A mais preciosa produção da moderna filosofia está lançada em forma geométrica, de modo a tornar o pensamento euclidianamente claro; mas o resultado é uma obscuridade lacônica que pede para cada linha um Talmud de comentários. Os escolásticos já haviam formulado assim o seu pensamento, mas não com tamanha profundidade; e eles o esclareciam com posteriores e bem ordenadas conclusões. Descartes sugeriu que a filosofia só poderia ser exata quando expressa em forma de matemática; mas nunca pôs a sua de acordo com esse ideal Spinoza, impressionado com as realizações de Copérnico, Kepler e Galileu, atacou o problema do seu espírito treinado em matemáticas, que ele tinha como a base de todo o processo cientifico. Para nosso cérebro de diferente textura e resultado foi uma exaustiva concentração da matéria e da forma; e somos tentados a nos consolar denunciando esta filosofia geométrica como um jogo de xadrez no qual axiomas, definições, teoremas e provas são manipulados como reis, bispos, cavalos e peões; uma lógica solitária inventada para consolar a solitude de Spinoza. A ordem é coisa contrária ao nosso espírito; preferimos seguir ao sabor da fantasia e tecer a nossa filosofia com sonhos. Mas Spinoza só tinha um desejo – reduzir o intolerável caos do mundo a unidade. Possuía muito mais a fome nórdica pela verdade do que a ânsia mediterrânea da beleza;o artista era nele um arquiteto a construir um sistema de pensar de perfeita simetria.
O estudioso moderno também esbarra na terminologia de Spinoza. Escrevendo em latim, era compelido a expressar o seu moderníssimo pensamento por meio de termos medievais e escolásticos; em nenhuma outra língua a filosofia encontrava material de expressão. Assim usa ele o termo substancia onde diríamos hoje realidade ou essência; perfeito onde diríamos completo; ideal onde diríamos objeto; objetivamente onde dizemos subjetivamente e formalmente onde dizemos objetivamente. São tropeços pelo caminho que detêm o fraco mas estimulam os fortes.
Em resumo, Spinoza não é filosofo para ser lido, mas sim estudado; temos que nos aproximar dele como nos aproximamos de Euclides, admitindo que nessas breves duzentas paginas um homem lançou o inteiro pensamento de sua vida, numa escultura estóica onde todo o supérfluo foi omitido. Não esperem apanhar-lhe a essência numa rápida leitura; nunca um tratado de filosofia permitiu menos tal façanha. Cada parte depende das partes antecedentes; algumas proposições obvias e na aparência desnecessárias surgem de súbito como pedras angulares de um soberbo desenvolvimento lógico. Não há compreender nenhuma das suas seções antes de lê-lo todo – lê-lo e ponderá-lo. Não encampamos, entretanto, a entusiástica exageração de Jacobi, quando afirma que “só entenderá Spinoza aquele para o qual não haja uma só linha obscura em sua Ética”. “Aqui,sem duvida”, diz Spinoza na segunda parte do seu livro, “o leitor sentir-se-á confuso e ponderará muita coisa que o fará vacilante; por isso pelo que vá comigo devagar e não forme juízo antes de ler tudo”. Nunca ler o livro de uma vez, mas por partes, com interrupções. Depois de conclusa a leitura, considerar que está começando a entendê-lo. Ler então algum comentário, como o Spinoza, de Pollock ou o Estudo de Spinoza, de Martineu – ou ambos. Finalmente, reler a Ética – e tudo parecerá novo. Depois desta segunda leitura ficareis para sempre um apaixonado da filosofia.
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