14 de jun. de 2011

Spencer_Critica e Conclusão

O leitor inteligente terá percebido no decurso desta breve analise [*A analise é sem duvida incompleta. A estreiteza do espaço não permite a analise da Educação, dos Ensaios e de largas seções da Sociologia. A lição da Educação tem sido bem apreendida; mas nós reclamamos hoje algum corretivo à vitoriosa asserção de Spencer quanto ao primado da ciência sobre as artes e as letras. Dos ensaios os melhores são os sobre o estilo, o riso e a musica. O Herbert Spencer, de Hugh Helliot, constitui uma admirável exposição] certas dificuldades na argumentação, e apenas necessitará de breves indicações desses pontos fracos. A critica negativa é sempre desagradável, principalmente  tratando-se de uma grande obra; mas faz parte da nossa tarefa mencionar o que o Tempo corroeu na obra de Spencer.

1_ Primeiros Princípios
O primeiro obstáculo é sem duvida o incognoscível. Cordialmente admitimos as prováveis limitações do conhecimento humano; não poderemos talvez devassar o grande oceano da existência, no qual somos vaga passageira. Mas não podemos dogmatizar sobre o assunto deste que em rigorosa lógica a asserção de alguma coisa é  incognoscível já implica necessariamente algum conhecimento da coisa. Através dos seus dez volumes, Spencer mostra na realidade “um prodigioso conhecimento do incognoscível” [*Bowne: Kant e Spencer]. Com disse Hegel: limitar a razão com o raciocínio é querer nadar sem entrar na água. E toda esta lógica sobre a “inconcebilidade”, quanto nos parece remota agora, a proporção que os dias escolares se afastam! Uma maquina não guiada não é muito mais concebível que a Causa Primaria, particularmente se por esta ultima expressão significarmos a soma total de todas as causas e forças do universo. Spencer, que vivia em um mundo de maquinas, tomou o mecanismo como assente; do mesmo modo que Darwin em um mundo de feroz competição individual, viu unicamente a luta pela existência.

E que diremos da tremenda definição da evolução? Explicará alguma coisa? “Dizer, primeiro era o simples e dele evolveu o complexo”, e assim por diante, não é explicar a natureza [*Richte: Darwin e Hegel, pág.60]. Spencer remenda, diz Bérgson, não explica [*Criação Evolutiva, pág.64]; esquece, como mais tarde percebeu, o elemento vital do mundo. Os críticos ficaram evidentemente irritados com a definição; seu inglês alatinado é especificamente chocante em um homem que denunciou o estudo do latim e definiu o bom estilo como o que requer o menor esforço para a compreensão. Algo lhe deve ser concedido, entretanto; não há duvida que se decidiu a sacrificar a clareza imediata a necessidade de concentrar em poucas palavras a lei de toda a existência. Mas apaixonou-se pela sua definição; rola-a na língua como um bombom saboroso e joga com ela interminavelmente. O ponto fraco da definição jaz na suposta “instabilidade do homogêneo”. É um todo composto de partes simples mais instável, mais sujeito a mudanças do que o todo composto de partes dissimilares. O heterogêneo, como mais complexo, pode presumivelmente ser mais instável que o homogeneamente simples. Na etnologia e na política é admitido que a heterogeneidade traz instabilidade e que a fusão de imigrantes num tipo nacional fortalece a sociedade. Gabriel Tarde pensa que a civilização resulta de um aumento de similaridade entre os membros de um grupo através de longos períodos de mutua imitação; aqui o movimento da evolução é concebido como progresso para a homogeneidade. A arquitetura gótica é certamente mais complexa do que a dos gregos, mas não é necessariamente um mais alto estágio de evolução artística. Spencer foi precipitado em admitir que o que era mais velho no tempo era mais simples na estrutura; avaliou em pouco a complexidade do protoplasma e a inteligência do homem primitivo [*Boas: The MInd of Primitive Man]. Finalmente, a definição deixa de incluir o que está hoje inalienavelmente associado com a idéia de evolução – a seleção natural. Talvez que [por imperfeita que possa ser esta noção] o conceito da historia como luta pela existência e sobrevivência dos mais aptos – dos organismos mais aptos, das mais aptas idéias, línguas e filosofias – fosse mais esclarecedor do que a formula de coerência e incoerência, de homo e heterogeneidade, de dissipação e integração.

“Sou um mau observador da humanidade concreta”, disse Spencer, “em vista de muito dado a contemplação do abstrato” [*Autobiografhy]. Está aqui uma perigosa honestidade. O método de Spencer era sem duvida muito dedutivo e aprioristico, diferindo muito do ideal de Bacon ou do processo atual do pensamento cientifico. Tinha, declara seu secretário, “uma inexaurível faculdade de desenvolver argumentos ‘a priori’ e ‘a posteriori’, indutivos e dedutivos, em suporte de todas as proposições imagináveis [*Royce]; e os argumentos ‘a priori’ gozavam de preferência. Spencer começou como um cientista, pela observação; continuou, como um cientista, a fazer hipótese; desse ponto em diante, já não como um cientista, passou a uma seletiva acumulação de dados favoráveis as teses em causa. Os fatos desfavoráveis eram postos de parte. Isto contrasta com o procedimento de Darwin, que, quando defrontado por um fato desfavorável a sua teoria, se apressava em anotá-lo, sabendo que corria o risco de escapar da sua memória muito mais depressa do que um favorável.

2_Biologia e Psicologia
Em uma nota ao seu ensaio sobre o progresso Spencer candidamente confessa que suas idéias sobre a evolução eram baseadas na teoria de Lamarck sobre a transmissibilidade dos caracteres adquiridos e não constituíam uma antecipação de Darwin, cuja idéia central era a seleção natural. Spencer é antes o filosofo do lamarckeanismo que do darwinismo. Ele já estava com quase quarenta anos quando a Origem das Espécies apareceu; e aos quarenta anos o cérebro de um homem já se mostra cristalizado.

Ao lado das dificuldades menores [como reconciliar o principio de que a reprodução decresce a medida que o desenvolvimento avança, como fato do índice de procriação na civilização da Europa ser maior que o dos povos selvagens], o grande defeito da sua teoria biológica reside na excessiva confiança em Lamarck e na sua incapacidade de encontrar uma concepção dinâmica da vida. Quando confessa que a vida “não pode ser concebida em termos fisicoquimicos”, a “admissão torna-se fatal para a sua definição de vida e para a coerência da Filosofia Sintética” [*J.A.Thomson: Herbert Spencer]. O segredo da vida podia ter sido melhormente procurado no poder do espírito para ajustar relações internas e externas do que no quase passivo ajustamento do organismo ao meio envolvente. De acordo com as premissas de Spencer, a adaptação perfeita significaria morte.

Os volumes sobre psicologia mais formulam do que informam. O que já sabíamos é redito em uma terminologia extremamente complexa, que obscurece em vez de esclarecer. O leitor fatiga-se com formulas, definições e questionáveis reduções de fatos psicológicos e estruturas neurais. É verdade que Spencer procura cobrir este abismo do  seu sistema de pensamento argüindo que o espírito é o acompanhamento subjetivo do processo nervoso evoluído de qualquer maneira, mecanicamente, a partir da nebula inicial; mas por que motivo seria este acompanhamento subjetivo adicionado ao sistema neural, não o diz – e aí reside o ponto capital de toda a psicologia.

3_Sociologia e Ética
Magnífica como é sua Sociologia, aquelas 2.000 paginas, entretanto, oferecem muitos pontos vulneráveis. Circula-lhe através da pressuposição de que evolução e progresso são sinônimos e portanto a evolução pode dar ao inseto e a bactéria a vitória final na incansável luta que sustentam com o homem. Não é perfeitamente evidente que o estado industrial seja mais pacifico e mais moral que o feudalismo “militante” que o precede. Atenas viu suas mais destruidoras guerras depois que os senhores feudais cederam o poder a burguesia comercial; e os países da moderna Europa parecem fazer a guerra com perfeita indiferença quanto ao serem industriais ou não. O imperialismo industrial pode ser tão militarista como as dinastias. O mais militarista estado moderno era um dos principais paises industriais do mundo. Ademais, o rápido desenvolvimento industrial da Alemanha parece ter sido ajudado, antes que embaraçado, pelo controle do estado sobre certas fases do transporte e do comercio. O socialismo é obviamente um desenvolvimento do individualismo e não do militarismo. Spencer escreveu em um tempo em que o relativo isolamento da Inglaterra a fez pacifica [na Europa] e quando a sua supremacia no comércio e na industrial a fazia uma firme devota do livre cambio; Spencer ter-se-ia decepcionado se ainda vivesse e visse com que rapidez essa teoria comercial desaparece com a perda da supremacia comercial e industrial, e como o pacifismo desapareceu logo que a invasão da Bélgica pelos alemães ameaçou o isolamento inglês. Spencer exagerou as virtudes do regime industrial; permaneceu quase cego ante a brutal exploração que florescia na Inglaterra antes que o estado interferisse para mitigá-la; tudo quanto ele via “nos meados do século e especialmente na Inglaterra” era “um grau de liberdade individual como nunca se observara antes” [*The Study of Sociology]. Não admira pois que Nietzsche, desgostado do industrialismo, reagisse, a seu turno e exagerasse as virtudes da vida militar [*The Joyful Wisdom].

A analogia do organismo social teria lançado Spencer no estado socialista se sua lógica fosse mais forte que os seus sentimentos; porque o socialismo do estado representa em mais alto grau que o laissez-faire a integração do heterogêneo. Por força de sua própria formula Spencer era compelido a aclamar a Alemanha como o mais altamente evoluído estado moderno. Ele procurou tornear este ponto argüindo que a heterogeneidade envolve a liberdade das partes e que tal liberdade implica um mínimo do governo; mas isto já é uma nota muito diferente da que temos na “heterogeneidade coerente”. No corpo humano a integração e evolução deixam pouca liberdade as partes. Spencer replica que na sociedade a consciência só existe nas partes, enquanto no corpo a  consciência existe no todo. Mas a consciência social – consciência dos interesses e processos do grupo – está tão centralizada na sociedade, como a consciência pessoal o está nos indivíduos; muito poucos de nós possuem qualquer “senso de estado”. Spencer ajudou-nos a nos salvar de um estado socialista regimental a custa do sacrifício da sua lógica.

E tudo por exagerações individualisticas. Devemos lembrar-nos que Spencer fora colhido entre duas épocas; que seu pensamento se havia formado na era do laissez-faire e sob a influencia de Adam Smith, e seus últimos anos transcorreram em um período em que a Inglaterra estava lutando para corrigir, pelo controle social, os abusos do regime industrial. Spencer jamais cessou de repetir os seus argumentos contra a interferência do estado;objetou contra a educação financiada pelo estado e contra a proteção pelo estado dos ingênuos lesados pela finança fraudulenta; e certa vez argüiu que até a direção da guerra devia ser privada e não da competência do estado; também desejou, como acentua Wells, “erguer a penúria publica à dignidade de política nacional”. Spencer levava ele mesmo os seus manuscritos ao impressor, tendo confiança por demais escassa no governo para confiá-los ao correio. Era um homem de intensa individualidade, irritavelmente insistente em ser deixado só; cada novo ato legislativo lhe parecia uma invasão da sua liberdade pessoal; Não podia compreender os argumentos de Benjamim Kidd, ao afirmar que, desde que a seleção natural operava mais e mais sobre os grupos, sobre as classes e sobre a competição internacional, e cada vez menos sobre os indivíduos, uma aplicação mais ampla dos princípios familiais [os mais fracos são ajudados pelos mais fortes] torna-se indispensável para a manutenção da unidade e força do grupo. Por que motivo haveria o estado de proteger seus cidadãos contra a força física insocial e recusar-lhes proteção contra a força econômica antissocial, é ponto que Spencer não tratou. Ele ironizava como infantil a analogia entre o governo e o cidadão como entre o pai e o filho; mas a analogia real é a de irmão ajudando irmão. Sua política foi mais darwiniana do que a sua biologia.

Mas basta de critica. Voltemos novamente ao homem e vejamos de um outro ponto de vista a grandeza de sua obra.

_Conclusão
Os Primeiros Princípios fizeram-no quase imediatamente o mais famoso filosofo de seu tempo. Foi livro traduzido em todas as línguas, inclusive em russo -  e na Rússia teve de enfrentar a perseguição do governo. Spencer foi aceito como o expoente filosófico do espírito da época; e não somente se fez sentir a sua influencia em todo o pensamento da Europa, como ainda afetou o movimento realístico da literatura e da arte. Em 1869 ficou Spencer espantado de ver os Primeiros Princípios adotados como livro de texto na universidade de Oxford. Mais maravilhoso ainda: seus livros começaram, depois de 1870, a dar lucro, e lucros que o puseram em perfeita segurança financeira. Vários admiradores lhe enviaram donativos em dinheiro, que Spencer sempre devolveu. Quando o tzar Alexandre II visitou Londres e exprimiu a Lord Derby o desejo de encontrar-se com os grandes sábios da Inglaterra, Derby incluiu Spencer entre os convidados, ao lado de Tyndall e Huxley. Mas Spencer declinou. Dava-se apenas com alguns íntimos. “Nenhum homem é igual ao seu livro”, escreveu. “O melhor da sua atividade mental vai para o livro, separado da massa dos produtos inferiores com os quais se acham misturados na tarefa diária”. Quando insistiam em vê-lo, punha algodão nos ouvidos e ficava placidamente a ‘ouvir’ o visitante.

Estranho notar -  sua fama decaiu quase tão rapidamente como nasceu. Spencer sobreviveu a sua reputação, e teve no fim da vida a tristeza de verificar que pouca força tinham suas tiradas contra a maré dos legisladores ‘paternalistas’. Havia-se tornado impopular em todas as classes. Os especialistas científicos, cujas searas ele invadira, ignoravam suas contribuições e exageravam seus erros; e os bispos de todos os credos se uniram para condená-lo a uma eternidade de penas. Os laboristas, a principio exultantes com as suas declarações contra a guerra, voltaram-lhe as costas quando Spencer disse o que pensava do socialismo e das ‘trade unios’; e os conservadores, que lhe apreciavam as vistas sobre o socialismo, evitavam-no por causa do seu agnosticismo. “Sou mais Tory que qualquer Tory e mais Radical que qualquer Radical”, disse ele com tristeza. Spencer era morbidamente sincero e ofendia a todos os grupos, falando candidamente sobre todos os assuntos; e depois de simpatizar com os operários como vitimas dos patrões, acrescentou que eles fariam a mesma coisa se as posições fossem invertidas; e depois de simpatizar com as mulheres como vitimas do homem, não pode fugir de acrescer que os homens seriam vitimas das mulheres se estas viessem a dominar. Spencer envelheceu sozinho.

Com a idade, tornou-se mais suave na oposição e mais moderado de opiniões. Sempre se ria do rei ornamental dos ingleses, mas na velhice exprimiu a idéia de que privar os ingleses de seu rei equivalia a privar as crianças dos seus brinquedos. Assim, em religião sentiu o absurdo de perturbar a fé tradicional, quando ela exerce uma influencia benéfica. Spencer começou a compreender que as fés religiosas e políticas são construídas com base em necessidades e impulsos fora do alcance dos ataques intelectuais; e consolou-se de ver o mundo prosseguir em seu curso, apesar dos livros ponderosos que lhe atravessou na órbita. Olhando para trás, viu que fora tolice preferir a fama literária aos prazeres simples da vida. Quando morreu, em 1903, estava com a impressão de que todo o seu trabalho tinha sido inútil.

Mas nós sabemos que não. A decadência da sua fama em vida foi parte da reação inglesa-hegeliana contra o positivismo; a revivescencia do liberalismo o erguerá de novo ao seu lugar de  máximo filosofo inglês do século. Spencer deu a filosofia um novo contato com as coisas e embutiu-a de um realismo que tornou fraca, pálida e tímida a filosofia alemã. Spencer resumiu sua época como ninguém o havia feito desde Dante; e realizou tão superiormente a coordenação de tão vasta área de conhecimentos humanos, que a critica se sente muda diante de tamanha obra. Estamos nós agora de pé nas cumiadas que suas lutas e seus labores nos proporcionaram; parece-nos estarmos acima de Spencer, porque Spencer nos ergue sobre seus ombros. Algum dia, quando o veneno da sua oposição estiver eliminado, havemos de lhe fazer justiça.
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M.L.       

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