27 de set. de 2009

TECNOGNOSE: DO VALE DO SILÍCIO A HOLLYWOOD



















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Motivações místicas por trás das novas tecnologias
[Wilson Roberto Vieira Ferreira]
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Diversos autores vêm apontando para uma afinidade entre as ciberutopias e as pós-religiões tradicionais, especialmente de matriz gnóstica. Procuraremos entender as circunstâncias culturais do século XX que propiciaram esta surpreendente associação entre Razão e Misticismo. A princípio entre físicos, cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas, principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação, o Gnosticismo vai dividir-se em duas tendências:
_ de um lado o que chamaremos de gnosticismo cabalístico que propõe acelerar a gnose, isto é, buscar a transcendência do eu a partir das novas tecnologias computacionais;
_ e do outro o que chamaremos de gnosticismo alquímico que objetiva não apenas levar a gnose para as massas através de produtos midiáticos como o cinema, mas, inclusive, tematizar criticamente a tecnociência cabalística.
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Introdução
Em um primeiro momento podemos achar que o discurso sobre as novas tecnologias encontrado na retórica publicitária ou nos editoriais das revistas e publicações especializadas seja definido pela racionalidade instrumental: expansão da lucratividade, enxugamento de custos, incremento da produtividade, soluções rápidas, economia de tempo, etc. Parece que o progresso tecnológico pode ser caracterizado unicamente por esta necessidade instrumental de busca por soluções econômicas para o mundo dos negócios. Porém, paralelo
a este discurso, encontramos um outro de natureza diversa, isto é, de motivação mística ou espiritualista: onisciência, ubiqüidade, superação de limites pessoais, utopias (“estrada para o futuro”, “o futuro é agora”) e toda uma série de nominações transcendentalistas que, para muitos autores, apontam para uma secreta afinidade entre tecnologia computacional e pósreligiões tradicionais. New agers, cyberpunks, desenvolvedores de programas e demais tecnófilos parecem conceber o ciberespaço não apenas no restrito aspecto da racionalidade instrumental, mas como um espaço sagrado que traria imortalidade e onisciência numa fusão gnóstica entre o self e o divino reino da informação.
Se a história da racionalidade ocidental é marcada pelo embate contra o mito, temos uma mudança de rumo inesperada: o misterioso e o mítico penetram no próprio discurso atual da ciência e da tecnologia. No cerne das narrativas atuais que defendem a supremacia da ciência e do poder sem limites da tecnologia, encontramos uma fala “parasitária” promovendo o mistério e o mí(s)tico: uma fala “gnóstica”. Esta afinidade entre gnose, tecnociência e cibercultura foi sugerida por diversos pesquisadores de diferentes linhas como Hermínio Martins e Erik Davis.
Por Gnose nos referimos ao conjunto de seitas sincréticas combinando idéias cristãs, neoplatonismo e as religiões de mistérios pagãs que
florescem nos primeiros tempos da difusão do Cristianismo.
A eliminação do corpo e a virtualização da subjetividade propiciados pelas novas tecnologias computacionais parece favorecer esta espécie de “religião da tecnologia”.
Ou seria o inverso?
Esta fala seria muito mais do que parasitária, ou seja, devido a determinadas circunstâncias sociais e culturais do século XX, o gnosticismo teria se tornado o verdadeiro drive que redirecionou a história da tecnologia, fazendo-a ingressar na etapa atual das
próteses e simulações.
A afinidade entre gnosticismo e tecnologia presente nas ciberutopias atuais apontaria para aquilo que Heidegger já havia pressentido: a essência da tecnologia não é técnica, mas metafísica.
Por isso, em um primeiro momento, traçaremos a história do renascimento moderno do gnosticismo. Perceberemos que no século XX temos uma espécie de divisão dentro do “movimento” gnóstico: de um lado o que chamaremos de gnosticismo cabalístico que propõe, a partir das tecnologias da informação (Vale do Silício nos EUA) e tecnologias do espírito (movimento “New Age”) acelerar a gnose, isto é, buscar a transcendência do eu a partir de ciberutopias que unificam razão e misticismo, tecnologia e sagrado; e do outro o que chamaremos de gnosticismo alquímico que objetiva não apenas levar a gnose para as massas através de produtos midiáticos como o cinema, mas, inclusive, tematizar criticamente a tecnociência cabalística. Como veremos, a primeira tendência é de intrínseca natureza elitista e potencialmente totalitária e a segunda é de natureza potencialmente crítica e fiel aos ensinamentos dos primeiros visionários gnósticos dos séculos II e III DC.
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A secreta aliança entre ciência e misticismo.
O avanço da pesquisa tecnocientífica a partir do término da II Guerra Mundial apontou para uma importante ruptura com a visão moderna sobre a Ciência. O trabalho do sociólogo português Hermínio Martins é um excelente ponto de partida para entendermos esta mudança radical na filosofia da Ciência. Para ele, a tecnociência atual suplantou a tradição positivista e modernista, presente, sobretudo, nos textos inaugurais de filosofia da tecnologia na segunda metade do século XIX. Esta tradição via a tecnologia como um mero instrumento de dominação da natureza e controle planetário. Este instrumento seria de natureza antropomórfica e antropocêntrica, isto é, a tecnologia e seus instrumentos seriam projeções das funções internas do corpo (sobretudo as mãos, a parte mais tecnogênica do corpo). Tal visão é solapada pela tecnociência contemporânea que supera o princípio ontológico que atribui prioridade do orgânico sobre o mecânico. As novas criações (biotecnologia, clonagem, nanotecnologia, realidade virtual ou a própria tecnologia computacional) apontam para a superação dos limites do orgânico.
Victor Ferkiss vai caracterizar esta nova perspectiva com um conceito aparentemente paradoxal: “gnosticismo tecnológico”. O gnosticismo histórico caracteriza-se pelo horror ao orgânico e a uma aversão ao natural. Tais elementos seriam inimigos do espírito na sua busca por iluminação. Ora, a tecnociência atual aproxima-se de tal filosofia ao propor a superação dos parâmetros básicos da condição humana: finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação existencial. Ferkiss, assim como Martins, apontam para esse surpreendente cruzamento entre as aspirações tecnológicas contemporâneas e as utopias gnósticas de transcendência.
Poderíamos contra-argumentar que tal cruzamento seria mero paralelismo, analogia ou metáfora. Mas diversos autores, entre eles Raymond Ruyer e Theodore Roszak, detectaram e mapearam a semente do misticismo nas comunidades científicas, sejam acadêmicos ou tecnófilos. Ruyer afirma que este movimento gnóstico surge discretamente nos meios científicos das universidades de Princeton e Pasadena nos EUA durante a II Guerra Mundial.
A princípio entre físicos, cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas, principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação. Já Roszak rastreia este mesmo movimento na formação do Vale do Silício na Califórnia e entre as comunidades de
geeks que participaram da revolução do computador pessoal e da Internet. Todos eles, com forte influência dos movimentos contra-culturais da Costa Oeste dos EUA, fortemente influenciados por utopias gnósticas que, mais tarde, tornaram-se Ciberutopias.
É importante perceber como Max Weber, Theodor Adorno e Heidegger pressentiram, cada um a sua maneira, esta ruptura de paradigmas da tecnociência. Weber acreditava que a racionalidade impulsionada pelo espírito do capitalismo assumia várias formas.
O “processo universal de desencanto” pela racionalidade econômica atingiria somente as grandes religiões tradicionais (em nossa opinião, monoteístas). O adestramento metódico exigido.
pelo aparelho burocrático e pela meritocracia passa a ser exigência da nova ética capitalista.
Weber vai encontrar em rituais como ioga e budismo paralelismo com o novo espírito do capitalismo. Não é à toa que, na atualidade, a new age convive confortavelmente com meios corporativos e científicos.
Na obra Dialética do Esclarecimento Adorno e Horkheimer vislumbravam o final da viagem da Razão ao longo da História Ocidental: o momento em que a Ciência torna-se Mito.
Adorno denominava isso de “irracionalidade”, o retorno do mito e do obscurantismo através da Indústria Cultural e pelo consumo da astrologia de massas através da propaganda. Esta queda fáustica da Razão estaria incipiente no Terceiro Reich com a manipulação propagandística de símbolos esotéricos e a criação de uma “ciência” nazi que, numa leitura atual, já trazia utopias com fortes tonalidades gnósticas.
Por sua vez, Heidegger acreditava que a tecnologia é a realização mais plena da metafísica.
Na tecnologia esconde-se uma essência não-técnica, na qual o homem confronta-se consigo mesmo: a vontade de poder, querer-ser-mais, querer crescer. Uma essência esquecida na “expansão planetária da técnica”, um querer poder. A realização plena dessa metafísica cria
um “sujeito transcendental”, divorciado de qualquer objetividade da razão ou de qualquer vinculação a valores.
Jürgen Habermas, partindo do referencial da Escola de Frankfurt, chega a uma conclusão próxima a essa quando, afirma, a própria técnica transforma-se em ideologia legitimadora, ou seja, o “agir-racional-com-respeito-a-fins” universaliza-se impondo à esfera pública de opinião e valores um agir onde o meio se autonomiza em relação aos fins.
Talvez seja nos jogos de computadores onde essa dimensão gnóstica se expresse de forma mais explícita. É o gnosticismo para as massas. Desde Dungeons and Dragons, jogo textual dos anos 70, uma larga proporção de jogos inclui rituais pagãos, magias, feitiçarias, chaves misteriosas, objetos com poderes totêmicos e visões situadas num mundo medieval Tolkienesco. Enquanto o discurso acadêmico geralmente representa os jogos em computador, na Internet ou multimídia como mera diversão, alienação ou até estimulador de práticas violentas, outros autores lançam um olhar mais revolucionário.
Douglas Rushkoff argumenta que a imersão nesses mundos digitais não deve ser descartada como mero entretenimento ou jogo, mas oferecem oportunidade de expressão espiritual. Este gnosticismo para as massas interpenetraria na vida cotidiana como o clássico mecanismo de sublimação, tal como foram outrora as grandes narrativas religiosas. Porém, trazendo uma nova ética, algo semelhante às observações de Weber sobre o paralelismo da Ioga e Budismo com a nova ética instaurada pelo capitalismo.
Há algo de natureza não-técnica na tecnologia. Ou, como afirma também Roszak: “toda a ciência moderna foi desenvolvida a partir de uma série de idéias metafísicas e estéticas. O universo consiste de matéria em movimento (Descartes); A natureza é governada por leis universais (Newton); Conhecimento é poder (Bacon). Nenhuma dessas idéias é uma conclusão adquirida através de pesquisas científicas; nenhuma delas é o resultado de processamento de informações”.
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Os renascimentos do gnosticismo
O Gnosticismo opõe-se à religião monoteísta tradicional (cristianismo, judaísmo etc.). A maioria dos sistemas religiosos reconhece, de alguma forma, que o mundo é imperfeito. A humanidade é o principal vilão. A corrente judaico-cristã, por exemplo, sustenta que a transgressão do primeiro casal humano precipitou a queda não somente da raça humana, mas de toda a criação. Ao contrário, o gnosticismo acredita que se o mundo é falho é porque foi criado de maneira falha. O mundo não caiu, foi imperfeito desde o começo. Foi obra de uma divindade imperfeita, o Demiurgo, uma forma híbrida de consciência emanada de um plano transcendente e harmônico (a Pleroma) a partir do Deus original e perfeito. Ele fez a forma, mas não a vida interior do mundo. Inebriado com o poder e por acreditar ser o único deus do universo, aprisiona o homem e a sabedoria (Sophia) no interior da criação, aprisionando-os.
Com a ajuda dos maliciosos Arcontes, distrai o homem ao seduzindo-los com as ilusões materiais, fazendo-os renuciar a qualquer tentativa de encontrar dentro de si a fagulha de Luz que os reconduziria de volta à Pleroma.
Vamos fazer uma pausa no clássico “Apócrifo de João”. Este livro desenvolve todos os temas míticos sobre os quais os visionários gnósticos irão propor suas respostas. Escrito em torno de 150 DC, nele pode ser encontrado o mito da queda, criação e salvação. Para ele a origem da vida não está no Deus bíblico mas em um radical e transcendente poder, uma divindade mais elevada e definida em termos tão abstratos que exclui todo antropomorfismo e envolvimento com o mundo. Para além desse mistério encontram-se diversas emanações andrógenas, aeons, cada qual sendo uma manifestação única de suas origens. Juntos, as origens e suas manifestações compõem o Pleroma, a harmoniosa e espiritual plenitude. Um desses aeons, Sophia, rompeu o equilíbrio ao criar um novo ser sem a aprovação do grande espírito ou de sua consorte. Esta turbulência produziu um ser ignorante, Ialdabaoth. Este imediatamente foi exilado no reino material fora do Pleroma. Sozinho no reino da matéria, estupidamente passou a acreditar ser o deus único e produziu um cosmos imperfeitamente baseado no Pleroma. Imediatamente cria anjos (archons) para governar o mundo e ajudar na criação do homem dando origem a um universo onde a matéria dividida está no lugar do espírito unificado e a desilusão substitui a verdade original. O próprio homem é moldado através da imagem perfeita do Pai e aprisionado neste universo imperfeito. A esperança está em que a Eternidade secretamente sempre alcança os homens e planta a partícula divina (pneuma) nas almas doentes e sofredoras. Temos o início de uma luta contínua entre os poderes da luz e da escuridão pela possessão dessas partículas. Elas somente serão ativadas no homem no momento de iluminação (gnose) onde tomamos consciência de sermos exilados das nossas origens, o Pleroma. A partir daí, rejeitamos as formas e convenções doplano físico como fantasmas de um pesadelo, como ilusões perpetradas por um deus que conspira contra nós.
“Do mesmo modo, a mãe também enviou para baixo o seu espírito, que é nela a semelhança e a cópia daqueles que estão no pleroma, pois é ela que preparará a moradia para os aeons que descerão. E ele os fez beber a água do esquecimento do chefe archon, para que não soubessem do lugar de onde eles tinham vindo. Consequentemente, a semente permaneceu por algum tempo (lhe) atendendo, para que, quando o Espírito vier dos aeons sagrados, ele possa se elevar e ser curado da sua imperfeição, e para que assim todo o pleroma possa novamente se tornar um lugar perfeito e sagrado”.
Os poderes de Ialdabaoth aprisionam o homem em um corpo material que bebe da água do esquecimento. Finalmente Cristo, outro aeon, é enviado para “salvar” (“curar” seria a palavra certa) a humanidade ao fazer as pessoas lembrarem das suas origens celestiais.
Somente aqueles que tiverem o conhecimento (iluminação ou gnose) retornarão ao pleroma; os outros serão reencarnados até alcançarem o conhecimento.
Para Stephan A. Hoeller, ao longo da história a tradição gnóstica passou por constantes renascimentos porque ela contém dois componentes que lhe dão força: o primeiro, a tradição do ensino e da prática claramente formulada no início da era cristã na Alexandria, Síria e Irã – em toda parte encontramos uma mensagem comum da salvação pela gnose. O segundo componente é o menos definido:
“Consiste em uma certa atitude da mente, uma ambiência psicológica (...) um certo tipo de alma é, por sua própria natureza, gnóstica. Qualquer que seja o seu ambiente geográfico, cultural ou espiritual esta gravita inevitavelmente para uma visão de mundo gnóstica. Quando aquela predisposição ideológica encontra o estímulo de algum elemento de transmissão gnóstica, está fadado a surgir um renascimento”
O Gnosticismo e seus derivados esotéricos nunca fizeram parte da cultura sancionada pelas instituições. Desde o triunfo do cristianismo ortodoxo após Constantino, a tradição gnóstica entrou para o subterrâneo dos movimentos sociais. Bem sucedido em seus canais subterrâneos, eventualmente ofereceu a pensadores revolucionários subsídios importantes para críticas aos sistemas opressivos políticos, sociais ou culturais. Esse amalgama de pensamento esotérico com o trabalho contra-cultural trouxe a tradição gnóstica para a política.
O Iluminismo, por exemplo, foi um desses momentos em que os dois componentes da tradição gnóstica se encontraram. Filósofos cosmopolitas por volta do século XVIII como Voltaire (de forma implícita seus contos mencionam em tom favorável conhecimentos
gnósticos) e Goethe (explícito praticante de disciplinas esotéricas como a alquimia) passam a contestar a hegemonia do Cristianismo e da Igreja Católica. A predisposição ideológica contra-cultural desses pensadores encontra nas idéias gnósticas subterrâneas a fagulha que
faltava para incendiar críticas e insatisfações em relação à antiga ordem.
Mas o primeiro florescimento pleno dessa conexão entre a especulação esotérica gnóstica e o pragmatismo esotérico foi durante o Romantismo nos séculos XVIII e XIX. Figuras como William Blake e Percy Shelley beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas,
desafiando o status quo. Blake, por exemplo, não via utilidade no cosmos de Newton, bem organizado e parecido com um relógio. A certa altura Blake disse que “a Natureza é obra do demônio”.
Esse político impulso esotérico atravessa o Atlântico e encontra na América as figuras de Emerson e Melville que também vão invocar a rebelião gnóstica nos seus apelos pela revolução democrática contra o enervante conformismo. Emerson, poeta e escritor, funda a filosofia transcendentalista: um esforço de introspecção metódica para se chegar além do "eu" superficial ao "eu" profundo, o espírito universal comum a toda espécie humana; Melville (novelista e poeta, autor de Moby Dick) profetizava a era dos “homens ocos” conformados com o esquecimento de Deus em um mundo onde vilões e heróis são igualmente punidos e não há restituição das perdas.
Do descontentamento divino com a vida prosaica e a busca deliberada de estados incomuns de consciência cultivados pelo romantismo até o ocultismo foi um passo. Em meados do século XIX Eliphas Levy trás todo o espectro de assuntos do gnosticismo à luz do dia por meio da discussão da cabala judaica. Do pioneirismo de Levy, surge em cena a maior figura do renascimento do oculto: Helena Blavatsky que se tornou a figura embrionária do movimento espiritual alternativo não somente do século XIX mas de grande parte do século XX. A fundação da Sociedade Teosófica em 1875 por Blavatsky e o trabalho de seu
devotado aluno G.R.S.Mead (tradutor especializado em textos gnósticos e herméticos), tornou o gnosticismo acessível ao público fora da academia, o que preparou o caminho para o gnosticismo para as massas no século seguinte.
As teses paradoxais no campo da física como o Principio da Incerteza de Heizemberg e a Física Quântica de Bohr vão impulsionar o gnosticismo no século XX, desta feita no campo científico. Suas teses vão sugerir uma visão de realidade similar a visão de mundo dos gnósticos. Sendo o cosmos um projeto do Demiurgo é suspeito pela falsidade dos seus princípios. Os paradoxos, incertezas e estado caótico que definem o universo pelas teses da física moderna vão confirmar a suspeita gnóstica: o mundo é imperfeito desde o início.
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Gnosticismo cabalístico: tecnologia como atalho à Gnose
A secreta aliança entre misticismo e ciência floresce no século XX com o ressurgimento do mito cabalístico do Golem nos meios científicos e acadêmicos com a construção da moderna utopia tecnológica: a rota tecnologicamente traçada por uma benevolente elite que permita a superação das ruínas de um mundo material caótico e imperfeito e resgate o anthopos presente na humanidade, o retorno à pureza adâmica aprisionada pela mortalidade.
O Golem floresceu na mitologia judaica durante a Idade Média e Renascimento, mas tem seus fundamentos no segundo e terceiro séculos quando o gnosticismo criou o mito do perfeito anthropos que caiu na imperfeição. Este mito do declínio é descrito em uma narrativa básica: emanação, erro e aprisionamento. Nos evangelhos cópticos o anthropos é a primeira manifestação do deus verdadeiro e superior ao Demiurgo. Dentro dele, está contido todo o universo, partículas de luz para, através delas, redimir esse mundo material e imperfeito. Porém, ele é ostensivamente derrotado pelas forças do Demiurgo e mantido aprisionado nos círculos materiais. Depois desse aparente declínio, o anthropos ouve o chamado do Deus da Luz, retornando. Mas parte da sua alma é deixada para trás,aprisionada. Partículas de luz dessa porção prisioneira criam o cosmos material tal como conhecemos. A cada momento, pessoas ouvem o chamado da luz, liberando partículas aprisionadas. Quando todos tiverem apreendido este chamado, o Anthropos (o Homem Primal) estará totalmente preenchido e a matéria aniquilada.
Mas como retornar para o imaterial Anthropos se habitamos este cosmos físico?
Os Gnósticos responderam que a maneira de buscar esse perfeito Adão seria através do ascetismo ou a morte. Mas há outro caminho, em um sentido inverso: descer ao mundo da matéria.
Cabalistas medievais desenvolveram esse método, a saber, o da redenção por meio de intensas experiências com a matéria, nos seus mais tenebrosos reinos. Se antes das ruínas havia perfeição, cabe ao cabalista revolver a matéria para organizar os fragmentos que se conectam com o todo perdido. Teogonia harmonizando-se com a Cosmogonia. Esta saída produz o Golem (“não-formado”), o retorno a um estado da matéria disforme e imperfeito, antes de Deus dar forma e perfeição. O Talmud afirma que Adão, antes de receber alma e linguagem, era um Golem. Deus ordena a matéria por meio de códigos,
construindo um mundo formado a partir de letras. É a base da teourgia da Cabala. A única coisa que nos separa de Deus é o pecado. Se a criação divina é feita a partir de códigos, um ser sem pecados pode fazer o mesmo. Uma pessoa que pratica esta mágica divina não viola o sagrado, mas realiza o potencial do espírito. As antigas discussões sobre o Golem nos séculos XII e XIII giram em torno desta questão primária:
_pode um mago criar um ser igual ou superior ao humano?
_É possível trazer de volta Anthropos?
Para os proponentes medievais da “cabala extática” a criação do Golem seria a culminação de uma experiência mística, um símbolo de união com Deus: a criação da vida a partir da recitação de letras sagradas.
Se no século XX a Física e a Cosmologia descrevem um cenários de caos e improbabilidade (Deus parece que joga dados com o universo através da formulação da Teoria do Caos de N. Bohr e o Princípio da Incerteza de Heisenberg), a partir dessa confirmação da secreta crença gnóstica da primária imperfeição do cosmos, a mística cabalística vai introduzir-se na Ciência para dar forma a uma nova biologia constituída a partir de uma peculiar relação entre a biologia e a ciência computacional. A Teoria da Informação e o modelo do código binário computacional vão oferecer um modelo para a concepção do DNA na década de 1950. A vida passa a ser vista como uma espécie de biocomputador. O DNA é uma forma de processamento de dados, assim como o computador, podendo esse instrumento de processamento, portanto, ser encarado como uma forma de vida emergente. Alguns já admitem que estejamos perto do momento da criação de novos chips para computadores
constituídos de DNA-RNA.

Robert Jawstron, da NASA
, foi um dos primeiros a propor o advento da “inteligência descorporificada”. Ele antevê o dia em que nos tornaremos uma “raça de imortais” baseados em uma mente computadorizada.
“Um dia um cientista será capaz de retirar o conteúdo da sua mente e transferi-lo para a memória do computador. Porque a mente é a essência do ser, podemos dizer que tal cientista entrou no computador e passou a habitá-lo. No mínimo podemos afirmar que a partir do momento que o cérebro humano habita um computador ele está liberado da fraqueza da carne mortal ... Ele está no controle do seu próprio destino. A máquina é seu corpo, ele é a mente da máquina ... Esta parece ser para mim a forma mais inteligente e madura de vida no universo. Habitar placas de silício e não mais limitado pela duração da vida no interior do ciclo mortal de um organismo biológico. Tal espécie de ser viverá para sempre.”
Golem,
a matéria disforme e entrópica, modelado pelos códigos binários sagrados. Se o DNA comprova a codificação divina da matéria através de letras, a informação será a sintaxe que afastará o ruído e a entropia do organismo que habita um cosmos falho.
Criador da realidade virtual, Jaron Lernier acredita que tal motivação mística torna-se o principal atrativo do ciberespaço. Para ele, muitos hackers têm a esperança de um dia viverem para sempre após um upload final para o interior de um computador. Lerneir caracteriza essa fantasia como o início de uma “cultura de zumbis” dominado por exhumanos que “estão preparados para deixar tudo para trás imaginando viverem em um disco rígido, interagindo unicamente com outras mentes e demais elementos de um ambiente que existe somente em um software”. Portanto, a essência do ser, a mente (ou a partícula de luz que nos liga à nossa casa originária, a Pleroma), pode ser digitalizada como informação. Este é o atalho para a gnose: a tecnologia como a via mais rápida para a realização do projeto de redimir a humanidade exilada e aprisionada nos círculos materiais.
Esta antiga busca gnóstica em transcender a carne é o emocional subtexto por trás da eufórica reação a cada novidade em informática no mercado e a cada website ou blog com frivolidades que é lançado. Lernier chega a sugerir uma nova categoria psicológica de usuários: a “nerdice”: intelectualmente busca digitalizar qualquer distinção de qualidade,sentimento e afeto. Emocionalmente, procura abrigo que o proteja da intimidade humana e das demandas corporais.
Alegremente, o sujeito se despoja do corpo para viver uma fantasia de poder sem limites. Erick Felinto vai nomear este sujeito das ciberutopias como “sujeito pneumático”, uma forma de subjetividade que se pretende libertar dos limites do corpo, um self quase divino e de natureza espiritual (pneuma). Este sujeito pneumático teria as seguintes características: a comunicação total (como anjos incorpóreos vagando pelo ciberespaço sem barreiras para comunicar-se), por meio da “hipermediação que equivale à imediação das mídias digitais” e a mobilidade total:
“Imerso em um mundo sem fronteiras, sem limites, o ciberanjo desfruta da mais absoluta liberdade de movimentos. Como subjetividade pneumática, pode deslocar-se ou estender-se à vontade; pode até mesmo almejar a ubiqüidade. Na verdade, não se trata apenas de mobilidade, senão da possibilidade de modelar o “espaço” circundante.”
Como Felinto observa, a aparente variedade identitária na Internet e a multiplicidade de “eus” nas redes esconde um enfraquecimento ou fragmentação da subjetividade. Como conclui:
“Numa perspectiva bastante sombria, o sujeito coletivo das redes seria assim um eu absoluto, que deseja constituir-se em oposição mesmo às expressões da alteridade. Esse sujeito muitas vezes limitase a ratificar o mesmo, no sentido em que, como conclui um estudo de etnografia da internet citado por Rüdiger, “os internautas, em sua maioria, não conseguem abrir-se ao outro".
Esta duplicidade aparentemente paradoxal entre, de um lado, a fantasia de um Eu sem limites, onipotente e ubíquo e, do outro, uma subjetividade enfraquecida e fragmentária vai de encontro à noção de narcisismo na cultura contemporânea tal qual analisada por Christopher Lasch. Um eu fragilizado e sitiado torna-se permeável às influências externas (ego alter-dirigido), sensível às imagens e opiniões que acredita que os outros fazem dele. O Eu aparentemente livre e poderoso das redes torna-se presa fácil de boatos, mentiras e fofocas:
“Hostilidades sempre existiram no ambiente escolar, mas elas se potencializaram na rede mundial de computadores, diante da facilidade atual de criar páginas e comunidades na Internet. Para humilhar colegas de escola, os meios utilizados vão desde e-mails e mensagens de celular injuriosas, passando por fotografias digitais e montagens degradantes, a blogs com mensagens ofensivas (...) ‘No mundo real, a agressão tem começo, meio e fim. Na internet, ela não acaba, fica aquele fantasma’, compara Rodrigo Nejm, psicólogo e diretor de prevenção da SaferNet Brasil”.
O indivíduo na rede torna-se um nódulo que apenas ratifica o que lhe é externo. Como afirma Lasch, a aparência narcísica de um ego grandioso (pneumático, espiritual) encobre um esvaziamento da própria subjetividade que, sitiado, adapta-se e reproduz mimeticamente o entorno para sobreviver. É o sujeito fractal, como um fragmento que reproduz dentro de si, infinitamente, o padrão do todo. Se as fronteiras entre o Eu e ou Outro desaparecem, primeiro pela imediação das redes (o tempo real criar sensação de que o mapa é o território), segundo, pela permeabilidade do ego e, terceiro, por uma subjetividade que pretende libertar-se dos limites do corpo, entra em crise a percepção da alteridade. Isso trará conseqüências éticas e morais.
Michael Heim levanta uma brilhante consideração a respeito de conseqüências éticas dos “gnóstico-platônicos computadores de comunicação”. O corpo e as relações face-a-face desaparecem nos processos de comunicação on line. As vivências dos contatos diretos entre pessoas é a base primeira do senso de responsabilidade e lealdade. Os limites éticos ou morais são dados, primariamente, pelos limites espaciais entre os corpos. Porém, a virtualidade comunicativa das redes informáticas turva as âncoras com o mundo real (finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporal). Tais âncoras representam a autêntica base cinestésica de toda ética ou moral. A cultura on line introduz uma ilusória ambigüidade nas relações entre usuários que vai obscurecer estas âncoras cinestésicas:
Vida eletrônica converte a primária presença corporal em telepresenças. É verdade que na vida corpórea possuímos diversas formas de alterar nossas identidades com diferentes roupas, máscaras e apelidos, mas a eletrônica instala a ilusão de que fazemos isso simultaneamente de duas maneiras, mantendo-nos à distância enquanto colocamos a nós mesmos on line.
O corpo confere a nós a percepção de limite e finitude do ser e, em decorrência, a consciência das repercussões dos nossos atos. O discurso técnico transcendentalista e gnóstico vai encarar isso como correntes que nos prendem, impedindo a realização plena das potencialidades do espírito. Na verdade, a passagem dos relacionamentos presenciais para as de interface eletrônica amplificam uma indiferença moral nas relações humanas. A ilusão de
ambigüidade das telepresenças (estou dentro de uma interação, mas, ao mesmo tempo, mantenho-me à distância. A qualquer momento posso apertar a tecla esc e cair fora!)
introduz a amoralidade, a partir do momento que nestas interfaces tecnológicas os limites entre o Eu e o Outro se obscurecem para produzir, em seu lugar, indiferença.
Por isso, a motivação gnóstica cabalística que alimenta esse imaginário transcendente constitui um reino potencialmente perigoso. Ao contrário da vertente gnóstica alquímica (como veremos a seguir, social e politicamente crítica em relação a essa imperfeição constitutiva do mundo material), esta vertente desvia a tecnologia das finalidades humanas e mundanas para cair no irracionalismo e no solipsismo. Perigosamente aproxima-se do irracionalismo totalitarista.
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Gnosticismo Alquímico: o filme gnóstico
Alquimistas medievais e renascentistas basearam suas idéias na tradição gnóstica, porém com uma diferença: enquanto os antigos gnósticos queriam transcender a matéria os alquimistas querem redimi-la. O processo alquímico clássico envolve a dissolução de elementos até o caos para, por meio desse estado, separar massas indiferenciadas em espírito e matéria, unindo essas oposições em uma espécie de casamento alquímico – do qual surge a pedra filosofal. Essa atividade alquímica reencenaria a atividade de Deus que separou o caos em elementos distintos para, mais tarde, reunificar essas antinomias na Revelação. Estes aspectos simbolizariam o processo através do qual o adepto consegue refinar a sua alma.
Temos aqui os passos para a transformação psicológica por meio da narrativa mítica da transformação por meio de uma jornada cíclica: Plenitude gnóstica, Queda e Retorno; Matéria Primal, a Divisão e o Casamento. Não há transcendência sem a redenção da matéria.
Enquanto o gnosticismo cabalístico, através da tecnologia e da linguagem, vê a matéria como prisão, confinamento e limitação dos potenciais do espírito, o gnosticismo alquímico procura o espírito por trás da matéria, a vida que emerge da morte, a ordem que surge do caos, a alma que cresce a partir do corpo. Em síntese, o gnosticismo alquímico busca a transmutação e não a transcodificação cabalística. Enquanto na tendência cabalística a matéria é um golem disforme e sem vida que precisa da ordem do espírito para ganhar vida (tecnologia e o código binário da informação), a tendência alquímica encoraja a metamorfose e a redenção do espírito através da existência material. A primeira é digital e abstrata; a segunda é analógica e sensual.
Se o gnosticismo cabalístico procura através do atalho da tecnologia e da linguagem o caminho mais rápido para o espírito abandonar a matéria, o viés alquímico procura a Grande Negação, o tertium quid, a terceira alternativa entre a ilusão e a realidade. Se a verdade sobre Deus está além do conhecimento humano, a negação do conhecimento é o sagrado caminho. O homem acolhe os objetos do saber e as palavras como fossem veículos do conhecimento na esperança de que possam revelar a verdade das coisas. Em um mundo de ilusões o conhecimento dele só poderá ser também ilusão. Nem a ilusão (criada por um cosmo imperfeito) e nem a realidade (Conhecimento, Ciência e Linguagem), mas o sagrado, a experiência que conduza o indivíduo para além dessas oposições.
Os recentes avanços tecnológicos e científicos têm levado as pessoas a questionar nossa percepção da realidade.
Muitos pesquisadores demonstram como os dilemas da era digital (qual a diferença entre as formas empíricas e a sua simulação computadorizada? Como distinguir um órgão autônomo do seu duplo mecanizado? Pode a dependência tecnológica levar à desumanização?) vêm criando condições para o ressurgimento de antigos mitos gnósticos nos campos da cultura de massas, mais precisamente no cinema comercial. O mainstream hollywoodiano parece ser o lugar privilegiado para a tematização sobre as motivações cabalísticas por trás da ciência e tecnologia atuais.
Autores como Eric Wilson e Jennifer Emick apontam para esta preocupação temática em filmes carregados com narrativas, iconografias e simbologias inspiradas em correntes gnósticas tradicionais e alquímicas, o que nos levaria a crer na gênese de um novo gênero cinematográfico: o filme gnóstico. Explorando desde críticas explícitas à tecnociência cabalística (Blade Runner - 1982, A.I. - 2001, Robocop - 1987, etc) até a instabilidade da percepção daquilo que chamamos de “realidade” por meio de narrativas que abordam distorções temporais, perda de identidade e memória, etc. (filmes como Amnésia - 2000, O Jogo – 1997 e A Vida em Preto e Branco – 1998) Hollywood tem tornado-se o espaço para a
visão crítica do gnosticismo alquímico.
Eric Wilson propõe uma intrigante análise da recente onda de temas gnósticos no cinema hollywoodiano. Para Wilson os temas gnósticos no cinema não são recentes. O autor cita desde antigos filmes como The Revenge of the Homunculus (Otto Rippert’s, 1916) sobre as trágicas conseqüências de um experimento alquímico mal sucedido; The Golem (de Paul Wegener’s, 1920) mostrando os trágicos resultados da magia cabalística; Frankstein (de James Whales, 1931) onde o tema é o fracasso gnóstico em transcender a matéria mortal.
Segundo ele, estes antigos filmes eram “reacionários avisos” contra questionamentos sobre o que a sociedade supõe ser a realidade.
Os temas gnósticos retornam mais tarde, desta vez através de filmes não-comerciais ou rotulados como cults que endossam valores heterodoxos que os antigos filmes condenavam.
Blow Up (Antonioni, 1966) é uma exploração gnóstica de como a cultura consumida pelas aparências suplanta a realidade. Confundindo forma e conteúdo através de uma narrativa altamente ambígua e alucinante que incomoda tanto os personagens do filme quanto o público, 8½ (Fellini, 1963) explora a cabalística crença de que um ideal humano pode ser alcançado através do artifício, a criação de um Adão cinemático; Zardoz (John Boorman, 1974) uma verdadeira fábula gnóstica onde, em um futuro pós-apocalipse, o protagonista alcança a iluminação ao descobrir que o deus em que acreditava (Zardoz) era, na verdade, uma criação artificial de uma elite imperfeita e decadente; e The Man Who Fell to Earth (Nicholas Roeg, 1976) apresenta um extraterrestre que vem para a Terra em busca de água para o seu planeta que está morrendo. Incapaz de cumprir sua missão acaba prisioneiro de uma rede de corrupção em uma América corporativa. Diferentes dos antigos filmes, estes filmes gnósticos cults criticam o status quo, sugerindo que a cultura pós-moderna é um desolado mundo de ilusões que produz conformismo.

O que distingue os filmes de temática gnóstica dos últimos vinte e cinco anos é que, diferente do passado cult ou de vanguarda, agora estão presentes no cinema mainstream hollywoodiano. Para Wilson, a temática gnóstica abandona o campo do cinema alternativo de público elitizado para atingir as massas através do cinema comercial. Ao contrário do passado, os temas gnósticos estão presentes em filmes com produções de bom orçamento, atores celebrizados pelas mídias de massa e enquadrados dentro de gêneros fixos tradicionais.
Uma das evidências disso é o súbito interesse de diretores e produtores de Hollywood pela obra do autodenominado escritor gnóstico Philip Dick, falecido em 1982. Filmes como Minority Report (Mynority Report, 2002), Impostor( Impostor, 2002) e o recente Vida
Dupla (A Scanner Darkly, 2006)
são produções baseadas nas suas obras de ficção-científica onde Dick recorrentemente aborda simbologias e visões gnósticas: a existência de um mundo artificialmente produzido, uma realidade virtual na qual os participantes não têm consciência de que são prisioneiros. A descoberta de que este mundo é falso e o despertar dele é sempre uma experiência envolta em paranóia e insights místicos de transcendência.
Poderíamos organizar uma lista bem significativa de filmes dos últimos dez anos onde os temas gnósticos estão presentes.
Em Show de Truman (The Truman Show, 1998) um homem desperta dentro de um imenso reality show que julgava ser o mundo real e trava um duelo com o demiurgo (o diretor de TV Christof interpretado por Ed Harris), na busca de uma saída. O protagonista de Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001) é um homem morto vivendo sem saber uma fantasia de vida com memórias que ele não sabe quem as criou. Sua redentora é
ninguém mais do que sua amada Sophia (simbolismo gnóstico da Sabedoria) que constantemente o exorta: “abra seus olhos”. Ele desperta por meio de um guia que o ajuda a voltar ao mundo real por meio de um salto num abismo.
Em Matrix (Matrix, 1999) os humanos são forçados a viverem num estado de sonho para que as máquinas drenem suas energias bioelétricas. A certa altura, quando o herói Neo (Keanu Reeves) questiona do porquê o mundo virtualmente criado para aprisionar os humanos não ser perfeito. O agente Smith (computacionalmente gerado) responde que se a Matrix fosse um mundo sem sofrimento, os humanos poderiam despertar rapidamente do sonho. Então, melhor seria mantê-los em um constante estado de conflito e tensão. Esta idéia aproxima-se da velha crença gnóstica de que as almas humanas estão aprisionadas na Terra para que a nossa energia psíquica seja consumida nos conflitos do dia-a-dia esquecendo-nos, dessa forma, de despertar. Um a horda idêntica de “agentes”, os Arcontes, espécie de anjos do mal enviados pelo Demiurgo (o arquiteto deste mundo-prisão), vigiam e cuidam para nos manterem contidos neste mundo através das tentações, medo e ignorância propositalmente alimentados.
Em 13º Andar (Thirteenth Floor, 1999) programadores de jogos em realidade virtual estão preocupados com o fato de que seus personagens estão assumindo uma forma de existência autônoma. No curso das investigações descobrem horrorizados de que são, na verdade, seus próprios avatares que tomam a sua existência virtual como real, e eles não passariam de criadores imperfeitos vivendo num outro universo virtual que tomam também como realidade. A partir daí o filme incorre numa espécie de regressão infinita (característica
narrativa do gênero gnóstico). Dentro da narrativa teológica gnóstica, o Demiurgo acredita também ser a única realidade existente e a sua criação, o mundo material, que toma como obra perfeita e acabada, não passa de projeção espúria da Pleroma.
O protagonista de cada um desses filmes encara conflitos entre aparência e realidade, destino e liberdade, caos e ordem. Anseiam por transcendência, redenção, tertium quid, em suma, o sagrado, a experiência de conduza o indivíduo para além dessas oposições. Esses personagens são submetidos à jornada alquímica arquetípica (Plenitude gnóstica, Queda e Retorno; Matéria Primal, a Divisão e o Casamento) onde do caos surge a metamorfose através da qual a matéria bruta transforma-se no espírito refinado.
Para Wilson, o filme gnóstico comercial se distingue pela habilidade em tratar esotéricos conteúdos dentro de narrativas verossímeis. Usando de recursos formais exclusivos da narrativa desse gênero (ironia formal e dilemas paradoxais) coloca o espectador na mesma posição do protagonista do filme. Ao empregar muitas vezes uma narrativa auto-referencial (por exemplo, em eXistenZ temos a ilusão dentro da ilusão, jogos dentro de jogos, explicitando a virtualidade do próprio aparato cinematográfico; Show de Truman mostra uma vida artificial dentro de uma gigantesca cenografia mostrada pela própria natureza artificial do cinema) o filme desafia as diferenças entre espectadores e personagens, sugerindo uma “regressão infinita”, uma imersão do público na própria narrativa: “Estamos ainda no jogo?”, poderia perguntar para si mesmo o espectador quando abruptamente termina eXistenz; ou qual a diferença entre o ambiente televisivo controlado de Truman, o ambiente da sala escura do cinema e o mundo lá fora? Esse típico final do filme gnóstico comercial explicita a desorientação entre clichê e melancolia, isto é, sensação quando o
filme aproxima-se do encerramento de que após os créditos finais a mesma ordem desafiada pela narrativa será restabelecida ao voltar para a realidade.
Clichê e melancolia, suspensão e desorientação em narrativas desse gênero podem proporcionar uma experiência numinosa aos espectadores. O abrupto corte final da narração em off de Lester no fechamento do filme Beleza Americana e os segundos subseqüentes com a tela completamente escura antes de aparecerem os créditos é um desses momentos de suspensão que induzem a tal experiência. Numa fala perturbadora e fascinante Lester descreve sua própria experiência após tomar o tiro mortal, fazendo um balanço sobre os “pequenos momentos” da sua “estúpida vida” e alertando: “um dia você saberá do quê estou falando”.
A desafiadora consciência pós-morte de Lester de que passou a vida inteira em letargia pode transbordar para a consciência pós-cinema do espectador.
É claro que estamos recorrendo aqui à noção de numinoso e sagrado não no sentido religioso de uma experiência mediada por um sistema simbólico de uma determinada religião, mas no sentido junguiano de um sentimento ou consideração que provém da base arquetípica da psique, o “sentimento avassalador da totalidade da alma.”
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Tradições gnósticas em choque: Hollywood versus Vale do Silício
Após esse mapeamento do “movimento gnóstico” no século XX, podemos chegar a seguinte constatação: é impreciso nomear o discurso técnico-transcendentalista (de natureza faústica, que propõe o nascimento do homem pós-biológico e a imortalidade através da virtualidade da informação) como “neo-gnóstico” ou, em um sentido genérico, “tecnognóstico”. Ao associar o gnosticismo à discussão das motivações místicas por trás das tecnociências temos que procurar entender sobre qual tipo de Gnosticismo estamos nos referindo.
O projeto fáustico tecnológico tem suas bases em uma particular vertente do gnosticismo: a cabalística. As conseqüências desta particular motivação mística são a fetichização tecnológica (tecnologia pensada como algo espiritual ou invisível) e todo um imaginário ciberutópico de Eu solipsista, despojado do corpo e partilhando de fantasias de poder sem limites. Ora, tal imaginário é denunciado pelo gnosticismo tradicional e alquímico como maliciosas formas do demiurgo reter o humano no interior das ilusões do mundo material.
Como vimos anteriormente, a formulação da teoria do caos foi uma novidade excitante para o gnosticismo, pois sugeriu uma visão de realidade similar aos gnósticos: sendo o cosmos um projeto do Demiurgo, é suspeito por imperfeição em todos os aspectos. Foi, talvez, o fator motivador para a introdução do gnosticismo cabalístico nos meios científicos ao confirmar a natureza caótica, disforme e imperfeita de uma matéria que necessita do espírito transcodificado em informação para dar forma e vida, tal qual um Golem. Porém, como afirma Hoeller, os cálculos matemáticos da ciência podem revelar a gnose, mas não vão além:
“Quando o cosmos é deconstruído, ele se revela como caos, mas quando o caos é penetrado pelo tipo de consciência alterada conhecida como gnose, ele revela uma realidade implícita que possui sua própria ordem. Esta ordem é muito diferente da ordem ilusória do mundo do Demiurgo. Para perceber o caos por trás da superfície do cosmos deve haver um primeiro passo em direção à gnose, porém são necessários outros passos. A teoria do caos foi descoberta por meios racionais e científicos, enquanto a ordem transcendental pode ser descoberta somente pela gnose. Esta ordem além da ordem emerge somente nos estados de consciência exaltados, incomuns. Os cálculos matemáticos e a desconstrução literária não revelarão esta realidade, somente
a gnose.”

O gnosticismo cabalístico técnico-científico despreza a matéria ao concebê-la como um Golem. Ao contrário, a convicção alquímica é a de que a realidade é um composto: o aspecto exterior é o de um trabalho imperfeito de um Demiurgo, enquanto o aspecto interior é animado por partículas de luz provenientes da unidade divina final. Cabe ao processo alquímico ir além da gnose (o insight que descobre a imperfeição e o caos desse mundo) ao redimir e resgatar as partículas de luz para, nessa metamorfose, refinar o espírito. Isso requer estados alterados de consciência provenientes da técnica e disciplina.
Ao contrário, a ciência cabalística procura o atalho por meio da hipertelia tecnológica.
Procura imitar Deus ao recriar vida por meio de letras e códigos abstratos. Seu projeto pósbiológico e pós-humano não consegue vislumbrar esta ordem secreta no interior do caos superficial da realidade. Por isso, ao abandonar as finalidades humanas e mundanas
perigosamente aproxima-se de um projeto totalitário, venal e irresponsável.
Como vimos, surpreendentemente, o lócus dessa tematização vem sendo a produção recente cinematográfica hollywoodiana. Essa constatação nos leva a uma última questão:
_o que faz diretores e produtores da indústria cinematográfica ter esse súbito interesse no universo temático gnóstico, particularmente o alquímico?
_ Por que estas narrativas míticas da antiguidade foram parar nas sinopses, roteiros e nas mesas de produtores de filmes mainstream hollywoodianos?
_Por que Hollywood abraçaria esta particular visão gnóstica
que questiona o gnosticismo tecnocientífico?
Uma pista para começar a responder a essa questão talvez esteja nas considerações de Boris Groys sobre uma “guinada metafísica” da produção hollywoodiana recente: deuses, demônios, alienígenas e máquinas pensantes defrontando-se com heróis movidos, sobretudo, pela questão do que possa estar oculto por trás da realidade sensível. Nesta temática metafísica se esconderia uma pretensão auto-referencial. Filmes como Show de Truman ou Matrix tematizam a própria produção midiática. Podemos considerar os heróis desses filmes como verdadeiros críticos da mídia.
“Hollywood, pois, reage à suspeita de manipulação estética que lhe é dirigida reativando uma suspeita metafísica ainda mais antiga e profunda - a suspeita de que todo o mundo perceptível poderia ser um filme rodado numa metahollywood remota. Nesse caso, os filmes hollywoodianos seriam "mais verdadeiros" que a realidade, pois ela não nos mostra geralmente nem o caráter artificial que lhe é próprio nem o que lhe está além. O novo filme hollywoodiano, ao contrário, elabora, ao refletir sobre seus procedimentos próprios, uma nova metafísica que interpreta o ato de criação como uma produção de estúdio.”
Enquanto o filme europeu preocupa-se, como de hábito, com o “demasiado humano”, Hollywood ingressa na atual fase metafísica ou auto-referencial. Com a proximidade de a tecnologia digital intervir no tradicional ramo cinematográfico extinguindo o seu próprio suporte (a película), ou seja, eliminando sua própria especificidade que a distingue diante dos outros veículos de comunicação, talvez nesse momento Hollywood esteja dando uma resposta à tecnociência que a ataca. Talvez seja este o sentido da tendência metafísica do cinema comercial atual: ao trazer para as telas a antiga suspeita gnóstica de que o mundo perceptível possa ser uma ilusão e de que uma “metahollywood” high tech seja o novo Demiurgo, denunciar os escrúpulos da tecnociência cabalística – o secreto projeto de aliar a indústria cinematográfica com as novas tecnologias.
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Fascinante Teoria/ Maravilhosa Conspiração!!!

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