3 de abr. de 2011

Spinoza_Matéria e Espírito

Mas que é espírito e que é matéria? É o espírito material como alguns homens supõem? É o processo mental a causa ou o efeito do processo cerebral? Ou são, como ensinou Malebranche, desligados e independentes, e apenas providencialmente paralelos?

Nem o espírito é material, responde Spinoza, nem a matéria é mental; nem o processo cerebral é a causa ou efeito do pensamento; nem os dois processos são independentes e paralelos. Porque não existem dois processos, vistos internamente como pensamento e externamente como ação; só existe uma entidade, ora vista internamente como espírito, ora externamente como matéria, mas na realidade inextricável mistura de ambos. Corpo e espírito não atuam um sobre o outro porque não são um e outro – são um só. “O corpo não pode determinar o cérebro a pensar; nem o cérebro pode determinar o corpo a entrar em movimento ou cair em repouso”, pela simples razão de que a “decisão do espírito e o desejo e determinação do corpo...são uma e a mesma coisa”. E todo o universo é desta maneira unificadamente duplo; sempre que ocorre um processo “material” externo consiste ele em um lado ou aspecto do processo real, que para uma visão mas a ampla seria visto a implicar um processo interno correlativo ao processo mental que ocorre dentro de nós. O processo “mental” interno corresponde em cada estagio ao processo “material” externo; a ordem e a conexão das ideais são as mesmas que a ordem e a conexão das coisas”. “A substancia pensante e a substancia extensa constituem uma e a mesma coisa, compreendida agora através deste, agora através daquele atributo” ou aspecto. “Alguns judeus parecem ter alcançado isto, embora confusamente, quando disseram que Deus e seu intelecto, e as coisas concebidas pelo seu intelecto, são uma e a mesma coisa”.

Se “espírito” for tomado no sentido de corresponder ao sistema nervoso em todas as suas ramificações, então cada mudança no “corpo” será acompanhada de correlativa mudança no “espírito” – ou, melhor, forma com ele um todo. “Do mesmo modo que pensamentos e processos mentais são conectados e arranjados no espírito, assim também no corpo as suas modificações, e as modificações das coisas” que o afetam por meio de sensações, “são dispostas de acordo com sua ordem”; e “nada pode acontecer ao corpo que não seja percebido pelo espírito”, consciente ou inconscientemente. Assim como as emoções são parte de um todo, do qual mudanças no sistema respiratório, circulatório ou digestivo formam a base, assim uma idéia é parte de um processo orgânico complexo; ainda as infinitesimais sutilezas do pensamento matemático tem o seu correlativo no corpo. [Os “behavioristas” propuseram detectar o pensamento do homem pelo registro das involuntárias vibrações das cordas vocais que acompanham o processo de pensar].

Depois de assim experimentar fundir a distinção entre corpo e espírito, Spinoza reduz a uma questão de grau e diferença entre intelecto e vontade. Não há “faculdades” no espírito, nenhuma entidade autônoma como as chamadas intelecto e vontade, nem igualmente memória e imaginação; o espírito não é uma agencia de lidar com idéias, mas sim o próprio conjunto das idéias no seu processo de concatenação. Intelecto não passa de um termo abstrato designativo de uma séria de idéias; e vontade não passa de um termo abstrato para uma série de ações ou volições; “o intelecto e a vontade são relatados a esta ou aquela idéia ou volição, como penedias a esta ou aquela rocha”. Finalmente, vontade e intelecto são uma e a mesma coisa, porque volição é uma idéia que pela riqueza de suas associações [ou talvez por ausência de idéias competitivas] permaneceu bastante tempo em nossa consciência para tornar-se ação. Cada idéia se torna ação, salvo se for detida de passagem por uma idéia diferente; a idéia é em si o primeiro estagio de um processo orgânico unificado que se completa com a ação externa.

O que freqüentemente chamamos vontade -  força impulsiva determinada pela duração de um idéia na consciência – pode ser chamado desejo, o que “é a verdadeira essência do homem”. Desejo é um apetite ou instinto do qual temos consciência; mas os instintos não operam sempre através de desejos conscientes [*Spinoza atenta no poder do ‘inconsciente” como visto no sonambulismo; e nota o fenômeno da dupla personalidade]. Atrás do instinto está o vago e variado esforço de auto-conservação [conatus sese preservandi]; Spinoza vê isto em toda a atividade humana, como Schopenhauer e Nietzsche iriam ver em tudo a vontade de viver, e a vontade de poder. Os filósofos raramente estão em desacordo.

“Tudo procura persistir em seu próprio ser; e o esforço com que uma coisa procura persistir em seu próprio ser nada mais é que a essência real dessa coisa”; o poder pelo qual uma coisa persiste é o coração e a essência de seu ser. Cada instinto é um aparelho desenvolvido pela natureza para preservar o individuo [ou, como o nosso filosofo esqueceu de acrescentar, a espécie ou o grupo]. Prazer e dor são conseqüências dos instintos satisfeito ou contrariado; não as causas do nosso desejo, mas seus resultados; nós não desejamos coisas porque elas nos dão prazer; elas nos dão prazer porque as desejamos, e as desejamos porque temos de desejá-las.

Conseqüentemente não há vontade livre ou livre-arbítrio; as necessidades de sobrevivência determinam o instinto -  o instinto determina o desejo – o desejo determina o pensamento e a ação. “As decisões do espírito não passam de desejos que variam de acordo com as varias disposições”. “Não há no espírito vontade livre; mas no querer isto ou aquilo o espírito é determinado pela causa que por sua vez vem determinada por outra causa – e assim ao infinito. “Os homens julgam-se livres porque tem consciência de suas volições e desejos; mas ignoram as causas que determinam seus desejos e volições”. Spinoza compara a sensação da vontade livre ao pensamento de uma pedra a percorrer o espaço, que supusesse estar determinando a sua trajetória e pretendesse escolher o ponto onde cair.

Desde que as ações humanas obedecem a leis tão fixas como as da geometria, a psicologia deve ser estudada geometricamente, com objetividade matemática. “Escreverei sobre os seres humanos como se fossem sólidos, linhas ou planos”. “Tenho procurado cuidadosamente não mofar, lamentar ou execrar, e sim compreender as ações humanas; e com este objetivo considero as paixões não como vícios da natureza, mas como propriedades a ela tão pertinentes como o calor, o frio, a tempestade, os ventos, etc. são pertinentes a atmosfera”. É esta imparcialidade que dá ao estudo da natureza humana de Spinoza a superioridade que levou Freud a considerá-lo “o mais completo que ainda produziu um filosofo”. Taine não achou melhor meio de louvar Beyle senão comparando-o a Spinoza; e Johannes Muller, ao tratar do tema emoções e instintos, escreveu: “Com respeito a relação das paixões entre si, a parte suas condições fisiológicas, é impossível dizer melhor que Spinoza” – e o famoso fisiologista, com a modéstia própria dos grandes, passa a citar in extenso o terceiro livro da Ética. É através desta analise da conduta humana que Spinoza se aproxima, finalmente, dos problemas que dão titulo a sua obra máxima.