2 de jul. de 2011

Henri Bergson_Evolução Criadora

Com esta nova orientação a evolução nos aparece como algo diferente do cego mecanismo de luta e destruição que Darwin e Spencer descreveram.  Nós sentimos a duração da evolução, o acumulo do poder vital, a inventiva da vida e do espírito, a “continua elaboração do absolutamente novo”. Estamos preparados para entender porque os mais recentes e hábeis investigadores, como Jennings e Maupas, rejeitam a teoria mecânica da conduta protozoária e porque o professor E.B. Wilson, decano dos citologistas modernos, conclui em seu livro sobre a célula com a declaração de que o “estudo das células tem, no todo, alargado antes que estreitado o enorme lapso que separa do mundo inorgânico ainda as mais baixas formas de vida”. E em toda parte, nos campos da biologia, referve a rebelião contra Darwin.

Darwinismo significa, presumivelmente, a origem de novos órgãos e funções, novos organismos e espécies, pela seleção natural de variações favoráveis. Mas esta concepção apenas com meio século já anda roída de dificuldades.

Como se originam nela os instintos?

Seria conveniente concebê-los como acumulações herdadas de hábitos adquiridos; mas a opinião dos especialistas nos fecha na cara esta porta – embora algum dia venha a ser reaberta. Se apenas as qualidades congênitas são transmissíveis, cada instinto deve ter sido, ao aparecer, tão forte como é agora; deve ter nascido por assim dizer adulto; do contrário não teria favorecido o seu possuidor na luta pela existência. Se nesse primeiro surto fosse ele fraco, a sobrevivência só poderia realizar-se por meio daquela força adquirida que [na hipótese em causa] não é herdada. Cada origem é aqui um milagre.

E o que se daria com os primeiros instintos se daria também com a variação. No caso de órgãos tão complexos como os olhos a dificuldade cresce: ou o olho apareceu imediatamente como hoje é [coisa equivalente a Jonas engolido pela baleia]; ou começou com uma série de variações “fortuitas” que, por uma sobrevivência ainda mais fortuita, deram em resultado o olho atual. A cada passo a teoria da produção mecânica das estruturas complicadas por meio de um processo cego de variação e seleção se nos apresenta como mais difícil de crer.

A mais decisiva dificuldade, todavia, é a aparição de efeitos similares determinados por meios diferentes nas varias linhas divergentes da evolução. Tome-se como exemplo o sexo como modo de reprodução, tanto das plantas como dos animais; temos aqui linhas de evolução tão divergentes quanto possível e, todavia, o mesmo complexo ‘acidente’ ocorre nas plantas e nos animais. Ou tome-se o órgão da vista em duas formas de vida distintas – nos moluscos e nos vertebrados; “como poderiam as mesmas pequenas variações; incalculáveis em numero, ter ocorrido  na mesma ordem em duas linhas independentes de evolução, se são elas acidentais? Mais notável ainda,

*A natureza chega a resultados idênticos em espécies vizinhas por processos embriogenicos totalmente diversos...A retina dos vertebrados é produzida pela expansão do cérebro rudimentar do embrião...Nos moluscos, ao contrario, a retina é derivada diretamente do ectoderma[Os órgãos do embrião formam-se de uma ou outra de três camadade tecidos: externa, ou ectoderma; a imediata, ou mesoderma; e a interna, ou endoderma]...Se o cristalino de um tritão é removido, o íris logo o regenera. Na salamandra maculata, se o cristalino é removido e o íris deixado, a regeneração se dá na parte superior do íris; mas se esta parte superior é suprimida, a regeneração se dá na parte inferior, ou na camada retinal da região remanescente. Assim, partes diferentemente constituídas e adequadas a funções diferentes, são capazes de realizar as mesmas operações, inclusive refazer partes da maquina.

Assim na amnésia e na afasia; as memórias ‘perdidas’ e as funções reaparecem nos tecidos regenerados ou substituídos [Matéria e Memória]. Seguramente temos aqui esmagadora evidencia de que há algo mais na evolução do que simples mecanicismo de partes materiais. A vida é mais que maquinaria; é um poder que pode cresce, que pode restaurar-se. Não que haja nenhum desígnio externo determinando essas maravilhas; isso seria apenas um mecanicismo invertido, um fatalismo tão destruidor da iniciativa humana e da evolução criativa como a sombria rendição do pensamento hindu ao calor da Índia. “Devemos colocar-nos além desses dois pontos de vista – mecanicismo e finalismo – com sendo no fundo apenas pontos de vista aos quais o espírito humano tem sido levado pela consideração do trabalho do homem”: pensamos a principio que todas as coisas se moviam em virtude de alguma vontade quase humana que as usava como instrumentos em um jogo cósmico; e então fomos levados a crer que o cosmos em si era maquina porque estávamos dominados, no caráter e na filosofia, pela nossa era mecânica. Há um desígnio nas coisas, mas nelas, não fora; uma entelequia, uma determinação interior de todas as partes para a função e os propósitos do todo.

Vida é o que faz esforço, o que impulsiona para fora;”sempre e sempre a pressão procriante do mundo”. O oposto da inércia e o oposto do acidente; há uma direção no crescimento para a qual é impelido. Contra esse movimento há a tendência das coisas para a parada, o repouso, a morte; em cada estágio a vida tem de lutar contra a inércia do seu veiculo; e se conquista ou domina a morte por meio da reprodução, consegue-o unicamente cedendo uma a uma cada cidadela – abandonando o individuo corporal a inércia e a decomposição. Parar é desafiar a matéria e suas ‘leis’: ao passo que mover-se, ir para a frente em vez de esperar a moda das plantas, é uma vitória comprada a cada momento a custo do esforço e do cansaço. E a consciência escorrega, sempre que lhe é permitido, no reconfortante automatismo do instinto – hábito e sono.

No começo a vida é quase tão inerte quanto a matéria; assume uma forma estacionária, como se o impulso vital fosse muito fraco para arriscar a aventura do movimento. E em uma grande avenida de desenvolvimento esta imóvel estabilidade há sido o alvo da vida: o lírio reclinado na sua haste e a carvalheira imponente constituem altares aos deus Segurança. Mas a vida não se contentou com esse ficarem em casa da existência da planta; seus avanços tem sido sempre para além da segurança, rumo à liberdade; para além das carapaças, escamas e couro e outros incômodos escudos protetores, rumo a fácil e perigosa liberdade dos pássaros. “Assim, o pesado holipta foi suplantado pelo legionário; o cavaleiro vestido de ferro, pelo infante ligeiro; e de um modo geral, na evolução da vida como na evolução dos grupos sociais e do individuo, as maiores vitórias vão ter aos que aceitaram os maiores riscos”. No corpo do homem cessaram de evolver novos órgãos; em vez disso constrói o homem instrumentos e armas, que põe de lado quando não os necessita, em vez de carregar consigo, precise ou não, como faziam aquelas gigantescas fortalezas vivas, o mastodonte e o megaterio, que perderam seu lugar no mundo justamente por excesso de segurança pesada. A vida pode ser embaraçada, tanto quanto ajudada, pelos seus instrumentos.

O que se dá com os instintos se dá com os órgãos; são eles instrumentos da mentalidade; e como todos os órgãos são ligados ao corpo e permanentes, tornam-se cargas quando o meio-ambiente que os tornou necessários se modifica em sentido reverso. O instinto aparece pronto e dá decisivas respostas – e em geral bem sucedidas – a situações ancestralmente estereotipadas; mas não adapta o organismo a mudanças, não habilita o homem a enfrentar flexivelmente a móbil complexidade da vida moderna. É o veiculo da segurança, ao passo que o intelecto é o órgão da aventurosa liberdade. É a vida sujeitando-se a cega obediência da maquina. 

Quão significativo que usualmente nos riamos quando uma coisa viva se comporta como matéria, como maquinismo; quando o palhaço cai ao apoiar-se contra uma coluna que não existe, ou quando um amigo escorrega e afocinha na neve; a primeira reação nossa é de riso. Aquela vida geométrica que Spinoza quase confundia com a deidade é realmente um motivo para humor e lagrimas; é ridículo e vergonhoso que homens sejam maquinas e que filosofias o possam descrever assim.

A vida tomou três cursos na sua evolução; não, recai no sopor material das plantas e encontra aí a supina segurança que a leva a durar covardemente milhares de anos; noutro, seu espírito e esforço se congela no instinto, como nas formigas e abelhas; finalmente nos vertebrados assume os perigos da liberdade, lança de lado os instintos ‘feitos’ e caminha intrepidamente através da senda cheia de perigos do pensamento.  O instinto ainda permanece do modo mais profundo de visionar a realidade e apanhar a essência do mundo; mas a inteligência se torna cada vez maior e mais intrépida, e mais larga em seu escopo; é por fim na inteligência que a vida coloca os seus interesses e as suas esperanças.

Esta persistente vida criativa, da qual cada individuo e cada espécie é uma experiência, chamamos nós Deus; Deus e Vida são a mesma coisa. Mas este Deus é finito, não onipotente – limitado pela matéria e vencendo penosamente a sua inércia passo a passo; em vez de onisciente, marcha gradual para o conhecimento, para a consciência, para “mais luz”. “Deus assim definido não é nada ‘feito’; é a vida, a ação, a liberdade incessantes. Criação desse modo concebida não é um mistério; experimentamo-la em nós mesmos quando agimos livremente’, quando em consciência escolhemos nossas ações e afeiçoamos nossa vida. Lutas e sofrimentos, ambições e derrotas, e ânsia por sermos melhores e mais fortes são vozes decorrentes do Élan Vital dentro de nós – a pressão, que nos faz crescer e transforma este planeta errante no teatro de uma criação sem fim.

E quem sabe se a vida não vencerá finalmente a grande vitória sobre seu velho inimigo, a matéria, e poderá até iludir a morte? Todas as coisas são possíveis para a vida, quando o tempo é generoso. Considere-se o que a vida e a mente fizeram neste ultimo milênio com as florestas da Europa e da América; e veja-se então que loucura admitir barreiras ao desenvolvimento da vida. “O animal baseia-se na planta, o homem cavalga a animalidade, e a humanidade, no espaço e no tempo, é um exercício imenso galopando dos lados, adiante e atrás de nós, em uma furiosa carga passível de vencer todas as resistências e destruir ainda os mais terríveis obstáculos, como talvez a própria morte”.    

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