A imaginação humana sempre busca algo além do lugar-comum para explicar os ‘porquês’e ‘para quês’ da existência. Coisas sobre nós, descritas da forma como são, nos deixam insatisfeitos. Sabemos que existe mais um grão de areia, por exemplo, do que podemos ver e tocar. Sabemos que ele contém um vestígio do divino – que, nas coisas mais simples, estão verdades fundamentais, que, de alguma forma, ligam essas coisas, e nós, ao Divino.
Portanto, coisas assim no nosso mundo nos oferecem uma grande variedade de especulações. Por exemplo, a cobra vil que se arrasta ondulantemente sobre sua barriga na grama ou nas árvores é uma fonte de fascinação para nós – talvez mais que qualquer outro animal deste mundo.
O que nos fascina tanto nas serpentes?
Será que é o corpo sinuoso semelhante a uma corda, seriam as cores brilhantes, seria o olhar fixo da serpente? Ou seria o conhecimento de que, de alguma forma, essa criatura perturbadora pode, quando não estamos olhando, tomar dimensões amedrontadoras e repentinamente assumir as proporções monstruosas de um dragão, uma enorme serpente que devasta os campos e chamusca todas as coisas vivas e não vivas com seu hálito ígneo?
Mas a cobra tem outros disfarces. Ela pode nos compelir a agir, possivelmente contra nossa vontade, de maneiras muito mais sutis. Vejam que a serpente não precisa sempre nos compelir; ela pode nos seduzir porque, no folclore, ela é um animal de muita inteligência, o que fica evidenciado em seu olhar penetrante. O melhor exemplo de serpente seduzindo o homem é aquele que é bem conhecido de todos. Talvez a ‘queda do homem’ seja a história mais famosa que ouvimos quando crianças, quando várias histórias bíblicas nos foram contadas. Mas, apesar da simplicidade desta história, ela resultou no debate de séculos sobre a natureza basilar dos humanos.
. Será que fomos expulsos para sempre do Jardim do Éden?
. Será que nos desligamos da graça divina?
. Será que podemos tr esperança de algum dia reintegrar o círculo íntimo do Ser Supremo?
Deixe-me relembrar-lhes rapidamente a história contada na Bíblia:
”Ora, os dois estavam nus, o homem e a mulher, e não se envergonhavam.Mas a serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Deus tinha feito. Ela disse à mulher: ‘Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?’
E a mulher respondeu à serpente:’Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse; Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte’.A serpente disse então à mulher: ‘Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal!.
A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe o fruto e comeu. Deu-o também ao seu marido, que com ela estava e ele comeu.
E abriram-se os olhos dos dois...”
E, como conseqüência deste despertar, os humanos perceberam sua separação de toda a criação divina. Não conseguiram permanecer em unidade com todos os outros seres não pensantes. Pelo fato de terem tido um vislumbre da consciência divina, após terem sido persuadidos pela serpente, aparentemente se tornaram uma ameaça a Deus e tiveram que ser expulsos do Jardim do Éden.
Qual foi o instrumento dessa mudança de mentalidade? A serpente – que, você deve ter notado, é descrita como sendo ‘sutil’. Ela também tem uma inteligência que a separa e que a leva também a ser amaldiçoada por Deus. “Porque fizeste isso és maldita entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens; caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida”.
Agora, dever-se-ia perguntar: Por que a cobra foi escolhida para esse papel questionável de levar a humanidade por um caminho descendente e infeliz?
A cobra é uma imagem – um arquétipo – que ocorre em praticamente todas as culturas do mundo e que tem sido venerada em muitos países. Mesmo na Irlanda, onde não existem cobras, grande significado é dado ao fato de São Patrício tê-las expulsado daquela terra.
As cobras fascinam os seres humanos com suas cores, que podem ser muito bonitas, e escamas simétricas; seus olhos penetrantes que não pestanejam; seu deslizar sinuoso e silencioso. Elas são tão diferentes dos outros animais! Embora nós, humanos, sejamos atraídos pelas cobras, também sentimos algum tipo de aversão por elas. Talvez isso tenha a ver com o veneno de algumas delas. Ou talvez seja a sabedoria atribuída a elas – que pode não ser justificada, mas o olhar firme e desconcertante de seus olhos, que lembram as pedras preciosas, pode levar alguém a pensar de forma diferente.
Por isso, a serpente é vista como uma ilustre rival e tentadora da humanidade. Isso é particularmente verdadeiro nos contos folclóricos quando a vil cobra, que se arrasta na poeira, assume a aparência mais incrível do monstruoso dragão que invoca o pavor no mais valente dos homens e desafia muitos heróis como Lancelot, Beowulf, Perseu, São Jorge, o arcanjo Miguel. O dragão é um ilustre rival: sua sabedoria torna sua força e fúria extremamente perigosas, fazendo com que seja ainda mais difícil para todos os animais vencê-lo em combate. Suas garras são tão afiadas que podem estripar um ser humano; seu hálito queima como uma labareda; seu corpo é coberto por escamas tão duras como a mais dura das pedras, capaz de deixar cega a espada mais cortante. No entanto, em sua busca da verdade, o herói precisa perseverar no sentido de destruir este monstro.
FORÇAS IRREPRIMIDAS DA NATUREZA.
É fácil compreender por que a serpente passou a representar as forças irreprimidas da natureza. Em muitas culturas, de fato, a serpente foi associada à criação do mundo, onde as energias informes, fluidas, convulsivas se aglutinaram nas águas dos oceanos. Tais energias primitivas se manifestam, em menor grau, em cada criatura viva que é gerada. Embora esse fluxo de vida seja necessário para a existência, uma pessoa não pode avançar a menos que domestique ou refine tais impulsos internos – de fato, ela precisa ‘matar’ o seu dragão interior.
Essa energia fluída descrita acima pode ser notada em dois importantes símbolos usados nos países ocidentais para denotar cura, pois se acredita que as serpentes têm esse conhecimento. O primeiro é o bastão de ESCULÁPIO – um cajado de madeira com uma serpente enrolada nele. Esculápio foi venerado durante toda a Grécia antiga como o deus da medicina. Foi apresentado em vários mitos na forma de uma serpente e, por isso, este animal foi mantido nos santuários consagrados ao deus. Sacerdotisas virgens que cuidavam das serpentes faziam agouros de saúde e prosperidade – sugerindo uma cura aos sofredores em sonhos ou visões.
O CADUCEU
O outro símbolo antigo, o CADUCEU, está intimamente associado a Mercúrio, que, da mesma forma que ESCULÁPIO, era considerado filho de Apolo, o deus-sol, que freqüentemente tomava a forma de uma serpente divina. O caduceu é mostrado como um bastão e, que se entrelaçam duas serpentes que foram dominadas por Mercúrio e se enrolaram em volta do bastão que tinha sido conferido a ele por Apolo. Esse poder de domesticar naturezas tão conflitantes é fortalecido pelas asas que encimam o bastão, pois elas representam o esplendor daquele que atingiu o equilíbrio e a plenitude, unindo as duas forças opostas.
Esses dois diagramas usados no mundo ocidental refletem conceitos místicos orientais, derivados de uma imagem bem conhecida entre os iogues indianos. Trata-se do ‘Brahmadanda’, ‘o bastão de Brahma’, que indica os três canais da ‘kindalini’ ou ‘fogo serpente’ que se movimenta espinha acima. A ‘Sushumma’ colunar se apresenta entre as duas serpentes opostas espiraladas, de correntes de energia positiva e negativa, que corre por um sistema de centros de força ou ‘chakras’.
Retomando nossa história original relativa à Queda do Homem, vamos notar que novamente temos a coluna, agora na forma da Árvore da Vida, em torno da qual a serpente está enrolada. A árvore simboliza crescimento ascendente, a serpente, uma mudança na consciência que leva à sabedoria. Temos aqui a transformação da serpente.
Mas os Patriarcas da Bíblia viram isso tudo por uma luz diferente. Essa energia primordial da alma, essas energias psíquicas cruas e as potencialidades internas os atemorizaram tanto que eles colocaram a serpente no Jardim do Éden na Árvore como a Tentadora. No entanto, nós místicos sabemos que a essência da serpente não pode ser negada. Esta pe a chave para a sabedoria da serpente – essa mudança em consciência, pois, com o movimento ascendente, nós circulamos por cima, bem como acontece com a energia da ‘kundalini’.
MOVIMENTO ESFÉRICO ESPIRALADO
Mas será que este movimento necessariamente forma um circulo? Não, pois embora o círculo, no pensamento místico, represente a perfeição, podemos dizer mais exatamente que tal movimento não permanece necessariamente em apenas um plano, mas se move esfericamente e assim a evolução acontece em espirais.
Por exemplo, considere o seguinte: todo ano entramos num novo ciclo. Em cada primavera, o crescimento começa e, à medida que o ano avança, acontecem mudanças para marcar modificações na vida. Em escala pequena, cada dia traz pequenas mudanças; e em grande escala, sabemos que cada ciclo de sete anos nos leva a um novo estágio em nossa existência. Pensem em como estamos permanentemente evoluindo, embora tal mudança não seja sempre aparente para nós. Mas é isso que acontece, pois, como Heráclito ensinava muitos séculos atrás, ‘tudo é mudança’. Nada consegue permanecer da mesma forma.
Nessa linha de pensamento, Raymund Andrea, escreveu: “O desenvolvimento esotérico nunca é um avanço cheio de acontecimentos ao longo de uma linha reta. Ele sempre segue em espiral. Voltamos várias vezes aparentemente ao local onde estávamos, mas um pouco mais sábios em cada espiral através de experiências perfeitamente mundanas que impingem-nos a verdade da vida. Cabe ao aspirante alcançar tudo o que pode em cada espiral do caminho”.
A espiral também pode produzir experiências muito mais extraordinárias. Certamente virá o dia em que estaremos num lugar onde não estivemos por muitos anos. Talvez escutemos um som esquecido há muito tempo, talvez sintamos um odor há muito esquecido, ou vejamos alguma coisa que já esteja esquecida há muito tempo. E um significado avassalador estará ligado a essa experiência. Não pode ser explicado. Está além de qualquer explicação. Ondas de emoção ascendentes brotam do cerne do nosso ser e nos inundam completamente. De repente, percebemos. “Sim, eu já estive aqui antes, já encontrei essa pessoa antes. Mas estou diferente, e todas essas outras coisas também estão diferentes.”
Tomados por uma emoção nostálgica, percebemos a beleza e a dor da mudança. Mas sabemos que deve ser assim, pois toda a criação tende à transformação. Nisso existe sabedoria, pois o homem, pelo fato de estar separado de Deus, pode observar e maravilhar-se com a criação e a mudança divinas. Dessa forma, compartilhando da sabedoria de Deus, nossas realizações fortalecem toda a criação e fazem com que tudo se aproxime da perfeição. Portanto, temos mais é que agradecer à vil serpente por nos separar da divindade para que possamos crescer e partilhar da sabedoria Divina.
Para concluir, gostaria de invocar uma última imagem da cobra – uma dentre tantas. Trata-se do OROBOROS dos antigos gnósticos e alquimistas. Na forma de um grande circulo, esta serpente é mostrada mordendo sua própria cauda. Seu corpo é representado em duas cores, refletindo luzes e trevas, significando para o místico que o mundo material é bom e mau, perfeição e imperfeição, mas tudo interligado formando uma só coisa. Este pensamento é enfatizado pelas palavras que o corpo da serpente envolve: “Um é tudo”. Entre os gnósticos, o Oroboros era a serpente do paraíso que plantou na humanidade um desejo pelo conhecimento. Por isso, achava-s que ela era boa justamente pelo fato de orientar os seres humanos para o conhecimento, apesar de todos os obstáculos. Para nós, atualmente, esta serpente poderosa permanece como um forte símbolo da vida que cada um de nós precisa seguir. Pois para aprender sobre as verdades da existência em todos os níveis – desde o que é aparentemente mais trivial até o que é mais universal – temos que nos libertar de todos os nosso grilhões para permitir que nossa consciência assuma um movimento espiralado ascendente para reinos mais elevados e cósmicos.
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[Texto de Richard Majka]
8 de mai. de 2010
Serpentes e Espirais
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