24 de mar. de 2011

Francis Bacon_Considerações Finais

Que diremos agora sobre o valor da filosofia de Francis Bacon?
Existe nela algo novo?
Macaulay entende que a indução como a descreve Bacon é coisa muito antiga, não sendo caso de nos entusiasmarmos a sua descoberta, nem de erigir-lhe um monumento. “Desde o começo do mundo os seres humanos praticam a indução da manhã a noite”. O homem que conclui que empadas lhe fazem mal, porque quando as come adoece e quando não as come passa bem, adoecendo mais se comeu mais, e menos se comeu menos, empregou, inconsciente mas suficiente, todas as tábuas do Novum Organum” [*Op.Cit. pág.471]. Mas é difícil que John Smith recorra com tanto cuidado as suas “tábuas de grau ou de variação”  e mais provável é que continue a comer suas empadas apesar das perturbações “sísmicas” das “camadas” inferiores de seu organismo. Dado, porém, que John Smith fosse tão atilado, não tiraria com isso o valor de Bacon, pois que faz senão formular a experiência e o método dos sábios? – e que fazem todas as disciplinas senão experimentar, converter, por meio de regras, a arte de alguns poucos em uma ciência ensinavel a todos?

Mas a formula de Bacon será dele próprio? Não é o método indutivo de Sócrates? Não é a biologia indutiva de Aristóteles? Não é certo que Roger Bacon não só preconizou como também praticou o método indutivo que Francis Bacon simplesmente preconizou? Galileu não formulou o método de que a ciência se utilizou? É verdade o que se refere a Roger Bacon; é o menos o referente a Galileu; menos ainda o que diz respeito a Aristóteles; e, menos que tudo, o relativo a Sócrates. Galileu traçou mais o objetivo da ciência do que seu método, proclamando, antes dos seus continuadores, a necessidade da formulação matemática e quantitativa de todos os fatos e relações. Aristóteles empregou a indução quando não podia fazer outra coisa e quando o material não se prestava a sua tendência para deduzir conclusões particulares dos postulados grandiosamente gerais; e Sócrates empregou menos a indução – colheita de dados -  do que a analise -  a definição e  discriminação de palavras e idéias.

Bacon não reivindica para si a gloria da originalidade partenogenetica; assim como Shakespeare, ele forrageia fartamente em outros e com a mesma justificativa -  de realçar tudo aquilo em que toca. Cada homem encontra as fontes que lhe prestam, como cada organismo descobre o alimento que lhe convêm; o que lhes é próprio, é o modo como digerem e transformam em sangue essas matérias. Como disse Rawley, “Bacon não despreza as observações de ninguém -  e acendia o seu facho na vela que encontrava pelo caminho” [*Citado por J.M.Robertson, Introdução das Obras Filosóficas de Francis Bacon, pág. 7]. Mas Bacon reconhece isso quando se refere ao “útil método de Hipocrates” [*Progresso da Ciência, IV, 2], - desse modo nos encaminhando para a lógica indutiva dos gregos. “Platão”, diz ele [em vez de “Sócrates”, como diríamos], “dá-nos bom exemplo da investigação indutiva, embora de maneira errática, débil e infecunda” [*Fil.Lab.ad.fin]. Bacon não curava de esclarecer suas obrigações para com esses predecessores -  e nós não devemos exagerá-las.

Mas, perguntamos ainda, é verdadeiro o método baconiano? É o mais frutiferamente empregado pela ciência moderna? Não; geralmente a ciência utilizou, com resultados melhores, não a acumulação de dados [“historia natural”] e sua manipulação por meio das complicadas tabuas do Novum Organum e sim os processos mais simples da hipótese, dedução e experimentação. Foi assim que, lendo Darwin o Ensaio sobre a População de Malthus, concebeu a idéia de aplicar a todos os organismos a hipótese maltusiana de que a população tende a aumentar mais rapidamente do que os meios de subsistência; deduziu desta hipótese a provável inferência de que a necessidade de alimento para essa população excessiva resulta em uma luta pela vida, na qual sobrevivem os mais aptos e devido a qual, em cada geração, todas as espécies se modificam, adaptando-se melhor ao seu meio; e finalmente [tendo com a hipótese e com a dedução limitado seu campo de observação e seu problema] voltou-se para a “imarcescível face da natureza” e procedeu, durante vinte anos, a um paciente exame indutivo dos fatos.

Semelhantemente, Einstein concebeu ou tomou de Newton, a hipótese de que o trajeto da luz é em linhas curvas e, não, retas; deduziu dela a conclusão de que uma estrela que pela aparência está [segundo a teoria da trajetória retilínea] em dada posição no céu, acha-se realmente um pouco ao lado dessa posição; e convidou a experiência e a observação a por em prova essa conclusão.É claro ser a função da hipótese e a da imaginação maior do que o supôs; e o processo da ciência é mais direto e circunscrito do que no plano baconiano. O próprio Bacon previu o envelhecimento de seu método; a pratica efetiva descobriria melhores meios de investigação do que os que ele poderia arquitetar nos intervalos de suas funções de estadista. “Estas coisas requerem alguns séculos para amadurecerem”.

Até um adorador do espírito de Bacon pode admitir também que o grande Chanceler, enquanto estabelecia as leis da ciência, deixou de emparelhar-se com a ciência de seu tempo. Ele refutou Copérnico e ignorou Kepler e Tycho Brahe; depreciou Gilbert e pareceu desconhecer Harvey. Gostava mais de discorrer do que de investigar; ou talvez não dispusesse de tempo para absorventes pesquisas. Obras tais como as suas de filosofia e ciência ficaram fragmentarias e caóticas até sua morte, cheias de repetições, contradições, projetos ou reduzidas a introduções. Ars longa, vita brevis – a arte é longa e a vida é breve, eis a tragédia de todos os grandes espíritos.

Atribuir a esse homem ocupadíssimo, cuja reconstrução da filosofia foi feita nos intervalos de uma carreira política acidentada e afanosa, as vastas e complexas criações de Shakespeare, é gastar o tempo dos estudiosos com as controvérsias palavrosas de ociosos fazedores de hipóteses. A Shakespeare falta exatamente o que distingue o Lord Chanceler – erudição e filosofia. Shakespeare tem tinturas de muitas ciências, mas profundidade nenhuma; ele fala de todas com eloqüência de um amador. Acredita nas astrologia. “Este imenso país...sobre o qual as estrelas exercem secreto influxo” [*Soneto, XV].Esta sempre a cometer erros que não seria possível ao douto Bacon perpetrar: seu Heitor cita Aristóteles e seu Coriolano alude a Catão; ele supõe que as Lupercais sejam uma montanha e compreende César quase tão ‘profundamente’ como César é compreendido por H.G.Wells. Faz freqüentes referencias aos eu passado e as suas tribulações matrimoniais. Emprega vulgaridades, obscenidades e trocadilhos muito naturais no galante fanfarrão que não pudera libertar-se completamente do brigão de Stratford e do filho de açougueiro que fora dantes, mas difícil de admitir-se no frio e calmo filosofo.

Carlyle chama Shakespeare a maior das celebrações, mas ele era antes a máxima das imaginações e o olhar mais perspicaz. É um inestimável psicólogo, mas não um filosofo: não tem estrutura mental unificada com uma finalidade para a própria vida e para a humanidade. Vive imerso nas preocupações do amor e seus enigmas e só pensa como filósofo, com frases de Montaigne, quando tem o coração despedaçado. Tirante isso, aceita satisfeito o mundo como é, sem se consumir com a visão reconstrutora que enobreceu Platão, Nietzsche e Bacon.

Ora, a grandeza e a fraqueza de Bacon residem unicamente em sua paixão pela unidade, em seu desejo de estudar as asas de gênio coordenador sobre cem ciências. Ele aspirava a ser como Platão “um homem de gênio sublime que encaresse tudo como do vértice de um rochedo elevado”. Sentiu-se esmagado ao peso das tarefas que empreendera; perdoavelmente deixou de realizá-las por serem excessivas. Não pode pisar na Terra da Promissão da ciência, mas, consoante o exprimiu o epitáfio de Cowley, pode ao menos, avizinhando-se de suas fronteiras, ver-lhe surgir, a distancia, a bela imagem.

Não diminui o valor de suas realizações a circunstancia de terem sido indiretas. Mau grado sejam pouco lidas hoje, suas obras filosóficas “moveram as inteligências que moviam o mundo” [*Macaulay, pág. 491]. Ele fez-se eloqüente porta-voz do otimismo e o arrojo do realizador da Renascença. Nunca foi homem algum tão grande estimulo para outros pensadores. O rei Jaime recusou, é certo, anuir a sua sugestão de ampara a ciência sobre o Novum Organum que “semelhava o descanso de Deus, que ultrapassava toda a compreensão”. Mas homens melhores, em 1662, fundando aquela Sociedade Real que ia tornar-se a maior corporação de sábios do mundo, proclamaram Bacon seu modelo e inspirador; eles esperavam que essa sociedade inglesa de pesquisas cientificas servisse de ponto de partida para o surto da grande associação européia que o Progresso da Ciência lhe fizera desejar. E quando os grandes espíritos do racionalismo francês realizaram o magistral empreendimento intelectual, a Encyclopédie, dedicaram-na a Francis Bacon. “Se conseguimos tem bom êxito”, disse Diderot no prefacio, “devemo-lo em sua maior parte ao Chanceler Bacon, que formulou o plano de um dicionário universal das ciências e artes em um tempo em que, por assim dizer, não existiam artes  nem ciências. Quando era impossível aquele extraordinário gênio escrever uma historia do que se conhecia, compôs uma daquilo que era necessário conhecer". D’Alembert chamou Bacon “o maior, o mais universal e o mais eloqüente dos filósofos”. A Convenção publicou as obras de Bacon a custa da nação. [*Nichol, II,235]. Em todo o seu teor e evolução o pensamento inglês tem seguido a filosofia de Bacon. Sua tendência a conceber o mundo com o mecanismo de Demócrito forneceu a Hobbes, seu secretario, o ponto de partida para um materialismo completo; seu método indutivo proporcionou a Locke a idéia de uma psicologia empírica, adstrita a observação e emancipada da teologia e da metafísica; e seu encarecimento do ‘comodo’ e do ‘proveitos’ encontra-se formulado na identificação do bem e do útil, de Bentham.

Toda vez em que o espírito de exame sobrepujou o espírito de aceitação, fez-se sentir o influxo de Bacon. Ele é a voz de todos os europeus que transformaram o continente, de uma floresta em uma terra de tesouros de artes e ciências, e fizeram de sua pequena península o centro do mundo. “Os homens não são animais eretos”, disse Bacon, “e sim deuses mortais”. “O Criador deu-nos almas iguais a todos nós no mundo e, apesar disso, não saciáveis nem com um mundo”. Tudo é possível ao homem. O mundo é ainda novo; dêem-nos uns poucos de séculos, que dominaremos e refaremos todas as coisas. Talvez aprendamos afinal a mais nobre das lições, isto é, que o homem não deve lutar contra o homem e sim combater unicamente os obstáculos que a natureza apresenta ao triunfo humano.

Escreve Bacon em um de seus mais belos trechos: “Não devemos esquecer de distinguir três espécies de homens, que são como graus da ambição humana. A primeira é a dos homens que desejam estender o seu poder no próprio país natal – espécie esta vulgar e de natureza inferior. A segunda é a dos homens que se esforçam por ampliar o poderio de seu país e dar-lhe a supremacia; isto já é certamente mais nobre, mas não menos indicativo de cobiça. Mas se algum homem empreendedor, estabelecer e estender o poder e a dominação da espécie humana sobre o universo, sua ambição será sem duvida mais elevada e mais nobre do que as outras duas”. [*Nov. Org., 1.129]. Foi o destino de Bacon ser dilacerado por estas ambições hostis que se disputavam em sua alma.

EPÍLOGO
“Os homens em lugares preeminentes são três vezes servos: servos do soberanos ou do país, servos da opinião publica e servos dos negócios; por isso não tem a liberdade de dispor de suas pessoas, ou deus amos, ou de seu tempo...Conseguir galgar altas posições é coisa laboriosa; por meio de tribulações o homem chega a tribulações maiores; isto exige baixeza, algumas vezes, e por meio de indignidades são atingidas as dignidades. O chão é escorregadio para se ficar de pé e escorregar será uma queda ou, pelo menos, um eclipse” [*Ensaios Sobre os Lugares Eminentes]. Que melancólico resumo do epílogo de Bacon!

“Os defeitos de um homem”, disse Goethe, “são tomados de sua época; suas virtudes e grandezas deve-as ele a si próprio”. Figura-se isto um pouco desairoso para o Zeitgeist, mas é excepcionalmente exato no caso de Bacon. Depois de uma meticulosa analise da moral dominante na corte de Elizabeth, Abbott [*Francis Bacon, cap.1] conclui que todas as figuras principais, de homens e mulheres eram discípulos de Machiavel. Roger Ascham reuniu em versos livres as quatro virtudes requeridas na corte da rainha:

*Enganar, bajular, mentir e fingir – são os meios de conquistar na corte as boas graças dos homens. Se não te escravizares a nada disto, foge, bom Piers! Vai para casa, John Cheese!

Estava em uso, pela leviandade daqueles tempos, receberem os juizes dádivas das pessoas que tinham querelas em seus tribunais. Bacon a este respeito não se achava acima de sua época; e sua tendência a gastar adiantadamente os rendimentos de alguns anos, coibia-lhe o luxo de ter escrúpulos. Isto poderia passar despercebido, se não fossem os inimigos que arranjara com o processo do conde de Essex e sua facilidade em golpear os adversários discursando. Um amigo avisara-o de que “andava de boca em boca na corte que...assim como na sua língua os navalhava, as deles iam fazer o mesmo a seu respeito” [*Francis Bacon, pág.13, nota]. Mas Bacon não dera atenção ao aviso. Parecia estar nas boas graças do rei, que o fizera barão Verulan de Verulan em 1618 e visconde de S.Albano em 1621; e durante três anos fora Lord Chanceler.

Mas repentinamente sobreveio o golpe. Em 1621 um demandista descontente acusou-o de receber dinheiro para sentenciar numa causa, a favor de seu contrário. Não era coisa extraordinária, mas Bacon imediatamente compreendeu que se seus inimigos explorassem o caso, lhe provocariam a queda. Retirou-se para casa e esperou os acontecimentos. Quando soube que todos os seus adversários lhe reclamavam a demissão, formulou o pedido em sua “confissão e ato de humildade e submissão” ao rei. Cedendo a pressão do novo Parlamento vitorioso contra o qual Bacon com excessivo ardor o defendera, Jaime mandou-o para a Torre. Mas Bacon foi solto dois dias depois e perdoada pelo rei a pesada multa que o condenaram a pagar. Seu orgulho não se abateu completamente. “Eu era o juiz mais justo que houve na Inglaterra nestes últimos cinqüenta anos” disse ele; “mas essa foi a mais justa decisão do Parlamento nestes últimos duzentos anos”.

Bacon passou seus cinco anos restantes de vida na obscuridade e na paz de sua casa, afligido por uma pobreza a que não se achava afeito, mas encontrando alivio no prosseguir ativamente em seus trabalhos de filosofia. Nesses cinco anos escreveu sua maior obra latina, De Augmentis Scientiarum, publicou uma edição aumentada dos Ensaios, um fragmento intitulado Sylva Sylvarum e uma Historia de Henrique VII. Lastimava não ter abandonado há mais tempo a política e dedicado todas as suas horas as letras e as ciências. Até os últimos dias deu-se ao trabalho e morreu, para assim dizer, no campo de batalha. Em seu ensaio “Sobre a Morte” exprimiu o desejo de morrer “na febre do trabalho, que é como o sangue quente a manar de uma ferida, mal deixando sentir a dor do golpe”. Bem como o de César, foi cumprido o seu desejo.

Quando viajava, em março de 1626, de Londres para Highgate, a revolver no espírito a questão de quanto tempo se preservaria a carne protegida pela neve, decidiu fazer uma experiência. Parando em uma chácara comprou uma ave, matou-a e recheou-a de neve. Logo depois era acometido de arrepios. Sentindo-se mal, voltou a cavalo para a cidade, recomendou que o levassem para a casa vizinha de Lord Arundel, onde ficou de cama. Mas ainda não renunciara a vida; escreveu satisfeito, que “a experiência...dera ótimo resultado”. Foi seu ultimo trabalho. A atividade febril de sua vida agitada, consumira-lhe completamente as forças. Fraco em excesso, seu organismo não poderia lutar com a moléstia que, insidiosa e lenta, lhe invadira o coração. Morreu a nove de abril de 1626, com sessenta e cinco anos de idade.

Ele escrevera em seu testamento estas palavras orgulhosas e características: “Lego minha alma a Deus...Meu corpo, a terra, onde me sepultarão obscuramente. E meu nome aos séculos vindouros e as nações estrangeiras”.

Os séculos e as nações aceitaram o legado.
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G.R.         

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