24 de jun. de 2011

Nietzsche_Critica

É um belo poema, bem mais poema que filosofia. Sabemos que há absurdo aqui, e que o homem foi muito longe na tentativa de convencer-se e corrigir-se; mas podemos vê-lo sofrendo em cada linha e temos de amá-lo ainda quando nos choque. Há em nossa vida fases em que nos cansamos de sentimentalismo e ilusão, e ansiamos pelas picadas da duvida e da negação; Nietzsche nos aparece então como um tonico, como janela aberta depois de  longa cerimônia em igreja cheia. “Quem sabe respirar nos meus escritos reconhece que é o ar das alturas. Um homem precisa construir-se para suportá-lo; de outro modo as chances são de que tal ar o mate”. Não confundir este acido com leite para crianças.

E que estilo! “O mundo dirá algum dia que Heine e eu somos os maiores artistas que ainda escreveram em alemão, e que deixamos o melhor que qualquer alemão possa fazer a uma enorme distancia atrás”. E é assim [*Nietzsche considerava-se um pólo]. “Meu estilo dança”, diz ele; cada sentença é um dardo; a linguagem é ágil, vigorosa, nervosa; estilo do esgrimista, muito rápido e brilhante para olhos normais. Mas relendo-o percebemos que algo deste brilho é devido à exageração; a um interessante, mas ao cabo neurótico, egotismo; a uma fácil inversão de todas as noções aceitas -  o ridículo de cada virtude, o louvor de cada vicio; descobrimos que ele sente um deleite de calouro em chocar, e concluímos que é fácil ser interessante quando pomos de lado as peias da moralidade. As dogmáticas asserções, as generalizações, as proféticas repetições, as contradições – de outros, tanto quanto de si próprio – revelam um espírito que perde o prumo e oscila a beira da loucura. Por fim esse brilho por nos fatigar e nos dá nos nervos como chicotadas na carne, ou como a ênfase na conversa. Há muito da fanfarronice teutonica na violência do seu tom; nada do controle, que é o primeiro principio da arte; nada do equilíbrio, da harmonia e urbanidade que ele tanto admirava no francês. Não obstante, o estilo de Nietzsche é poderoso; domina-nos com a paixão; Nietzsche não prova – anuncia, revela; vence-nos mais com a imaginação do que com a lógica; dá-nos, não uma filosofia ou um mero poema, mas uma nova fé, uma nova esperança, uma nova religião.

Seu pensamento, bem como seu estilo, revelam-no como filho do movimento romântico.”Que há de um filosofo requerer de si mesmo, em primeiro e ultimo lugar? Sobre-pairar ao seu tempo e pôr-se fora do tempo”. Mas foi um conselho, que mais usou para infringir do que para seguir; fora batizado pela época, e com total imersão. Não compreendida como o subjetivismo de Kant – “o mundo é minha idéia” – como honestamente Schopenhauer frisava, houvesse determinado o “ego absoluto” de Fichte, e este o desequilibrado individualismo de Stirner, e este o amoralismo do super-homem [*Santayana: Egotism in German Philosophy]. O super-homem não é meramente o “gênio” de Schopenhauer, nem o “herói” de Carlyle, nem o Siegfried de Wagner; aparece-nos suspeitoso com o Karl Moor de Schiller e o Gotz de Goethe; Nietzsche tomou do jovem Goethe mais que a palavra Uebermensche – ao Goethe cuja calma da ultima fase ele motejava com inveja. Suas cartas estão cheias de sentimento romântico e “ternura”; “Eu sofro” é expressão que aparece em seus livros com a mesma freqüência que “Eu morro” nos de Heine. Chama-se a si próprio “alma mística e quase menadica”, e fala do Nascimento da Tregédia como “confissão de um romântico”. “Tenho medo”, escreveu a Brandes, “que eu seja muito musico para não passar de um romancista”. ‘Um autor deve silenciar quando a sua obra começa a falar”; mas Nietzsche nunca se oculta, e fala sempre na primeira pessoa. Sua exaltação do instinto contra o pensamento, do individuo contra a sociedade, de Dionisus contra Apolo [i.é, do romântico versus o classico], trai sua época tão precisamente  como a data do seu nascimento e de sua morte. Ele foi, para a filosofia moderna, o que foi Wagner para a musica – a culminação do movimento romântico, a maré alta; exaltou, libertou a “vontade” e o “gênio” de Schopenhauer de todos os empeços sociais, como Wagner libertou e exaltou a paixão acorrentada na Somata Patética e na Quina e Nona Sinfonias. Foi o ultimo rebento da linguagem de Rousseau.

Voltemos atrás agora, no caminho que com ele percorremos, para expor algumas das objeções com que fomos tentados a interrompê-lo. Nietzsche foi bastante agudo para nos últimos anos ver por si mesmo quanto o absurdo tinha contribuído para a originalidade do Nascimento da Tragédia. Eruditos como Wiamowitz-Moellendorff riram-se do livro. A tentativa de deduzir Wagner a Esquilo era a auto-imolação de uma jovem devota diante de um deus despótico. Quem teria pensado que a Reforma fosse “dionisíaca” – i.e., selvagem, amoral, vinhenta, bacanalica; e que a Renascença era o oposto – calma, discreta, moderada, “apoliena”? Quem teria suspeitado que o “socratismo fosse a cultura da opera?” O ataque a Socrates era o desdem de um wagneriano pelo pensamento lógico; a admiração por Dionisus era a idolatria pela ação de um homem sedentário [o mesmo com a apoteose a Napoleão], ou a secreta inveja de um coibido ante a máscula sexualidade dos garanhões.

Talvez Nietzsche estivesse certo no considerar a era pré-socratica como os dias alcionicos da Grécia; sem duvida que a Guerra do Peloponeso minou a base econômica e política da cultura do tempo de Péricles. Mas foi um pouco absurdo ver em Sócrates unicamente critica desintegradora [como se a própria função de Nietzsche não fosse principalmente essa] e não, também, um trabalho de salvamento para uma sociedade arruinada, menos pela filosofia do que pela guerra, corrupção e imoralidade. Somente um mestre em paradoxos pode colocar os obscuros e dogmáticos fragmentos de Heráclito acima da substanciosa sabedoria e alta arte de Platão. Nietzsche denuncia Platão. Nietzsche denuncia Platão, como denuncia todos os seus credores -  nenhum homem pode permanecer herói para o seu devedor; mas que é a filosofia de Nietzsche senão a ética de Trasimacus e Calicles e a política de Platão e Sócrates? Com toda a sua filologia ele nunca penetrou completamente o espírito dos gregos; nunca aprendeu a lição de que moderação e conhecimento de si próprio devem nutrir sem cessar os fogos da paixão e do desejo; que Apolo deve limitar Dionisus. Muitos descrevem Nietzsche como um pagão, mas há erro nisso; nem pagão grego, como Péricles, nem pagão germânico, como Goethe; faltava-lhe o equilíbrio e a dominação de si que fizeram a força desses homens. “Eu devolveria aos homens a serenidade que é condição de toda cultura, mas, ai! Como pode devolver quem não tem?” escreveu ele.

De todos os livros de Nietzsche Zarathustra é o mais resistente a critica, porque é o mais obscuro e também porque o seu inexpugnável mérito inibe o critico. A idéia da eterna recorrência das coisas, embora tão comum ao “apolineo” Spencer quanto ao “dionisíaco” Nietzsche, choca-nos como um esforço de ultima hora para recobrar a fé na imortalidade. Todos os críticos tem notado a contradição entre a intrépida pregação do egoísmo e o apelo ao altruísmo e sacrifício no preparo para o advento do super-homem. Mas quem, lendo esta filosofia, se classificará como servo e não como super-homem?

Quanto ao  sistema ético do Além do Bem e do Mal e da Genalogia da Moral, não passa de uma exageração estimulante. Reconhecemos a necessidade de requerer que os homens sejam mais bravos e mais duros – quase todas as filosofias éticas tem pedido isto; mas não há necessidade de pedir ao povo para ser cruel e ‘mais mau’. E não é grande coisa queixar-se de que a moralidade é a arma usada pelos fracos para limitar os fortes; os fortes não se impressionam profundamente com a moral e fazem a seu turno um hábil uso dela: os códigos éticos são impostos mais de cima para baixo do que o contrário; a multidão louva ou  condena por espírito de imitação. É igualmente bom que a humanidade seja ocasionalmente maltratada; “temos tido deprecação e encolhimentos demais”, mas ninguém observa super-abundancia de humildade no caráter moderno. Nietsche aqui se mostra curto daquele senso histórico que tanto louva como necessário ao filosofo; ou teria visto a doutrina da humildade de coração como o antídoto forçado as belicosas virtudes dos bárbaros que quase destruíram, no primeiro milênio da era cristã, aquela mesma cultura para a qual ele sempre se voltava como para um refugio. Será certo que esta selvagem ênfase da força e do  movimento seja eco de uma era febril e caótica? Essa supostamente universal “vontade de poder” dificilmente exprime a quietude dos hindus, a calma do chinês ou a satisfeita rotina do campônio medieval. Poder é o ídolo de muita gente; mas a maioria prefere segurança e paz.

Em regra, como os leitos terão percebido Nietzsche deixa de reconhecer o lugar e o valor dos instintos sociais; julga que os impulsos egoísticos necessitam de reforço da filosofia! Queríamos saber onde estavam os olhos de Nietzsche quando, em virtude de guerras egoístas, toda a Europa esquecia aqueles hábitos de cultura e as aquisições que ele tanto admirava e que dependem da cooperação e da amenidade social. A função mestra do cristianismo tem sido moderar pela inculcação de um ideal de suavidade a nativa brutalidade do homem; e qualquer pensador que tema terem os homens perdidos em egoísmo por excesso de virtudes cristãs, basta que olhe em redor de si para ficar sossegado.

Solitário por doença e nervoso, é forçado a guerra contra a mediocridade e indolência dos homens, Nietzsche foi levado a supor que todas as grandes virtudes são as virtudes do homem que se isola. Passou da submersão do individuo na espécie, de Schopenhauer, a uma desequilibrada liberação de todo controle social do individuo; sem família e amigos, nunca soube que os mais belos momentos da vida procedem da mutualidade e da camaradagem do que da dominação e da guerra. Não viveu bastante, ou com bastante largueza para amadurecer as suas meias verdades em sabedoria. Talvez que se tivesse vivido mais anos transformasse seu  estridente caos em uma filosofia harmoniosa. Melhormente se aplicam a ele próprio as palavras que disse de Jesus:”Morreu muito cedo;teria ele mesmo modificado a sua doutrina” se alcançasse a idade madura; “bastante nobre para revogá-la ele era”. Mas a morte tinha outros planos.

Talvez em política sua visão fosse mais sadia do que na ética. A aristocracia é o ideal do governo; quem o negará? ‘Há em cada nação um mais sábio, mais bravo e melhor, que temos de  descobrir e por no trono. Mas a arte de descobri-lo?” Quem é o melhor? Aparecem os melhores somente em certas famílias e isso justifica a aristocracia hereditária? Mas já a tivemos, e  essa aristocracia levou-nos a perseguições, irresponsabilidade de classe e estagnação. Talvez as aristocracias fossem salvas com mistura de sangue da classe media – e assim a Inglaterra conservou a sua. Mas se essa mistura degenera? Há muitos aspectos nestes árduos problemas contra os quais Nietzsche arremessou seus Sins e Nãos. As aristocracias hereditárias não querem a  unificação do mundo; tendem para uma estreita política nacionalista, por mais cosmopolita que tenham a conduta; se abandonam o nacionalismo, perdem uma das fontes do poder -  a manipulação das relações estrangeiras. E talvez um estado mundial não seja tão benéfico a cultura como a imagina Nietzsche; as grandes massas movem-se muito lentas; e a Alemanha provavelmente fez mais pela cultura quando era apenas uma “expressão geográfica”, com cortes independentes e rivais no patrocínio das artes, do que depois de unificada em império e expandida; não foi um imperador que mimou Goethe e salvou Wagner.

É uma ilusão vulgar que os grandes períodos de cultura  tenham sido eras de aristocracia hereditária; ao contrário, os florescentes períodos de Péricles, dos Medicis, e de Isabel, como a idade romântica, foram nutridos com a riqueza da burguesia em ascenção; e o trabalho criativo na arte e na literatura não foi realizado pelas famílias aristocraticas e sim pelos filhos das classes medias – por homens como Sócrates, filho do povo, e Voltaire, filho de um advogado, e Shakespeare, filho de um carniceiro. São as épocas de movimento e mudanças que estimulam a criação cultural; épocas em que uma nova e vigorosa classe se ergue para o poder e o orgulho. E também assim em política: seria suicídio excluir do estadismos gênios com falta de pedigree aristocrático; a melhor formula, por certo, é “a carreira aberta ao talento”, proceda de onde proceder; sejamos dirigidos por todos os melhores. Uma aristocracia é boa somente quando formada de um corpo de homens cujas credenciais para o poder sejam a capacidade apenas – uma aristocracia constantemente selecionada e  nutrida pela oportunidade aberta a todos.

Depois de todas estas deduções que resta? Muito ainda. Nietzsche tem sido refutado por todos os aspirantes a respeitabilidade; e apesar disso permanece como um marco de pedra no campo do pensamento moderno e como um pico de montanha na prosa alemã. Sem duvida que foi um pouco exagerado quando predisse que o futuro dividiria o passado em duas fases – “Antes de Nietzsche e Depois de Nietzsche”; mas conseguiu realizar uma sadia revisão critica de instituições e opiniões que por séculos vinham sendo consideradas intangíveis. Desvendou novas vistas quanto ao drama e á filosofia grega; mostrou o vírus da decadência romântica na musica de Wagner; analisou a natureza humana com sutileza cortante como o bisturi do cirurgião. Desenterrou algumas raízes ocultas da moralidade, coisa não feita por nenhum pensador moderno. Introduziu “um valor até então praticamente desconhecido nos reinos da ética – aristocrática”. Compeliu a uma honesta tomada em consideração das implicâncias éticas do darwinismo. Escreveu o maior poema em prosa do século. E acima de tudo concebeu como alguma coisa que o homem deve sobre-exceder. Falou com amargura, mas com preciosa sinceridade, e seus pensamentos vararam as nuvens e teias de aranha do espírito humano, iluminando como o raio e varrendo como o vento. O ar da filosofia européia está hoje mais claro e fresco em conseqüência do que Nietzsche escreveu.


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