23 de abr. de 2011

Kant_A Critica da Razão Pratica

Se a religião não pode basear-se na ciência e na teologia, em que se baseará então? Na moral. A base da teologia é muito insegura; melhor desistir dela, ou mesmo destruí-la. Devemos colocar a fé para além do alcance ou dos domínios da razão. Mas para isso a base moral da religião deve ser absoluta e não derivada da discutível experiência sensorial ou de precária dedução -  e não poluída pela associação com a razão falível; deve provir do seu interno pela percepção e intuição diretas. Precisamos encontrar uma ética universal e necessária; os princípios a priori da moral são absolutos e certos como os de matemática. Devemos mostrar que “a razão pura pode ser pratica, isto é, pode por si mesma determinar a vontade, independentemente de qualquer coisa empírica” [*Critica da Razão Prática, pág.31] e que o senso moral é inato e não derivado da experiência. O imperativo moral requerida para base da religião deve ser um imperativo absoluto e categórico.

Ora, a mais surpreendente realidade de toda a nossa experiência é precisamente nosso senso moral, nosso sentimento iniludível, em face da tentação, de que isto ou aquilo é um  mal. Podemos ceder a tentação: entretanto, aquele sentimento persiste. Lê matin je fais des projets et lê soir je fais des sottises [*”pela manhã tomo boas resoluções e a noite cometo loucuras”]; mas sabemos o que são sottises e renovamos depois os projetos. Que coisa é que nos traz o pungir do remorso e a nova resolução? O imperativo categórico existente em nós, a ordem incondicional de nossa consciência, para procedermos como se o máximo da ação nossa fosse tornar-se, por nossa vontade, uma lei universal da natureza [*Razão Prática, pág. 139].

Sabemos, não pelo raciocínio, mas por um sentimento vivo e imediato, que devemos evitar um procedimento que, adotado por todos os homens, tornaria impossível a vida em sociedade. Quero sair-me de apuros dizendo uma mentira? Mas “embora podendo querer a mentira, não posso de modo algum pretender que mentir seja uma lei universal. Pois com semelhante lei não poderia haver compromisso” [*Razão Prática, pág.19]. Daqui a ter eu a impressão de que não devo mentir, mesmo que mentir me seja vantajoso. A Prudência é condicional; seu lema é: Proceder honestamente, quando for a melhor tática; mas a lei moral é em nossos corações incondicional e absoluta.

E uma ação é boa não pelo resultado ou por sua sensatez e sim por ser feita em obediência a este intimo sentimento do dever, a esta lei moral que não procede de nossa experiência pessoal, mas legisla imperiosamente e a priori sobre o nosso procedimento passado, presente e futuro. A única coisa incondicionalmente boa deste mundo é a boa vontade – a vontade de obedecer a lei moral, independentemente do seu proveito ou desvantagens para nós. Nunca nos preocupemos com a felicidade; cumpramos o nosso dever. “A moral não é propriamente a doutrina do modo de sermos felizes, e sim do modo como podemos tornarmos dignos da felicidade” [*Id., 27]. Procuremos a felicidade para os outros; mas, quanto a nós mesmos, demandemos a perfeição -  quer nos traga felicidade, quer nos traga sofrimento. [*Prefacio de Os Elementos Metafísicos da Ética].

Realizar a perfeição em nós e a felicidade nos outros é a regra humana de proceder para consigo e para com os outros, mas sempre como um fim, e nunca como um simples meio. [*Metafísica da Moral, Londres, pág. 47]; também isto, como diretamente sentimos, faz parte do imperativo categórico. Vivendo de acordo com tais princípios criaremos em breve uma comunidade ideal de seres racionais; para criá-la, basta procedermos como se já pertencêssemos a ela; devemos aplicar a lei perfeita no estado imperfeito. Direi ser uma ética difícil de seguir, essa que coloca o dever acima da beleza e a moral acima da felicidade – mas só assim poderemos deixar de ser animais e começar a ser deuses.

Observe-se, enquanto isso, que esta ordem absoluta para o cumprimento do dever prova, afinal, nosso livre arbítrio; como poderíamos conceber uma noção como o dever, se não nos sentíssemos livres? Não podemos provar esta liberdade com a razão abstrata; provamo-la sentindo-a diretamente na crise da escolha moral. Sentimos ser essa liberdade como a própria essência de nosso ser intimo, do “puro Ego”; sentimos dentro de nós a atividade espontânea de um espírito a modelar a experiência e a escolher seus fins. Iniciadas as nossas ações, elas parecem seguir leis fixas e invariáveis; dá-se isto, porém, somente porque percebemos seus resultados por meio dos sentidos, que revestem a tudo o que transmitem com a vestidura daquela lei da causalidade, criada pelo nosso próprio espírito. Achamo-nos, no entanto, além e acima das leis que criamos tendo em mira compreender o mundo sensível; cada um de nós é um centro inicial da força e do poder criador. Sentimos, de certo modo, mas não podemos provar, que somos todos livres.

Também, mau grado não possamos provar, sentimos que somos imortais. Compreendermos que a vida não semelha aqueles dramas tão apreciados pelo povo, em cujo desfecho os maus são castigados e os atos de virtude premiados; compreendemos cada vez mais que a sabedoria da serpente é, aqui no mundo, melhor do que a mansidão da pomba e que os ladrões podem triunfar se roubarem em alta escala. Se a justificação da virtude fosse meramente a utilidade e conveniência terrenas, mal avisados andaríamos sendo bons. Conhecendo, todavia, tudo isto, sofrendo com freqüência o choque brutal dessa verdade, sentimos ainda a ordem mental de procedermos bem, sabemos que devemos fazer o  bem desinteressadamente. Como poderia persistir este senso da retidão se não sentíssemos, em nossos corações, que esta vida é apenas uma parte da vida; que este sonho terrestre é unicamente um embrionico primórdio a que se sucede um novo despertar -  se não soubéssemos vagamente que nesta vida ulterior e mais longa se erguerá a concha da balança em que nem um copo d’água dado de coração deixará de obter restituição centupla?   

Finalmente, e pelo mesmo fundamento, existe um Deus. Se o senso do dever subentende e justifica a crença em recompensas futuras, “o postulado da imortalidade...deverá levar-nos a suposição da existência de uma causa adequada a este efeito; por outras palavras – deve ser um postulado a existência de Deus” [*Razão Prática, pág 220]. Ainda aqui a prova não é feita pela “razão”; o senso moral, que se relaciona com o mundo das ações, deve ter prioridade sobre a lógica abstrata que se desenvolveu unicamente para aplicar-se aos fenômenos sensíveis. Nossa razão dá-nos liberdade de crer que, atrás da coisa em si, há um Deus justo; nosso senso moral nos ordena que creiamos nisto. Tinha razão Rousseau: acima da lógica da cabeça está o sentir do coração. Pascal havia acertado: o coração tem suas razões que a cabeça jamais compreenderá.  

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