1]_O Incognoscível
“Freqüentemente esquecemos”, diz Spencer na abertura do livro, “que não somente há uma alma de bondade nas coisas más como também uma alma de verdade nas coisas errôneas”. Propõe-se, portanto, examinar as idéias religiosas com o intento de encontrar o coração de verdade que sob as formas variáveis de tantos credos deu a religião o seu persistente poder sobre a alma humana.
O que imediatamente encontramos é que cada teoria da origem do universo nos arrasta a inconcebilidade. O ateísta procura pensar de um mundo que existe por si, não causado e sem começo; mas não podemos conceber nada sem começo nem causa. O teista apenas recua a dificuldade; e para o teólogo que diz: “Deus fez o mundo”, surge a pergunta irrespondível da criança: “E quem fez Deus?” As idéias ultimas das religiões são logicamente inconcebíveis.
As idéias ultimas da ciência situam-se igualmente para além da concepção racional. Que é matéria? Reduzimo-la a átomos e somos forçados a dividir o átomo como dividimos a molécula; e caímos no dilema da matéria infinitamente divisível, o que é inconcebível, ou na divisibilidade limitada, que é também inconcebível. Assim também com a divisibilidade do espaço e do tempo, noções também inconcebíveis pela razão. O movimento está envolto em uma tríplice obscuridade desde que implica mudança da matéria no tempo e no espaço. Quando analisamos resolutamente a matéria nada encontramos senão força – força que impressiona os nosso sentidos ou força que resiste aos nossos órgãos de ação; e quem poderá dizer que é a força? Deixando a física para penetrar na psicologia, vemos chocar-nos com o espírito e a consciência; e aqui os enigmas ainda são maiores. “As idéias ultimas da ciência, pois, consistem em representações de realidade que não podemos compreender...Em todos os rumos as investigações dos cientistas colocam-no diante de um enigma insolúvel que lhe faz ver a grandeza e a pequenez do intelecto humano – seu poder de jogar com tudo quanto cai dentro da zona da experiência e sua fraqueza quando passa daí. O que o cientista verdadeiramente sabe é que na sua natureza ultima nada pode ser conhecido”. E para usar a expressão de Huxley – a única filosofia séria é o agnosticismo.
A causa comum destas obscuridades reside na relatividade de todo conhecimento. “Pensar sendo relacionar, nenhum pensamento exprime senão relações...O intelecto sendo afeiçoado unicamente por fenômenos afim de lidar com fenômenos, resulta absurdo tentar usá-lo para qualquer coisa que não seja fenômeno” [*Isto vem inconscientemente de Kant e antecipa Bérgson]. E, todavia, o relativo é fenomenal, como as palavras o estão dizendo, implicam alguma coisa além deles, alguma coisa ultima e absoluta. Observando nossos pensamentos vemos quão impossível é libertar-nos da consciência de uma Realidade jacente atrás das Aparências, e como desta impossibilidade resulta nossa fé indestrutível nessa Realidade. Mas que realidade é essa, não podemos saber.
Deste ponto de vista a reconciliação entre a ciência e a religião torna-se possível. “A verdade geralmente jaz na coordenação de opiniões antagônicas”. Admita a ciência que suas “leis só se aplicam aos fenômenos e ao relativo. Cesse a religião de figurar o Absoluto como um homem em ponto grande ou muito pior, qual monstro traidor e sanguinário, que arde “em uma fonte de adulação que seria repugnante em uma criatura humana comum”. Que a ciência cesse de negar a deidade ou de tomar o materialismo como liquido. Espírito e matéria são por igual fenômenos relativos, o duplo efeito de uma causa ultima cuja natureza permanece desconhecida. A admissão deste Poder Inescrutável é o núcleo central de verdade de cada religião e o começo de toda filosofia.
2]_Evolução
Havendo indicado o incognoscível, a filosofia volta o rosto para o que pode conhecer. Metafísica: miragem. Como disse Michelet, consiste na “arte de nos enganar a nós mesmos - com método”. O campo real da filosofia jaz na totalização e unificação dos conhecimentos científicos. “Conhecimento no grau mais inferior é o conhecimento não unificado; a ciência, um conhecimento unificado; filosofia, o conhecimento totalmente unificado; Essa completa unificação requer um principio universal que inclua em si toda a experiência e trace as feições essenciais de todo o conhecimento. Existe um principio assim?
Podemos talvez aproximar-nos desse principio unificando as mais altas generalizações da física. Há a indestrutibilidade da matéria, a conservação da energia, a continuidade do movimento, a persistência das relações entre as forças [i.é, a inviolabilidade das leis naturais, a transformabilidade e equivalência das forças [mentais e físicas] e há o ritmo do movimento. Esta ultima generalização, ainda não usualmente reconhecida, deve ser apenas mencionada. Toda a natureza é rítmica, das pulsações do calor ás vibrações das cordas do violino; das ondulações da luz, do calor e do som ao movimento das marés; da periodicidade do sexo á periodicidade dos planetas, cometas e estrelas; da alteração da noite e do dia à sucessão das estações; das oscilações das moléculas ao surto e queda dos povos e ao nascimento e morte dos astros.
Todas estas ”leis do cognoscível” podem reduzir-se a lei final da persistência da força. Mas existe algo estático e inerte neste principio; ele não insinua o segredo da vida. O principio dinâmico da realidade, qual é ele? Qual a formula do crescimento e da decadência das coisas? Deve ser uma formula de evolução e dissolução, porque “uma história completa de tudo deve necessariamente incluir, primeiro, o aparecimento no imperceptível e depois o desaparecimento no imperceptível”.
E Spencer nos apresenta a sua famosa formula da evolução que nos fez o intelecto europeu ofegar e para cuja explanação foram exigidos dez volumes e quarenta anos de trabalho. “A evolução é uma integração de matéria e uma concomitante dissipação de movimento, durante a qual a matéria passa da homogeneidade, incoerente e indefinida para uma heterogeneidade definida e coerente; e no decorrer da qual o movimento sofre uma transformação paralela”. Que quer isto dizer?
O crescimento dos planetas a partir das nebulosas; a formação dos oceanos e montanhas; o metabolismo dos elementos pelas plantas e dos tecidos animais pelo homem; o desenvolvimento do coração no embrião e a fusão dos ossos depois do nascimento: a unificação de sensações e memórias em pensamentos e a unificação do conhecimento em ciência e filosofia; o desenvolvimento de famílias em clans e gentes e cidades e estados e alianças e na “federação do mundo”: eis a integração da matéria – a agregação de elementos separados em massas e grupos e todos. Tal integração envolve, sem duvida, uma redução de movimento nas partes como o poder crescente do estado diminui a atividade do individuo; mas ao mesmo tempo dá as partes uma interdependência, um tecido protetivo de relações que constitui “coerência” e promove sobrevivência do todo. O processo também traz uma limitação maior de formas e funções: a nebulosa é informe e no entanto desse informe procedem a regularidade elíptica dos planetas, as linhas agudas das cordilheiras, a forma especifica e o caráter dor organismos e órgãos, divisão do trabalho e a especialização das funções nas estruturas fisiológicas e políticas etc. E as partes deste todo integrador tornam-se não meramente definidas mas diversas e heterogêneas e natureza e operação. A nebulosa inicial é homogênea, i. e., consiste de partes que são as mesmas; logo, porém, se diferenciam em gazes e líquidos e sólidos; a terra aqui esverdece de plantas, ali branqueia nos topos das montanhas ou azula na amplidão dos mares; a vida envolvente gera de um relativamente homogêneo protoplasma os vários órgãos da nutrição, da reprodução, locomoção e percepção; a linguagem enche continentes inteiros de dialetos; uma ciência a principio única gera cem outras e o folclore de uma nação floresce nas milhares de formas da arte literária; a individualidade cresce, o caráter acentua-se e cada povo ou raça desenvolve o seu gênio particular. Integração e heterogeneidade, agregação das partes em todos cada vez mais amplos e diferenciação de partes em formas cada vez mais variadas; eis o núcleo da órbita da evolução. O que quer que passe da difusão para a integração e a unidade, e da simplicidade homogênea para uma complexidade diferenciada [por ex., a América, 1600-1900], está na correnteza da evolução; o que quer que seja que volte da integração a difusão e da complexidade a simplicidade [por ex., a Europa, 200-600], está em curso de dissolução.
Não contente com esta formula sintética Spencer procura mostrar como por necessidade inevitável ela decorre da operação natural das forças mecânicas. Há, primeiro, uma certa ‘instabilidade do homogêneo”: i., é, partes similares não podem permanecer similares porque são desigualmente sujeitas a forças externas: as partes exteriores, por exemplo, são breve atacadas, como as cidades das costas durante as guerras; e a variedade de ocupações molda homens similares nas diferenciações de uma centena de misteres e ofícios. Há, aqui, uma “Multiplicação de Efeitos”: uma causa pode produzir uma larga variedade de resultados e trabalhar na diferenciação do mundo; uma expressão imprópria, como no caso de Maria Antonieta, ou uma palavra truncada, como no telegrama de Sem, ou um vento, como em Salamina, podem representar um papel sem fim na história. E há a lei da “Segregação”: as partes de um todo relativamente homogêneo, lançadas em áreas diferentes, resultam em virtude de diversidade do meio-ambiente, em produtos dissimilares - como os ingleses se tornam americanos, canadenses ou australianos de acordo com o gênio do lugar. De muitos modos as forças da natureza constroem a variedade deste mundo envolvente.
Mas, por fim, e de modo inevitável, vem o “Equilíbrio”. Cada movimento sendo movimento contra resistência, deve cedo ou tarde chegar a um termo; cada oscilação rítmica [a não ser que externamente reforçada] sofre alguma perda de passo ou amplitude. Os planetas giram, ou girarão, em órbita menor do que já giraram; o sol brilhará com menos luz e irradiará menos calor do que já brilhou e irradiou séculos passados; a fricção das marés retardará a rotação da terra. Este globo que trepida e murmura com milhões de movimentos e se expande em milhões de formas tumultuosas de vida, mover-se-á algum dia mais lentamente em sua órbita e suas partes; o sangue correrá menos tépido e mais lento em nossas veias ressecas; pararemos de correr; como raças moribundas, pensaremos no céu em termos de repouso, não de vida; sonharemos o Nirvana. Gradualmente, e depois rapidamente, o equilíbrio se tornará dissolução, o triste epílogo da evolução. As sociedades se desintegrarão, massas humanas emigrarão, cidades voltarão a campos de vida agrícola; nenhum governo será bastante forte para manter as partes unidas; a ordem social cessará e se tornará apenas memória. E também no individuo a integração cederá o lugar a uma desintegração; e esta coordenação chamada vida passará para a difusa desordem que é a morte. A terra tornar-se-á um caótico cenário de decadência, um sinistro drama de energia em irreversível degradação; e por vim voltará ao pó ou nebulosa donde saiu. O ciclo da evolução e dissolução estará completo. Começará outro, e assim indefinidamente; mas o evolver será sempre este. Memento mori, está escrito no rosto da vida – e cada nascimento é o inicio de uma decadência e morte.
Os Primeiros Princípios constituem um magnífico drama que narra com serenidade clássica a história do surto e da queda, a evolução e dissolução dos planetas e da vida do homem; um drama trágico, porém, e para o qual cabe como epílogo a palavra de Hamlet – “O resto é silêncio”. Haverá nada mais natural que homens e mulheres, nutridos de fé e esperança, se rebelassem contra este sumário da existência? Sabemos que temos de morrer; mas como isto é coisa que vem por si, preferimos pensar na vida. Em Spencer há um senso quase Schopenhaueriano da futilidade do esforço. No fim da sua carreira triunfal exprimiu o sentimento de que a vida não valia a pena de ser vivida. Minava-o a doença dos filósofos, que é ver tão longe que todas as pequenas coisas agradáveis da existência passam ante seus olhos inapercebidas.
Spencer estava certo de que os homens desdenhariam aprovar um credo cujas ultimas palavras não eram Deus e Céu, mas equilíbrio e dissolução; e ao concluir a primeira parte de sua obra defendeu com desusada eloqüência o seu direito de expor aquelas sombrias verdades.
*Quem quer que com medo de mostrar-se muito adiante do seu tempo, hesite em enunciar o que julga a verdade, pode sossegar vendo os seus atos de um ponto de vista impessoal. Recorde-se que opinião é agencia através da qual o caráter adapta a si arranjos externos e que sua opinião necessariamente forma parte dessa agencia - é uma unidade de força constituindo com outras unidades que tais o poder que opera as mudanças do mundo; e compreenderá que pode muito bem enunciar suas convicções intimas deixando que produzam os efeitos que produzirem. Não é sem fundamento que o homem tem simpatias por alguns princípios e repugnância por outros.Com toda a sua capacidade e aspirações e fés, ele não é um acidente, mas um produto da época. Ao mesmo tempo que é um filho do passado e um pai do futuro; e seus pensamentos formam uma prole que ele não pode permitir que pereça. Igual a todos os outros homens, deve considerar-se uma das inumeráveis agencias através das quais atua a Causa Desconhecida; e quando a Causa Desconhecida nele produz uma certa fé, está ipso-facto autorizado a professar e agir de acordo com ela...O sábio não considera adventícia a fé que o anima. A mais alta verdade que vê, ele a enunciará sem temor, sabendo que, venha o que vier, está representando com honestidade o seu papel no mundo; sabendo que, se pode conseguir o que se mira, bem; e se não o pode, igualmente bem - embora não tão bem.
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