para o latim, mais ou menos em 1225, desviaram a escolástica de seus eloqüentes primórdios em Abelard, para o feitio enciclopédico de Tomaz de Aquino. Os cruzados trouxeram copias mais perfeitas, em grego, dos textos do filosofo; e os estudantes gregos de Constantinopla trouxeram novos tesouros de Aristóteles quando, após 1453, fugiram dos turcos que sitiavam aquela cidade. As obras de Aristóteles chegaram a ser para a filosofia européia o que a Bíblia é para a teologia – um texto infalível, com soluções para todos os problemas. Em 1215 o representante do Papa em Paris proibiu aos professores que ensinassem em seus livros; em 1231 Gregorio IX nomeou uma comissão para expurgá-lo; em 1260 era de rigor adotá-lo em todas as escolas cristãs e as assembléias eclesiásticas impunham penas a quem se desviasse das opiniões de Aristoteles. Chaucer declara feliz o estudante por ter

“A cabeceira do leito
Vinte volumes de encadernação preta ou vermelha
De Aristóteles e sua filosofia;

E num dos primeiros círculos do Inferno diz Dante:

“Lá eu vi o Mestre dos sábios
No meio de sua família de filósofos.
Por todos admirado e venerado;
Lá vi também Platão e Sócrates
Mais perto dele que os demais.

Linhas como essa dão-nos idéia da honra que os séculos prestaram ao estagirita. O reinado de Aristóteles não findou senão quando os novos instrumentos científicos, as observações acumuladas e a paciente experimentação, transformaram a ciência, dando armas irresistíveis a Occam e Ramus, a Roger e a Francis Bacon. Nenhum outro espírito governou por tanto tempo a inteligência humana.

_Últimos tempos, e a morte de Aristóteles
Enquanto isso, a vida tornara-se terrivelmente complicada para o nosso filosofo. Por um lado, desaviera-se com Alexandre por protestar contra a execução de Calistenes [sobrinha de Aristóteles] que se recusara a adorar o déspota como a um deus; Alexandre respondera ao protesto dando-lhe a entender que, para sua onipotência, era também possível mandar matar os filósofos. Ao mesmo tempo, Aristóteles ocupava-se em defender Alexandre entre os atenienses. Ele preferia a unidade grega ao regime de cidades independentes e achava que a cultura e a ciência vicejavam melhor quando desapareciam as pequenas soberanias e discórdias; e via em Alexandre o que Goethe iria ver em Napoleão -  a filosófica unidade de um mundo caótico e intoleravelmente vario. Famintos de liberdade, os atenienses rosnavam contra Aristóteles e tornaram-se ainda mais irados quando Alexandre lhe mandou erigir uma estatua no coração daquela cidade hostil.

Nesse torvelinho temos de Aristóteles uma impressão polarmente contraria da que nos deixou em sua Ética: não de um homem frio e se sobre-humana calma, mas de um lutador, a prosseguir, rodeado de inimigos, em sua obra titânica. Os continuadores de Platão na Academia, a escola oratória de Isocrates e as enraivecidas turbas dominadas pela acre eloqüência de Demóstenes, urdiam intrigas e clamavam pelo exílio ou a morte.

E então, subitamente, Alexandre morreu [323 a.C]. Atenas delirou de jubilo patriótico; derribou o partido macedônio e proclamou a independencia. Antipater, sucessor de Alexandre e amigo intimo de Aristóteles, marchou contra a cidade revoltada. A maioria dos elementos do partido macedônio fugiu. Eurimedon, um sumo sacerdote, acusou Aristóteles de ter ensinado que nada valiam as preces e os sacrifícios -  e o filosofo se viu na iminência de ser julgado por assembléias e multidões incomparavelmente mais hostis do que as que condenaram Sócrates. Muito avisadamente abandonou a cidade, declarando que não daria aos atenienses ensejo para segundo atentando contra a filosofia. Não foi ato covarde; os que era acusados em Atenas podiam optar pelo exílio. [*Grote, 20]. Chegado a Calcis, Aristóteles caiu gravemente enfermo; Diógenes Laércio refere que o velho filosofo, grandemente desgostoso por se voltarem assim as coisas contra ele, suicidou-se bebendo cicuta. [*Zeller, I, 37, nota]. Fosse o que fosse, sua enfermidade se mostrou fatal; e poucos meses depois de partir de Atenas Aristóteles morreu isolado de todos. [322 a.C].

No mesmo ano, em com a mesma idade de sessenta e dois, Demóstenes, o maior inimigo de Alexandre, bebeu veneno. No espaço de doze meses a Grécia perdera o seu maior soberano, o seu maior orador e o seu maior filosofo. A gloria helênica já empalidecia com o despontar do sol romano, mas a grandeza de Roma era mais a pompa do poder do que a luz do pensamento. Aquela grandeza, depois, também decaiu e aquela luz quase se extinguiu. Durante mil anos as trevas envolveram a face da Europa. O mundo ficou a aguardar a ressurreição da filosofia.
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GR.       

   

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