A resposta natural a semelhante filosofia é um diagnostico medico do seu autor e da sua época.
Temos aqui um fenômeno aparentado com o que, logo depois de Alexandre e César, derramou sobre a Grécia e Roma uma vaga de fé e atitudes orientais. A característica do Oriente é ver a Vontade externa da natureza como muito mais poderosa que a do homem – e daí incubar doutrinas de resignação e desespero. Como a decadência da Grécia trouxe para o rosto de Helas a palidez do Estoicismo e do Epicurismo, assim do caos das guerras napoleônicas veio para a alma da Europa o lamentoso desanimo de que Schopenhauer foi a voz. A Europa sofreu de uma terrível cefalalgia em 1815 [*Considere-se a apatia e o desanimo da Europa de 1924 e a popularidade de livros como a Queda do Oriente, de Spengler].
A diagnose pessoal pode partir da admissão por Schopenhauer de que a felicidade do homem depende do que ele é antes do que das circunstancias. O pessimismo é um produto do pessimista. Dados uma constituição doentia e um cérebro neurótico, uma vida vazia e tediosa, a fisiologia das idéias de Schopenhauer emerge logicamente. Só o homem que dispõe de lazer é pessimista; a vida ativa otimiza o corpo e o espírito. Schopenhauer louva a serenidade que decorre dos ideais modestos de uma vida firme mas não fala disso por experiência pessoal...Difficilis in otio quies, muito bem; ele possuía meios para o lazer continuo e descobriu que o lazer continuo é mais intolerável que o trabalho ininterrupto. Talvez a tendência dos filósofos para a melancolia decorra do anti-natural da vida sedentária; freqüentemente uma diatribe contra a vida corresponde a mero sintoma de prisão de ventre.
O Nirvana é o ideal do homem sedentário, de um Childe Harold ou um René que desejou muito, jogou tudo em uma só paixão e, tendo perdido, passa o resto da vida em um tédio petulante. Se o intelecto se ergue como servo da vontade, esse particular produto do intelecto que conhecemos com o nome de filosofia de Schopenhauer não passa de uma escusa da vontade indolente ou mórbida. Suas primeiras experiências da mulher e dos homens desenvolveram nele uma desconfiança anormal e um estado de mórbida sensibilidade, como sucedeu a Nietzsche, Flaubert e Stendhal. Schopenhauer tornou-se solitário e cínico. Escreveu: “Um amigo necessitado não é um amigo e sim um tomador de dinheiro”; e “Nada diga a um amigo que não possa confiar a um inimigo”. Aconselhava a calma e a monótona vida do ermitão; fugia da sociedade e não tinha nenhum senso dos valores e das alegrias da associação humana. Mas a felicidade perece quando não compartilhada.
Há sem duvida no pessimismo um largo elemento de egotismo; o mundo não é bastante bom para nós e por isso torcemos o nosso nariz filosófico. Mas isto é esquecer a lição de Spinoza, de que nossos termos de censura ou aprovação moral não passam de simples juízos do homem, irrelevantes, pois, quando aplicados aos cosmos como um todo. Talvez que o nosso desgosto da vida seja um disfarce para esconder o desgosto para com nós mesmos; estragamos nossa vida e lançamos a culpa ao ‘ambiente’ ou ao ‘mundo’, que não possuem línguas para se defender. O homem maduro aceita as limitações naturais da vida; não espera que a providencia abra exceções em seu favor; não pede dados viciados para jogar no jogo da vida. Sabe, como Carlyle, que é desassizado vituperar o sol porque não nos acende o cigarro. E, talvez, se formos hábeis, até isso nos fará o sol; e este vasto cosmos neutro se tornará uma agradável moradia, se o ajudarmos com um pouco do nosso sol. Na verdade o mundo não é a favor nem contra nós; mas sim matéria prima em nossas mãos para com ela fazermos céu ou inferno.
Uma das causas do pessimismo de Schopenhauer e seus contemporâneos jaz em suas expectativas e atitudes românticas. A mocidade espera excessivamente do mundo; o pessimismo é a manhã seguinte do otimismo, como 1815 foi o pagante de 1789. A exaltação romântica e a libertação do sentimento, do instinto e da vontade, bem como o romântico desprezo pelo intelecto, pelas restrições, pela ordem, trouxeram suas naturais sanções; porque o ‘mundo’ como dizia Horace Walpole, “é uma comedia para os que pensam e uma tragédia para os que sentem”. “Talvez nenhum movimento tenha sido tão fecundo em melancolia como o romantismo emocional...Quando o romântico descobre que o seu ideal de felicidade conduz a infelicidade, ele não acusa o seu ideal. Simplesmente conclui que o mundo é indigno de um ser tão finamente organizado como ele, romântico”. Como poderá um caprichoso universo satisfazer a uma alma caprichosa?
O espetáculo de Napoleão a caminhar para o trono, a denuncia de Rousseau e a critica de Kant ao intelecto, juntamente com o seu gênio apaixonado e suas experiências de vida, sugeriram a Schopenhauer o primado da vontade. Talvez Waterloo e Santa Helena hajam também contribuído para desenvolver um pessimismo oriundo do doloroso contato com a vida. Estava lá a individualidade mais dinâmica da história, imperioso comandante de continentes – e sua condenação era tão certa como a da mosca que nasce e morre no mesmo dia. Jamais ocorreu a Schopenhauer que era melhor ter lutado e perdido do que nunca haver lutado; ele não sentia, como o másculo Hegel, a gloria e a desejabilidade da luta; ansiava por paz - e viveu no meio da guerra. Por toda parte via lutas e por trás das lutas não percebia o socorro amigo dos vizinhos; a alegria folgazã das crianças e dos moços, as danças das raparigas, o sacrifício voluntário dos pais e dos amantes, a paciente generosidade do solo e o renascer da primavera.
E que importa que um desejo satisfeito traga o surto de novo desejo? A felicidade, diz velha lição, reside antes no ato de realizar do que na realização em si. O homem sadio só pede como felicidade o ensejo para o exercício do seu esforço, e se por essa liberdade de agir tem de pagar a pena de dor, paga-a alegremente; não é grande o preço. O aeroplano e a ave necessitam da resistência do ar para erguerem vôo; nós necessitamos de obstáculos que estimulem nosso desenvolvimento e acrescentem nossa força. A vida sem tragédia seria indigna de um homem [*Schopenhauer: Não ter trabalho regular, que coisa miserável! Esforço, lutas contra as dificuldades – isto é tão natural para o homem como moer o é para a mó do moinho. Ter todas as suas necessidades satisfeitas torna-se intolerável – o sentimento da estagnação proveniente dos prazeres que duram muito. Para superar dificuldades é conhecer o deleito Maximo da existência – “Conselhos e Máximas”].
Será verdade que “o aumento do conhecimento cresce a dor” e que o organismo mais altamente apurado seja o que mais sofre? Sim; mas também é verdade que o crescer em conhecimento cresce a alegria tanto quanto a dor, e que os mais suaves deleites são reservados para as almas mais desenvolvidas. Voltaire dava preferência a sabedoria do brâmane “infeliz” a bem-aventurada ignorância da mulher do campo; queremos conhecer a vida a fundo ainda que ao preço de muita dor; queremos aventurar pelos seus mais recônditos recessos ainda que ao preço da desilusão [*Anatole France – ultima encarnação de Voltaire – dedicou uma das suas obras primas – ‘A Tragédia Humana’ – a tarefa de mostrar que, embora a alegria da compreensão seja uma alegria triste, os que uma vez a provam não a trocam nunca pelas frívolas alegrias e ocas esperanças do vulgo – Jardim de Epicuro]. Virgilio, que havia experimentado todos os prazeres e conhecera todas as excelências do favor imperial, mostrou-se no Tim “cansado de tudo, exceto das alegrias da compreensão”. Quando os sentidos cessam de nos dar prazer, há o acesso a camaradagem com artistas, poetas e filósofos, que só o espírito maduro pode compreender. A sabedoria é um doce-amargo deleite.
É o prazer negativo? Unicamente uma alma ferida e fora de contato com o mundo poderia enunciar uma semelhante blasfêmia. Que é o prazer senão a operação harmoniosa dos nossos instintos?
Não há duvida de que a morte é terrível. Muitos dos seus terrores, porém, desaparecem para os que vivem a vida normal; o homem tem que viver bem para morrer bem. E poderia a não-morte deleitar-nos? Quem ainda invejou a sina de Ashaverus, que recebeu a imortalidade como o pior castigo que lhe poderia cair sobre a cabeça? E por que é má a morte senão porque o viver é bom? Não precisamos dizer como Napoleão que todos os que temem a morte são no fundo da alma ateístas; mas podemos com segurança dizer que um homem que viveu sessenta anos e mais dez sobreviveu ao seu pessimismo. Nenhum homem, diz Goethe, é pessimista depois dos trinta anos. E dificilmente antes dos vinte; o pessimismo é luxo dos orgulhosos e da mocidade cheia de si; da mocidade que sai do seio quente da família comunistica para a atmosfera individualistica da competição pessoal – e sonha com as quenturas que deixou; da mocidade que se atira contra moinhos de vento e deleita-se em arquitetar utopias e idéias. Antes dos vinte anos há a alegria do corpo e depois dos trinta a alegria do espírito; antes dos vinte, o prazer da proteção e da segurança; e depois dos trinta a alegria do lar.
Como pode um homem escapar ao pessimismo, se viveu toda a vida numa casa de pensão? E se abandonou seu único filho a ilegitimidade anônima? [*Finot, Ciência de Fidelidade]. No fundo da infelicidade de Schopenhauer estava a repulsa da vida normal – sua repulsa da mulher, do casamento, dos filhos. Ele via na procriação o maior dos males – e é onde o homem normal encontra as maiores satisfações. Considerava o furtivo do amor como vergonha de continuar a perpetuação da espécie – e isto não passa de absurda pedanteria. Enxergava no amor unicamente o sacrifício do individuo a raça e ignorava os deleites com que o instinto paga tal sacrifício – tamanhos, que vem inspirando a maior parte dos poetas do mundo. Considerava a mulher unicamente como pecadora astuta porque não a conheceu de outro tipo. Declarava que o homem que se devota a sustentar uma mulher é um néscio; mas aparentemente esses homens não são mais infelizes do que o nosso apostolo da infelicidade solteira; e [como diz Balzac] custa tanto suportar um vicio como uma família. Schopenhauer desdenha da beleza da mulher – como se existisse qualquer forma de beleza que não fosse a cor e fragrância da vida. Que ódio a mulher um infortúnio gerou nessa alma!
Existem outras dificuldades mais técnicas, e menos vitais nesta notável e estimulante filosofia. Como pode o suicídio ocorrer em um estado onde a única força real é a da vontade do viver? Como pode o intelecto, nascido e criado como servo da vontade, alcançar independência e objetividade? Jaz o gênio no conhecimento divorciado da vontade, ou contem ele em si um imenso poder de vontade com larga dose de ambição pessoal ou orgulho? Estará a loucura ligada ao gênio em geral, ou unicamente ao tipo romântico do gênio [Byron, Shelley, Pöe, Heine, Swinburne, Strindberg, Dostoievski, etc]; ficando os de tipo “clássico” e, pois, os mais profundos isentos dela [Sócrates, Platão, Spinoza, Bacon, Neuton, Voltaire, Goethe, Darwin, Whitman, etc]? A função própria do intelecto e da filosofia não será em vez da negação da vontade, a coordenação dos desejos em uma unidade de vontade harmoniosa? Que é a própria “vontade” em si senão uma abstração mística, tão vaga como “força”?
Há na filosofia de Schopenhauer, entretanto, uma nota de brutal honestidade que deixa os credos otimistas transformados em soporosas hipocrisias. Muito bom dizer, como Spinoza, que o bem e o mal são termos subjetivos, preconceitos humanos; mas somos obrigados a julgar este mundo, não de um ponto de vista “imparcial”, mas do ponto de vista real dos sofrimentos e das necessidades humanas. Foi ótimo que Schopenhauer forçasse a filosofia a encarar a dura realidade do mal, e abrisse os olhos do homem a necessidade de aliviá-lo. Tornou-se mais difícil, desde esse dia, permanecerem os filósofos na atmosfera do irreal, a recrearem-se em metafísicas; os pensadores passaram a compreender que pensamentos sem ação é doença.
Schopenhauer abriu os olhos dos psicologistas para a sutil profundidade e força onipresente do instinto. O intelectualismo – a concepção do homem como, acima de tudo, um animal pensante, conscientemente adaptando meios para fins racionalmente escolhidos – adoeceu com Rousseau, foi para a cama com Kant e morreu nas mãos de Schopenhauer. Depois de dois séculos de analise introspectiva a filosofia encontrou atrás do pensamento o desejo; e atrás do intelecto, o instinto; justamente como depois de um século de materialismo, a física iria encontrar por detrás da matéria a energia. Devemos a Schopenhauer a revelação do nosso coração secreto a nós mesmos, mostrando que nossos desejos são os axiomas das nossas filosofias e abrindo caminho para a compreensão do pensamento como um flexível instrumento de ação e desejo, não mais como mero calculo abstrato de acontecimentos impessoais.
Finalmente, a despeito dos seus exageros, Schopenhauer ensinou-nos a necessidade dos gênios e o valor da arte. Viu que o bem supremo é a beleza e que a alegria suprema reside na criação ou no cultivo do belo. Schopenhauer juntou a Carlyle e a Goethe no protesto contra a tentativa de Hegel, Max e Buckle para eliminar o gênio como fator fundamental da historia humana; em uma idade em que todos os grandes pareciam extintos, ele pregou uma vez mais o nobre culto dos heróis. E com todos os seus defeitos entrou para a galeria dos gênios.
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M.L.
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