Qual é o ingrediente mágico de nossa vida que nos faz sentir ‘ligados?’ Como podemos encontrá-lo? Ontem eu antecipei um dia deprimente, a despeito do Sol. Meu humor inarmônico foi intensificado pela agitação dos bazares de rua. Caminhei na pesada atmosfera da multidão, limpando a garganta algumas vezes, na esperança de limpar minha mente de seu estado grogue de ensolarada confusão, em que nada combinava, se ajustava, ou se harmonizava.
Logo me vi encalhada num grupo diante de uma barraca de plumas. Leves como um fluido sutil, delicadas e suaves, as plumas me aliviaram. Respirei profundamente, e para fora esvoaçaram as plumas da minha cabeça. Minha visão limpou. Peguei um prendedor de pluma e o enfiei no meu cabelo. O prendedor e o cabelo eram castanhos, bronzeados, e dourados nas extremidades. Senti o começo de uma ligação dinâmica, uma dança de volta à vida.
Como tinha mudado o meu humor? Que nome podemos dar ao evento fugaz que causara a mudança? Nos campos de filosofia, ciência física, saúde holística, psicologia e dança, há um consenso de que esse fenômeno é denominado “fluxo, um processo de movimento mental, emocional ou físico, básico para todas as atividades completadas com êxito.”
Cinco dançarinos, como algas marinhas delicadamente enroscadas, na beira do oceano e movendo-se com a maré, elevando-se juntas. Corpos quentes, e a respiração; costas roçadas, um braço na cintura, que se vai depois para se unir a uma outra mão. Coerção capitulada a um oceano existencial e, para além da fronteira do espaço dos dançarinos, tudo o mais vai desaparecendo.
Isso é fluxo, em dança improvisacional bem-sucedida.Escreve o psicólogo Dr. Mihaly Csikszentmihaly, no número de junho de 1976 de ‘Psicologia Hoje’: “quando estamos completamente imersos no que estamos fazendo e perdemos o senso de ego e de tempo, estamos num estado de ‘fluxo’. A pessoa ganha uma consciência intensificada de seu envolvimento físico com a atividade, e seu gozo é enormemente reforçado”. Transferimos a ação de um campo cerebral para um lugar físico de total absorção.
O Dr. Csikszentmihalyi entrevistou 125 pessoas em várias atividades e constatou que a maior recompensa era o estado alterado de ser que ocorria quando elas mais estavam gostando da atividade – aquele estado alterado de ‘fluxo’. Um alpinista disse: ”você fica tão envolvido no que está fazendo que não pensa em si mesmo como algo à parte do ato imediato”.
O FLUXO DA VIDA:
Em seu livro, ‘Dança Moderna’, Gay Cheney e Janet Strader apresentam dicas para se fazer dança improvisacional, que lembram muito as descobertas do Dr. Csikszentmihalyi a respeito do fluxo. Por exemplo, ele verificou que as pessoas que estão em fluxo vivem uma intensa focalização da atenção na atividade, de modo que a concentração se torna progressivamente intensa e automática. “O jogo é uma luta, mas a concentração é como respirar - você nunca pensa nela”, disse um exímio jogador de xadrez. Cheney e Strader dizem que os dançarinos ficam totalmente “dentro” da dança. “Dentro” é um estado em que todas as considerações externas, inclusive de tempo, são menos importantes do que a improvisação. A pessoa não está preocupada com sua aparência ou com o que vem depois. Como na concentração do jogador de xadrez, “você nunca pensa nela”.
Como não há senso de ego no fluxo, segundo o Dr. Csikszentmihalyi, um jogador de tênis nãopergunta, “será que estou indo bem?” Se o momento é dividido, de sorte que o jogador percebe sua ação de fora, então o fluxo cessa. Analogamente, se uma dançarina sai daquele estado de “dentro”, perde seu fluxo. Para conseguir e m anter o estado de “dentro”, Cheney e Strader sugerem a focalização num outro ponto [ nomovimento, no ritmo, ou em coisas tangíveis como uma barra para exercício de dança].
Um outro fator no fluxo é a clareza da resposta que o indivíduo obtém da atividade, o senso interno de correção. Mas ele não se detém para avaliar isso. Um jogador de basquete disse numa entrevista que, se ele tinha um grande jogo, só percebia isto depois que o jogo terminava. Analogamente, enquanto o corpo e a mente da pessoa não funcionam juntos no mesmo instante, ela permanece mentalmente na periferia da dança. Não há senso de correção ou centralidade. A pessoa está apenas observando e não fluindo.
Não deve ser inferido que, nessa condição, há um abandono do controle, pelo contrário, o participante vive um alto senso de controle. O jogador de xadrez diz, “embora eu não tenha consciência de coisas específicas, tenho um sentimento geral de bem-estar e estou em total controle do meu mundo”. Fluir em dança cria na pessoa um fantástico senso de autoconfiança, autocontrole, em uma poderosa ligação com o fluxo da vida. Cheney e Strader comentam: “um dos importantes resultados da improvisação de dança bem-sucedida é o desenvolvimento de sua sensibilidade – ao tempo, ao espaço, à energia, e a outras pessoas”. Acima de tudo, a pessoa desenvolve sensibilidade para com ela própria. Finalmente, um dançarino de rock disse ao Dr. Csikszentmihalyi:” se eu tenho espaço suficiente, sinto que irradio energia para a atmosfera. Eu me torno uno com a atmosfera”.
TORNE-SE UNO COM A MÚSICA:
Na dança, meu estado pessoal mais elevado ocorre quando eu me torno uma com a música. Então, através do fluxo, EU SOU a música. A primeira vez que esse espantoso fenômeno aconteceu, eu estava dançando sozinha em casa, ao som de blues. Descontraída, eu podia escutar com uma intensidade que me tornava absorta nos sons. Pressões externas e considerações quanto a outro tempo e espaço, desapareceram. Eu dancei totalmente centrada, mente e corpo, dentro da música.
Deu-se então o segundo passo para eu me tornar a música. Perdi a consciência do meu Corpo como uma entidade à parte que reagia à musica em termos de pés, mãos, e quadris movendo-se com pequenos vácuos de tempo entre ouvir e o movimento, para assimilar a dança à música. Em lugar disso, houve um acontecimento simultâneo: a presença da música e minha reação a ela na movimentação do corpo existiam ao mesmo tempo, juntas. Eu acreditava que não havia a menor brecha de tempo ou espaço cortando essa corrente existencial. No entanto, mesmo nesse ponto do processo eu tinha uma consciência profunda de que meu corpo continuava controlando o movimento; não um conhecimento intelectual [eu não pensava nisso], mas antes uma consciência intuitiva. Embora eu me sentisse extremamente centrada, as três entidades, música, movimento e corpo, continuavam separadas, com o corpo no comando. Portanto, pensando melhor, havia sim brechas imperceptíveis.
Aconteceu então uma coisa espantosa. Eu avancei um pouco mais e a experiência se concretizou. De súbito vi mentalmente formas e linhas criadas pela presença da música. Por certo não eram formas físicas. Não estavam apoiadas sobre o solo ou dispostas no sofá. Não obstante, eram reais. E eu ‘era’ aquelas formas, no sentido de que meu corpo, enquanto dançava, ia assumindo as mesmas. Eu era o fino e ondulante canto d uma flauta, o tom cheio e pressagioso de uma batida de tambor.
Nesse ponto do processo de fluir, minha mente não dirigia o movimento do meu corpo. As três entidades de música, pessoa e movimento estavam, verdadeiramente, afinal unidas, cada qual assumindo igual responsabilidade pela ação. Instantaneamente os sons musicais tornaram-se formas e minha mente observava deleitada, como um espectador interessado, meu corpo recriando as formas. ‘Eu tinha me tornando a música’.
Não sou a única dançarina que sentiu isso. No livro, ‘A experiência da Dança’, de Myron Nadel, já a seguinte citação de Alexander Sakharoff: ”nós, Clotilde Sakharoff e eu, não dançamos ao som da música, ou com acompanhamento musical; nós dançamos ‘a música’. E acrescenta ele que Isadora Duncan lhe ensinara isso – “para Isadora, não havia música de dança, e sim música pura executada como dança”.
TRANSCENDENDO O ESTADO MENTE-CORPO
Em seu livro sobre bio-retro alimentação, ‘Nova Mente,Novo Corpo’, a cientista Bárbara Brown discute as possibilidades futurísticas de se traduzir a atividades das ondas cerebrais em música e arte. “Alguns laboratórios, inclusive o meu”, diz ela, “já desenvolveram formas primitivas de biomúsica. A idéia de transformar sinais biológicos em formas musicais ou artísticas esteticamente aceitáveis parece oferecer, teoricamente, novos e excitantes tipos de terapias. A música e/ou a arte produzidas pelas funções da mente e do corpo e fielmente traduzidas, não apenas representam o ser da pessoa, mas ‘são’ literalmente o ser da pessoa”.
Essa declaração da Senhora Brown, comprova minha descoberta de que a essência da pessoa pode mudar de um estado mente-corpo para um estado musical. Eu não criei a música originalmente, como ela argumenta. Transformei sons externos já existentes [a música] em estados mentais que meu corpo traduziu para formas em movimento. Inverti o processo ou suplementei o ciclo. Mas, independentemente da direção da energia elétrica do fluxo, estou convencida de que quando entramos totalmente no processo de tipo meditativo do fluxo, alguns de nós, dançarinos, podemos nos tornar a música e realmente o fazemos.
Ampliando a idéia do fluxo de modo a incluir a saúde holística, Manocher Moviai, Diretor do Centro Breema Shiatsu de Albany, Califórnia, orienta-nos no sentido de ‘seguir o fluxo’. As técnicas de cura que ele ensina sustentam que somos o Universo por natureza; que as leis que regem o Universo podem ser aplicadas a nós e que, se trabalhamos com essas leis, aceitando o que existe e usando esses elementos, entramos em equilíbrio com a natureza. Moviai acrescenta: “quando estamos em equilíbrio com a natureza ‘fluímos’, e estamos bem”. Quando lhe perguntam como Hara, a força ou energia vital do corpo, é controlada de modo a entrarmos nesse fluxo, ele responde com um paradoxo: ‘Hara é o ponto inicial e terminal de todos os caminhos da energia, mas nem todo caminho tem um começo e um fim”.
Embora essa observação seja metafísica,as aulas do Sr. Moviai, são práticas, porque tratam da maneira correta de respirar, acentuando os aspectos positivos de nossa vida para conseguirmos o fluxo. “Quando estivermos nele, não faremos as perguntas”, diz ele, “pois, quando estamos em fluxo, nenhuma parte de nós fica do lado de fora olhando para dentro e fazendo perguntas, que não são então necessárias”. Segundo o Sr. Moviai, começamos com a vitalidade que realmente temos; usamos a substância que de fato possuímos. Sintonizamo-nos com nós mesmos. Como na dança improvisacional, passamos para “dentro” e nos sentimos realizados.
Um enfoque filosófico do fluxo é apresentado por John Dewey, quando ele fala de “ter uma experiência”, em seu livro, ‘A Arte como Experiência’. Diz ele: “na experiência real, que é uma situação completa em si mesma, que se destaca do que veio antes e do que se segue, cada parte sucessiva flui livremente, sem costura e sem hiatos, para aquilo que resulta. Devido a essa contínua interfusão, não há buracos, junções mecânicas, nem centros mortos”. Para Dewey ter “uma experiência” é “influir”.
E ele prossegue dizendo que, na verdadeira experiência, diferentes atos, episódios e ocorrências, fundem-se num unidade. “Colhe-se a impressão de que há primeiro duas entidades independentes e já prontas, que são então manipuladas de modo a dar origem a uma terceira”. [Como acontece na dança improvisacional bem-sucedida].
O FIM É UM COMEÇO:
Dewey indica também como a ação terminal é importante no fluxo. Se uma atividade foi tão automática que não permitiu um senso do que ela significa e de para onde está se desenvolvendo, o que resulta é hábito e não percepção sensível.”A ação chega a um fim, mas não a um fecho ou uma consumação na consciência. O encerramento correto de um circuito de energia é o oposto de parada ou interrupção, de Êxtase. Sem o devido encerramento, o fim fica sem um sentimento de realização e qualidade estética que proporcione integração à atividade seguinte”. Em fluxo, no final de uma atividade a pessoa é levada à seguinte, enriquecida.
Cinco dançarinos rodopiam às nuanças da música que ouvem através de seus corpos. Fluindo, eles se entregam até que corpo e música, como duas coisas, fundem-se para se tornar uma terceira entidade: a dança. O tempo se escoa; o cenário se desfoca da dança excitada para a dança tranqüila, da resposta sólida para a resposta líquida. Através do espaço e do ritmo, sem ninguém guiando, ninguém seguindo, eles se tocam, separam-se, voltam e se fundem. No momento certo, vem o fim.
Anais Nin, dançarina e escritora, fala do fluxo no primeiro volume de seu diário. “ Eu costumava construir catedrais; catedrais de sentimentos, para o amor, o amor ao semelhante, o amor como prece, o amor como comunhão,sem um forte sentimento de continuidade, de detalhe e permanência. Construídas contra o fluxo e a mobilidade da vida, desafiando esse fluxo. Depois, com Henry Miller e sua esposa, June, e graças a análise com Rank, comecei a fluir, e não construir. Ontem, o fluxo pareceu tão fácil...deixando a vida fluir a gente pode alcançar estados de nirvana, de sonho, e bem-aventuranças de outros tipos”.
Aquele dia em que eu comprei o prendedor de pluma foi um dia em que tive a experiência de minhas catedrais fundirem-se e me transportarem para dentro do fluxo da vida, como faz a dança.”Como ele se funde bem com a cor do seu cabelo”, disse uma mulher. E eu pensei em quadros de Renoir e Klimt, nos quais a vida se funde e flui. Eu tinha me focalizado no meu prendedor castanho e mergulhado totalmente “dentro” da minha dança improvisacional de caminhar pela rua. Límpida então, eu me abri como asas, atraindo o Sol e permitindo que sua energia corresse livremente e com fluidez através das plumas e do cabelo, carregando-me completamente antes de passar a rodopios que envolviam meu espaço e me levavam a me ligar ao padrão perfeitamente fundido do movimento fluente que estava em toda parte.
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[Texto de Beverly Kalinin_é uma escritora free-lance e instrutora de dança holística na Califórnia. Este artigo é em parte extraído de seu livro de auto-ajuda, “Poder aos Dançarinos!”.]
29 de jan. de 2010
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