30 de abr. de 2011

Schopenhauer_O Homem

Schopenhauer nasceu em Dantzig a 22 de fevereiro de 1788. Seu pai fora um negociante feliz, de temperamento fogoso, independente e amigo da liberdade. Mudara-se de Dantzig para Hamburgo quando Artur tinha apenas cinco anos, porque Dantzig havia perdido a sua liberdade com a anexação a Polônia. O menino cresceu, pois, num ambiente de negócios e finanças; e embora abandonasse muito cedo a carreira mercantil para a qual seu pai o impelia, esse ambiente deixou-lhe marcas – rudeza de maneiras, espírito realístico, conhecimento dos homens e do mundo; fê-lo o antípoda do filosofo sedentário e acadêmico, que ele tanto detestava.  Seu pai finou-se, aparentemente por suas próprias mãos, em 1805. Sua avó paterna havia morrido louca.

“O caráter ou vontade”, diz Schopenhauer, “herda-se do pai; o intelecto, da mãe” [*O Mundo como Vontade e como Idéia, 1883, III, 300]. Sua mãe tinha intelecto -  tornara-se uma das mais populares romancistas do tempo – mas tinha também caráter e temperamento genioso. Fora infeliz com o marido prosaico; e quando enviuvou-se deu-se ao amor livre, mudando-se para Weimar como ponto mais propicio para a vida que desejara. Artur reagiu contra isso como Hamlet contra o novo casamento de sua mãe rainha; e as brigas resultantes puseram-no na senda daquelas meias verdades sobre as mulheres com que polvilhou sua filosofia. Na correspondência entre ambos transparece o desacordo. “A senhora é insuportável e cansativa; todas as suas boas qualidades são estragadas pelo orgulho e tornam-se inúteis para o mundo unicamente porque a senhora não pode coibir-se de atormentar toda gente” [*Wallace: Life of Schopenhauer]. Em conseqüência, separaram-se; Artur só aparecia a visitá-la a espaços e conservava-se na mesma posição dos outros visitantes; tratavam-se então polidamente, como estranhos, em vez de se engalfinharem como parentes. Goethe, que apreciava Mme. Schopenhauer por permitir-lhe que fosse lá com sua Cristina, estragou ainda mais a situação prevendo que o filho viria a ser um homem celebre; a mão não podia conceber dois gênios na família. Finalmente, numa disputa mais grave, a mãe expulsou de casa o filho e rival – e Artur ironizou dizendo que só através dele seria ela conhecida da posteridade. Logo depois Schopenhauer deixou Weimar; e conquanto sua mãe ainda vivesse mais vinte e quatro anos, nunca mais a viu. Byron, também menino em 1788, parece ter tido um drama de família similar. Estavam os dois homens, levados pelas circunstancias, condenados ao pessimismo; homem que não conheceu o amor de mãe – e, pior, que lhe conheceu o ódio – não tem motivos para ver com boa cara o mundo.

Entrementes, Schopenhauer passou pelo ginásio e pela universidade, e aprendeu mais do que estava no programa. Teve seus atritos com o amor e o mundo, ficando com o caráter e a filosofia afetados [*Wallace].Tornou-se sombrio, cínico, suspeitoso; também obesedado de terrores e manias; guardava seus cachimbos a chave e jamais confiava o pescoço a navalha de um barbeiro; dormia com duas pistolas carregadas no criado-mudo – talvez para maior comodidade dos assaltantes. Não podia ouvir barulho. “Há muito tenho a opinião”, escreveu, “de que a soma do barulho que uma pessoa pode suportar está na proporção inversa de sua capacidade mental, e pode ser considerada como uma boa medida desta...Barulho é tortura para os homens de pensamento...A super-abundante forma de vitalidade que se compraz em bater, martelar, derrubar coisas, sempre foi um tormento para mim” [*O Mundo como Vontade e como Idéia].E tinha um senso quase paranóico da sua grandeza não reconhecida; não lhe tendo sobrevindo imediatamente sucesso e fama, introverteu-se e roeu a própria alma.

Schopenhauer não teve mãe, nem mulher, nem filhos, nem família, nem pátria. “Foi absolutamente só, sem nem sequer um simples amigo; e entre um e nenhum estende-se o infinito” [*Nietzsche: Schopenhauer como educador]. 

Ainda mais que Goethe, era imune as febres nacionalistas da época. Em 1813, porém, de tal modo se deixou contagiar do entusiasmo de Fichte pela guerra contra Napoleão que pensou em alistar-se e chegou a adquirir armas. A prudência, entretanto, fê-lo recuar e argumentar que “Napoleão, afinal de contas, não fazia mais que dar ilimitada expansão a sede de mais vida que todos os fracos sentem, mas são obrigados a esconder” [*Wallace:”Schopenhauer”, Enciclopédia Britânica].Em vez de ir para a guerra, foi para o campo escrever uma tese de filosofia.

Depois dessa dissertação Sobre a Raiz Quadrada da Razão Suficiente [1813] [*Schopenhauer insiste, com pouca razão e muito ‘comercialmente’, que esta obra deve ser lida antes do Mundo como Vontade. O leitor deve ficar sabendo que o ‘principio da razão suficiente’ é a ‘lei de causa e efeito’ em quatro formas: - 1) Lógica como a determinação de conclusão pelas premissas; 2) Física, como determinação do efeito por causa; 3) Matemática, como a determinação da estrutura pelas leis da matemática e da mecânica; e 4) Moral, como a determinação da conduta pelo caráter], Schopenhauer dedicou todo o seu tempo a obra que ia imortalizá-lo – O Mundo como Vontade e Idéia. Mandou o manuscrito ao editor magna cum laude; aqui, disse ele, não há picadinho de velhas idéias, mas uma estrutura de pensamento original e da alta coerência, “claramente inteligível, vigorosa e não sem beleza”; um livro “que daqui por diante será a fonte de centenares de outros”. Tudo excessivamente egoístico, mas absolutamente verdadeiro. Muitos anos depois estava Schopenhauer tão seguro de ter resolvido os principais problemas da filosofia que pensou em mandar fazer um anel de sinete com a Esfinge a precipitar-se no abismo, como a Esfinge prometera fazer se seus enigmas fossem decifrados.

Apesar disso a obra não atraiu nenhuma atenção; o mundo estava muito pobre e exausto para interessar-se por estudos sobre sua pobreza e exaustão. Dezesseis anos depois de publicada Schopenhauer veio a saber que a maior parte da tiragem tinha sido vendida a peso. No ensaio sobre a Fama, na Sabedoria da Vida, cita ele, numa evidente alusão a sua obra prima, duas notas de Lichtenberger: “Trabalhos como este são como o espolho: se um asno nele se espia, não pode esperar ver um anjo”; e “quando uma cabeça e um livro se chocam e o som é de oco, será acaso o som do livro?” – Schopenhauer prossegue no tom da vaidade ofendida: “Mais um homem pertence a posteridade – ou por outras palavras, a humanidade em geral – mais se torna estranho a seus contemporâneos; porque como a obra não foi feita para eles e sim para o mundo largo, não há nela a cor local das coisas passageiras”. E torna-se eloqüente como a raposa da fabula: “Poderia um musico lisonjear-se com os rumorosos aplausos de uma audiência que ele soubesse quase surda, e na qual, para esconder o defeito, duas ou três pessoas aplaudissem? E que diria ele se descobrisse que essas duas ou três pessoas já varias vezes se tinham alugado para romper em aplausos aos mais pobres executantes? Nalguns homens o egotismo serve de compensação para a ausência de fama; em outros o egotismo coopera para a fama.

De tal modo se pos Schopenhauer neste livro que suas obras posteriores não passam de comentários a respeito; tornou-se o talmudista de seu próprio Torah, o exegeta de sua própria jeremiada. Em 1836 publicou um ensaio, A Vontade na Natureza, incorporado de certo modo a edição do Mundo como Vontade e Idéia aparecida em 1844. Em 1851 publicou Os dois Problemas Básicos da Ética e em 1851, dois substanciosos volumes do Parerga et Paralipomenaliteralmente, sub-produtos, que foram traduzidos em inglês com o titulo de Ensaios. Por este livro, a mais legível das suas obras e repleto de sabedoria e agudeza, recebeu como remuneração total dez exemplares. É difícil o otimismo em tais circunstancias.

Uma só aventura perturbou a monotonia da sua estudiosa reclusão depois de deixar Weimar. Havia esperado a oportunidade para apresentar a sua filosofia numa das grandes universidades da Alemanha; essa oportunidade veio em 1822, quando foi convidado por Berlim para privat-docent. Schopenhauer deliberadamente escolheu para suas lições as mesmas horas em que o todo poderoso Hegel prelecionava, esperando que os estudantes os pudessem comparar com os olhos da posteridade. Os estudantes, porém, não estavam assim antecipados e Schopenhauer viu-se a lecionar a bancos vazios. Resignou e vingou-se com as amargas diatribes de Hegel que maculam as posteriores edições de sua obra prima. Em 1831 irrompeu em Berlim a epidemia do cólera; tanto Hegel como Schopenhauer fugiram; mas Hegel voltou muito cedo, apanhou a infecção e faleceu em poucos dias. Schopenhauer não se deteve de alcançar Frankfort, onde passou o resto de sua vida de setenta e dois anos.

Como bom pessimista, evitou o engodo dos otimistas – viver da pena. Havia herdado interesses na firma comercial de seu pai e com modéstia viveu das rendas. Soube empregar seus dinheiros com sabedoria rara em filósofos. Quando uma empresa da qual havia tomado ações faliu e outros credores propuseram-se a aceitar liquidação com 70%, Schopenhauer resistiu e obteve pagamento integral. Tinha o bastante para ocupar dois cômodos em uma casa de pensão, na qual viveu os últimos trinta anos de vida na só companhia de um cão. Chamava-se Atma [o termo braamane para a alma do mundo], mas na cidade diziam o “jovem Schopenhauer”. Suas refeições tomava-as habitualmente no Englischer Hof. Ao sentar-se a mesa punha diante de si uma moeda de ouro; ao levantar-se recolhia-a ao bolso. Um garçom animou-se a indagar daquilo, e a resposta do filosofo foi tratar-se da aposta que fazia consigo mesmo, de que os oficiais ingleses que freqüentavam o restaurante em tempo algum deixariam de conversar sobre cavalos, mulheres e cães -  e como nunca perdia, a moeda não ia jamais para a caixa dos pobres.

As universidades ignoravam-no, e aos seus livros, como para provar sua afirmação de que todos os avanços da filosofia se fazem fora dos muros acadêmicos. “Nada”, diz Nietzsche, “ofendeu tanto os sábios alemães como a atitude de Schopenhauer para com eles”; Mas Schopenhauer tinha aprendido a paciência e confiava que, embora tarde, haviam de lhe reconhecer o valor. E de fato assim foi. Homens da classe media – legista, médicos, negociantes – descobriram nele um filosofo que em vez de um pretensioso malabarismo com irrealidades metafísicas lhes dava uma concepção inteligível dos fenômenos da vida real. Desiludida dos ideais e esforços de 1848, a Europa voltou-se com aclamações para um filosofia que corporificava o desespero de 1815. O ataque da ciência contra a teologia, a denuncia socialista da guerra, a pressão biológica da luta pela vida foram os fatores que afinal ergueram Schopenhauer aos galarins da fama.

Não estava ele demasiado velho para gozar a popularidade; lia com avidez todos os artigos publicados sobre sua personalidade e pedia aos amigos que lhe enviassem, como porte a pagar, tudo quanto saísse a seu respeito. Em 1854, Wagner mandou-lhe um exemplar do Anel dos Nibelugen com uma palavra sobre o juízo do filosofo sobre a musica. Em vista dessas homenagens o grande pessimista se tornou nos últimos anos quase um otimista; tocava flauta com freqüência depois do jantar, e agradecia ao Tempo tê-lo varrido dos ardores da mocidade. Começou a vir gente de toda parte para vê-lo; e ao completar senta anos, em 1858, teve congratulações de todos os países do mundo.

Schopenhauer ia viver mais dois anos. A 21 de setembro de 1860 esteve a mesa para o breakfast, aparentemente bom de saúde. Uma hora depois a dona da casa o encontrou ainda a mesa - mas morto.          

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