Não é de hoje que se questiona o poder coercitivo que as ciências que lidam com a saúde mental podem exercer. Às vezes o patrulhamento se dá de forma velada, conforme podemos constatar em inúmeros exemplos de casos citados por autores como Thomas Szasz. Mas também ocorre de forma explicita, brutal, cerceando a liberdade de ser do individuo. Como exemplo, temos a psiquiatria da antiga União Soviética. O depoimento do psiquiatra ucraniano Semyon Gluzman reafirma a necessidade de estarmos constantemente atentos aos abusos perpetrados em nome de ideologias.
Durante os anos 70, Gluzman foi preso como agitador anti-sociético e condenado a trabalhar por dez anos em uma madereira na Sibéria, onde recebia uma alimentação à base de larvas. Foi condenado por ter protestado contra a utilização abusiva da psiquiatria na avaliação de dissidentes políticos, declarados mentalmente doentes e, portanto, confinados a instituições mentais e campos de trabalhos forçados por tempo indeterminado.
A sua estória, porém, começou bem antes de seu nascimento, com o advento da psiquiatria soviética. Desde o seu início, os psiquiatras podiam tolher a liberdade das pessoas, declarando-as mentalmente insanas. Embora tenha sido durante a era de Stálin que a psiquiatria soviética realmente se especializou nesta repressão, um dos casos mais famosos aconteceu um século antes da implantação do stalinismo. No início do século 19, Pyotr Chaadayev publicou uma critica ao czar Nicolau I. O próprio czar o declarou insano, sentenciando Chaadayev a um ano de prisão domiciliar e “cuidados médicos gratuitos”.
Mas foi nos anos 30 que a psiquiatria soviética adquiriu os contornos dos abusos sistemáticos tão bem conhecidos hoje em dia. Criaram-se os hospitais psiquiátricos especiais, sendo um dos mais famosos o Instituto de Psiquiatria Forense de Serbski, na Rua Kropotkin, em Moscou. Fundado em 1921, esse instituto utilizou tratamentos relativamente humanos até 1948. A partir daquele ano, sob o comando do psiquiatra e membro do partido comunista Daniil Romanovich Lunts, os procedimentos foram modificados e perduraram por mais de 30 anos. Durante esse período, Lunts atestou a insanidade de mais de mil dissidentes políticos.
Em seu depoimento, Gluzman diz:”Eu tinha 7 anos de idade quando Stalin morreu. Para a minha família, esse dia foi um feriado secreto. Todos choravam por que o “pai” Stálin estava morto,mas meus pais permaneceram em casa. Ficaram sentados à mesa e, a cada cinco minutos, diziam:’Por que só agora? Por que não antes?’ Eles me criaram para ser antitotalitário, mas me avisaram para manter isso em segredo. Tinham medo. Não queriam que eu terminasse na prisão”.
Em seu segundo dia no Instituto Médico de Klev, Gluzman encontrou um professor que mudou sua vida. Passou-lhe o conceito de uma psiquiatria preocupada não apenas com estudos clínicos, mas com uma busca de caráter ético.Em 1971, decepcionou-se com a profissão escolhida ao ver um colega sujeitar um adolescente rebelde a injeções de sufazina,droga que mantém os pacientes dóceis através de febres altas e dores intensas. O tratamento dispensado ao adolescente durou quatro dias, febres acima de 40º. Sempre que sua febre caia, a enfermeira lhe administrava outra injeção, caracterizando um verdadeiro quadro de tortura.
Embora inda não tivesse se tornado um dissidente de fato, Gluzman passou a ouvir as transmissões radiofônicas da Voz da América, através da qual tomou conhecimento dos abusos perpetrados contra pessoas sãs que se indispunham contra o governo. O caso melhor documentado se referia ao general Pyotr Grigorievich Grigorenko, que caira em desgraça por questionar publicamente a situação dos direitos humanos de organizações anti-stalinistas. Grigorenko foi condenado a um tratamento compulsório no Hospital Psiquiátrico Especial, em Chernyakhovsk, na região de Kaliningrado, por tempo indeterminado.
Após pesquisarem durante um ano, Gluzman e um colega coletaram uma série de evidências através de publicações não-oficiais. Contudo, foi apenas em março de 72 que se viu “promovido” de simples médico a dissidente do governo soviético. Crto dia, às 6 horas da manhã, seis homens da KGB invadiram seu apartamento e o reviraram durante horas. Embora sua mãe estivesse se recuperando de um ataque cardíaco, revistaram a cama, gavetas, lustres, escaninhos, enquanto ele e seu pai aguardavam com resignação o inevitável. Como se fora uma premonição, dias antes havia retirado do apartamento todos os samisdat – documentos proibidos, artigos e livros como os de Soljenitsin, bem como o dossiê referente a Grigorenko.
Gluzman foi levado a um dos escritórios da KGB e interrogado sobre seus estudos, documentação e amigos dissidentes. Foi acusado de manter correspondência com um americano chamado Ralph Makarov, ocasião em que começou a ser seguido. Depois de puxar pela memória, Gluzman lembrou-se de que sete anos antes, quando tinha 20 anos, havia encontrado um grupo de turistas estrangeiros durante as férias que passava com amigos. Um dos turistas era Makarov, que lhe pediu os endereços para se corresponderem no futuro. Amedrontados, todos se recusaram a fornecer seus endereços, com exceção de Gluzman, que se sentiu constrangido em não-fazê-lo. A seguir, esqueceu-se do fato, mas a KGB não.
Após o interrogatório foi liberado por não terem sido encontradas evidencias suficientes. Quando estava saindo da sala, ouviu o encarregado das investigações dizer a seus auxiliares: “Não se preocupem, daqui a pouco o pegaremos novamente”. Exatamente dois meses depois, Gluzman foi detido num ponto de ônibus, a caminho de seu trabalho. Pressentiu que aquele era um momento decisivo e que sua vida nunca mais seria a mesma. Foi levado a julgamento secreto em outubro daquele ano, acusado de agitação e propaganda anti-soviética, embora as denúncias de Grigorenko jamais tenham sido citadas no tribunal. Esse material poderia trazer problemas às autoridades soviéticas.
Tanto informantes como alguns de seus amigos testemunharam contra ele, afirmando que havia declarado não existirem direitos humanos na URSS,que o anti-semitismo era evidente, que os dissidentes eram enviados a campos de concentração políticos que a repressão da Primavera de Praga, em 1968, havia sido um erro. Embora magoado, Gluzman desculpou os amigos que testemunharam contra ele, alegando que estavam com medo e que, no fim das contas, se considerava mais feliz do que eles. Um psiquiatra, grande amigo seu, suicidou-se após uma bebedeira seguida ao depoimento.
Gluzman foi condenado a sete anos de trabalhos forçados, seguidos de três anos de exílio na Sibéria. Conversou por alguns momentos com seus pais, que não encontrava havia mais de sete meses, e foi enviado a Mordovia, campo de prisioneiros nos Montes Urais. Durante os dez anos que lá passou, conseguiu escrever um Manual de Psiquiatria para Dissidentes, em parceria com Vladimir Bukovsky, seu colega e também prisioneiro. Retornou a Kiev em 1982, após uma década de exílio. Como não tinha permissão para trabalhar como psiquiatra, passou a fazer atendimento pediátrico.
Vivendo hoje em dia em Nova Orleans[EUA], Gluzman deixou para trás aquele longo período de pesadelo. A psiquiatria dos países e nações do antigo regime soviético se vê agora confrontada com as transformações ocorridas – deixando de ser um instrumento de repressão paa se tornar uma verdadeira disciplina médica.
Passaram-se mais de dez anos desde que Gluzman foi lbertado, mas muito da velha psiquiatria ainda permanece. Georgii Morozov, ex-diretor do infame Instituto Serbski de Moscou, por exemplo, ainda mantém o títulohonorário de diretor, continuando a ser prestigiado não apenas pelos militares como pelo ministro da Saúde. Entre suas vitimas estão Valdimir Bukovsky e o generak Grigorenko.
Além desses, outros dissidentes notáveis foram dignosticados por Morozov como portadores de “esquizofrenia”, estado no qual mantinham “idéias delirantes de perseguição e de que eram grandes reformadores. Neste estado”, segundo ele, “os pacientes podem às vezes desempenhar papel dos chamados profetas patológicos e idealistas morbidamente apaixonados por suas ilusões, exercendo certa influencia sobre indivíduos mentamente sãos que, não sendo especialistas, não conseguem avaliar corretamente a condição de doença mental do indivíduo”.
[Texto da AITA – Associação Internacional de Terapias Avançadas]
2 de dez. de 2009
A PSIQUIATRIA COMO INSTRUMENTO DA IDEOLOGIA
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